sexta-feira, 26 de maio de 2017

A perda da inocência

O Ajax jogou bem. Mas nunca pareceu acreditar que o título da Liga Europa fosse para seu bico (Pieter Stam de Jonge/VI Images)
“Serei honesto: vencer a final não era algo provável para nós”. Se já era difícil supor que o Ajax pudesse superar o Manchester United antes mesmo que a final da Liga Europa começasse, tal declaração, dada pelo técnico Peter Bosz à FOX Sports holandesa, logo após a decisão em Estocolmo, deixava claro como a primeira conquista de um torneio continental para o país desde 2001/02 era algo quase inatingível. De certa forma, por culpa do próprio Ajax. 

É óbvio que só o fato de ter voltado a decidir uma competição europeia já devia ser comemorado por todos que simpatizam com a história riquíssima dos Ajacieden, gigantes europeus para todo o sempre. Ainda assim, há uma grande diferença entre chegar à decisão e se contentar com isso. Foi exatamente o que se viu no gramado da Friends Arena: o Ajax parecia contente só por enfrentar o Manchester United. Mais do que isso: sempre pareceu uma equipe ingênua. Não necessariamente medrosa, mas ingênua.

Arriscado falar que a mais jovem equipe da história das decisões de torneios europeus (média de idade de 22,2 anos) “tremeu”. Se tremesse, provavelmente o Manchester United teria vencido por vantagem até maior. Além do mais, se houve um jogador do Ajax merecedor de elogios por sua atuação, foi justamente o mais jovem dos onze escalados – aliás, o segundo mais jovem jogador a ter atuado em qualquer final europeia: aos 17 anos e 285 dias, Matthijs de Ligt fez vários desarmes, comandou a defesa, mostrou senso de antecipação elogiável, enfim, mostrou que é promessa muito grande para a zaga, posição carente na Holanda. 

Sem contar que o outro jovem zagueiro, Davinson Sánchez, também escapou relativamente ileso da derrota: mesmo que em sua perna tenha resvalado a bola chutada por Paul Pogba para o primeiro gol (e mesmo que seu talento para armar o jogo tenha se revelado, no mínimo, deficiente), o colombiano também mostrou segurança nos desarmes e rapidez na recomposição – os desarmes de carrinho, em tentativas de Pogba e Marcus Rashford, no segundo tempo, foram precisos. 

Ou seja: os Godenzonen tentaram. Merecem respeito por isso. Mas o problema do Ajax em Estocolmo, definitivamente, não foi a falta de controle emocional. Foi ingenuidade. Ingenuidade demais de achar que José Mourinho, dos mais experientes e laureados técnicos de sua geração, não era capacitado para fazer exatamente o que fez: um jogo tático, neutralizando com facilidade os pontos fortes dos Amsterdammers (velocidade, marcação por pressão, jogadas partindo do meio-campo, troca de passes). Ingenuidade demais pensar que o time dos Red Devils não tinha capacidade de decidir a final a partir de um lance isolado, como foi o arremate de Pogba. Ingenuidade demais pensar que um time formado de jogadores experientes – não inquestionáveis, mas experientes – tentaria definir o jogo na pressa, e não usando dessa experiência. 

Assim, por exemplo, Marouane Fellaini foi dos melhores da decisão, controlando facilmente Lasse Schöne no meio-campo. Ander Herrera controlou Hakim Ziyech aos poucos no jogo. E o que falar de Kasper Dolberg, completamente sumido em campo? Certo, a inação do meio-campo acabou deixando o atacante dinamarquês isolado no meio da defesa dos Mancunians, perfeitamente postada. Ainda assim, cabia a Dolberg mostrar mais iniciativa – como Rashford tentou fazer no ataque do United, por mais que o melhor daquele setor na partida tenha sido Henrikh Mkhitaryan, opção sempre válida de jogadas. Mas Dolberg “aceitou passivamente” a marcação previsível que viria sobre ele. E não prever que isso ocorreria foi... ingenuidade.

Esta ingenuidade talvez seja um grande problema do futebol holandês em geral – que a atuação do Ajax expôs de modo exemplar na quarta-feira passada. Por mais que evolua, por mais que tenha aparecido, a equipe de Amsterdã é vítima da sua qualidade mais incensada: seu ideário tático. O 4-3-3 com pontas, a troca incessante de passes, a mudança de posições, a confiança nesses dogmas todos cria uma certa “camisa-de-força”. Quando dá certo, é o show que se viu contra Schalke 04 e Lyon, nos jogos de ida de quartas de final e semifinais, em Amsterdã. Mas quando dá errado, o Ajax simplesmente não tem alternativas. Pior: nega-se a tê-las, em nome de um certo “espírito ofensivo”, deixado claro por Peter Bosz.

Bom dizer, antes de mais nada: ótimo que um time tenha uma ideia de jogo e sempre prefira jogar de acordo com ela. No entanto, futebol é competição. E quando a ideia inicial não dá certo, é preciso ter o “plano B”. Só recentemente a Holanda teve esfregada em sua cara tal necessidade: com a ausência da Euro 2016 e a dificuldade grande nas eliminatórias da Copa de 2018, sabe-se que o 4-3-3 com pontas precisa ter variantes. Peter Bosz até tentou algo assim no Ajax, com o esporádico 4-1-4-1. E Louis van Gaal fez campanha primorosa na Copa de 2014 exatamente porque engoliu em seco suas crenças, arriscando um 5-3-2 que protegeu a frágil defesa e potencializou o talento de quem precisava aparecer.

Sim, deixar de lado ideias às quais se é muito apegado dói. Parece a perda da inocência. No entanto, se o Ajax quiser voltar de vez a ter espaço no cenário europeu, precisará dessa “perda”, em alguns aspectos. Em termos teóricos e práticos – como no mercado de transferências, em que já se fala em algumas saídas, embora sem muito alarido.  O emprestado Bertrand Traoré certamente voltará ao Chelsea – e se for vendido, não será para o Ajax; Dolberg, no mínimo, quer ouvir as sondagens que lhe fizeram; Davy Klaassen já é grande demais para a Eredivisie; e fala-se que o Borussia Dortmund olha com carinho para Amin Younes. 

De outro modo, será o que se viu na quarta: elogios, respeito à história, até carinho pelo Ajax. Mas no final, a taça fica com quem olha para o futebol holandês e diz que ele ainda precisa comer muito arroz com feijão, se quiser ser realmente grande. Foi mais ou menos o que Mourinho indicou, quando falou: “Há muitos poetas no futebol, mas eles não ganham muitos títulos. Sabíamos que éramos melhores, e usamos as fragilidades deles”. Com perfeição.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 26 de maio de 2017)

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Homens com uma missão. Cumprida

O Feyenoord tinha um conjunto de nomes experientes para tentarem lavar a alma de uma sofrida torcida. Liderados por Kuyt (à frente, em destaque), eles conseguiram: trouxeram o título da Eredivisie, após 18 anos (Dean Mouhtaropoulos/Getty Images)
Certo, a dor dos anos de crise já estava relativamente cicatrizada no Feyenoord. Depois dos 10 a 0 sofridos para o PSV, na temporada 2010/11 do Campeonato Holandês, o Stadionclub tivera John Guidetti e seus gols, mais uma jovem legião de promessas e o técnico Ronald Koeman, que levaram ao vice-campeonato em 2011/12. Guidetti saiu, chegou Graziano Pellè, os gols continuaram... e seguiram-se campanhas boas, com o 3º lugar na Eredivisie 2012/13 e outro vice-campeonato, em 2013/14. Aí, mais gente saiu: Daryl Janmaat, Stefan de Vrij, Bruno Martins Indi, os próprios Pellè e Koeman... E não houve como evitar certa queda, vista no 4º lugar de 2014/15.

Isto é: embora o clube de Roterdã já se houvesse restabelecido como um dos três grandes holandeses, ainda faltava algo. Para trazer isso, alguns homens começaram a chegar, com uma missão: trazer esse “algo”, o título que faltava, o título que encerraria um longo jejum, que faria o Feyenoord ser definitivamente respeitado de novo, na Holanda e no mundo. Enfim, neste final de semana que se passou, esses homens cumpriram o que se pedia deles: após 18 anos, enfim o Feyenoord pode gritar, de novo, que é o maior da Eredivisie.

O primeiro desses homens já estava no clube desde sua carreira de jogador, a bem da verdade: lateral esquerdo nascido e criado futebolisticamente em De Kuip, Giovanni van Bronckhorst correu mundo (Rangers, Arsenal, Barcelona), ganhou títulos notáveis, fez uma carreira elogiável... e voltou ao Feyenoord em 2007. Lá ficou até terminar a carreira, em 2010 – e fazendo seu último jogo profissional numa final de Copa do Mundo. Logo que se despediu, Gio passou imediatamente ao banco de reservas. Primeiro, trabalhando as categorias de base por alguns meses; depois, em maio de 2011, passando a auxiliar Ronald Koeman, junto de outro ex-jogador marcante no Feyenoord, Jean-Paul van Gastel (presente no título de 1998/99). 

Van Bronckhorst ainda trabalhou junto de Fred Rutten, durante grande parte da temporada 2014/15. Porém, com a crise vivida pela equipe no final daquele ano, o terceiro lugar que parecia garantido foi perdido, e Rutten também perdeu algo: seu emprego. Assim, uma transição precisou passar abruptamente ao seu último capítulo, já nos play-offs por vaga na Liga Europa, em 2014/15, com Van Bronckhorst sendo promovido a técnico principal, às pressas, tendo a seu lado Van Gastel como auxiliar. O técnico novato (e novo: tinha 40 anos, completos em fevereiro de 2015) fracassou em seu primeiro desafio: não conseguiu levar o Feyenoord à Liga Europa na temporada 2015/16. Contudo, sabia-se: até pelo status respeitável perante a torcida, Van Bronckhorst tinha salvo-conduto para começar seu trabalho. 

Porém, de nada adianta um técnico sem jogadores. E o outro homem com uma missão chegou a Roterdã justamente na metade de 2015. Assim como o técnico, Dirk Kuyt já tinha história na “banheira”: mesmo vindo de outro clube (começara a carreira no Utrecht), Kuyt já conseguira virar ídolo graças à primeira passagem pelo Feyenoord, entre 2004 e 2006, quando até goleador da Eredivisie foi (fez 29 gols em 2004/05), além de receber o prêmio de melhor jogador do campeonato em 2005/06. Deixara saudades, e fora fazer carreira tão elogiável quanto a de Van Bronckhorst: seus inquestionáveis profissionalismo e dedicação em campo tornaram o nativo de Katwijk figura querida em Liverpool e Fenerbahçe – sem contar o coadjuvante valioso que foi nas campanhas da seleção holandesa nas Copas de 2010 e 2014. Aos 35 anos, o atacante aceitou voltar. Para, quem sabe, ser o que Guidetti e Pellè já foram: um símbolo. Talvez um símbolo maior, com a salva de prata da Eredivisie nas mãos.

Havia mais alguns homens que foram se juntando. Como o zagueiro brasileiro Eric Botteghin, de postura séria em campo e carreira cuidadosamente construída na Holanda (do pequeno Zwolle para um pequeno-médio, o NAC Breda; de lá para um médio, o Groningen; e do Groningen para De Kuip). Como Tonny Trindade de Vilhena: considerado uma promessa talentosa desde que se destacou no título europeu sub-17 de 2011, ganho pela seleção holandesa, o jovem de ascendência angolana enfim ganhava espaço a partir de 2015/16. Como Eljero Elia: promissor na época em que integrou o elenco vice-campeão mundial na Copa de 2010, Elia decidiu voltar à Holanda em 2015 para recomeçar, após ter o filme chamuscado pelas passagens (no mínimo) discretas por Juventus, Werder Bremen e Southampton. Eles se somaram a gente que já estava lá: Jan-Arie van der Heijden, Karim El Ahmadi, Jens Toornstra, Michiel Kramer... Ah, sim: no banco, para ajudar a dupla Van Bronckhorst-Van Gastel, um personagem experimentado no campo e no banco: Jan Wouters.

Parecia que a redenção do Feyenoord na Eredivisie viria já na temporada 2015/16, com boas atuações no turno. Todavia, já no encerramento daquele ano, havia a perigosa tendência de queda – confirmada na volta da pausa de inverno, em janeiro e fevereiro de 2016: oito jogos sem vitória (sete derrotas e um empate). A missão não seria cumprida. Claro, a frustração foi gigante. Mas a missão continuava. Para aprender mais, Van Bronckhorst engoliu a contratação temporária de Dick Advocaat, para umas semanas de conversas e acompanhamento conjunto dos treinos. Bastou para ganhar mais conceitos, reerguer o moral do grupo, conseguir treze partidas sem perder na Eredivisie (garantindo a terceira posição) e, mais do que isso, conquistar o primeiro título do clube desde 2007/08: a Copa da Holanda. Era um bom prêmio de consolação, mas não era o que a torcida queria. Ainda.

Era preciso consertar os erros, nesta temporada. Para isso, veio da Dinamarca mais um homem com uma missão: Nicolai Jorgensen, artilheiro da temporada 2015/16 pelo Kobenhavn. Também chegou da Inglaterra, por empréstimo, um daqueles holandeses que surge bem mas se sai discretamente num grande centro: Steven Berghuis, bom por Twente e AZ, apagado no Watford. Simultaneamente, perdeu-se um personagem importante: o goleiro Kenneth Vermeer, tirado de combate pelo rompimento do tendão de Aquiles. Por sorte, o experiente australiano Brad Jones estava solto após o fim do contrato com o NEC -  veio de graça para o Feyenoord. 

E assim começou a temporada. Com tudo: nove vitórias seguidas – incluindo 1 a 0 sobre o PSV, em Eindhoven. Mas as dúvidas continuaram. Continuariam com a primeira derrota, 1 a 0 para o Go Ahead Eagles. Continuariam sempre. Ainda mais quando combinadas com os problemas de cada um daqueles homens. Como Vilhena, que passou tempos dificílimos com a morte da mãe, Jeannette, que o tirou de campo por algumas rodadas – sem contar as suspensões que o afastavam algumas vezes. Como Dirk Kuyt, até: se a ausência do capitão em campo era inimaginável no turno, aos poucos fez-se necessário colocá-lo no banco durante a maior parte do returno, com a maior velocidade que Toornstra oferecia. Kuyt deixava clara sua discordância. Mas nunca arranjou uma briga. Afinal, havia uma missão maior.

As vitórias seguiam-se. Com brilhantismo (6 a 1 no Sparta Rotterdam, 8 a 0 no Go Ahead Eagles) ou com dificuldades (que virada foi o 2 a 1 no Heerenveen, fora de casa, na 27ª rodada... e a arbitragem eletrônica decidindo o 2 a 1 no PSV, na 25ª?). Desde a primeira rodada, o Stadionclub jamais se descolou da primeira posição. Mas as dúvidas também continuavam: qualquer derrota (do magro 1 a 0 imposto pelo Sparta no returno ao duro impacto do 2 a 1 para o Ajax no Klassieker) bastava para fazer crer que o Feyenoord fracassaria, que de novo não daria, que o ascendente Ajax atropelaria. Como capítulo final das desconfianças, o 3 a 0 inapelável do Excelsior na penúltima rodada. 

Então, o Feyenoord se focou. O fim do calvário estava perto demais para que se permitisse qualquer erro contra o Heracles Almelo. E foi o que se viu: De Kuip se transformando em “De Kuyt”, com uma das maiores atuações da carreira do veterano. O nível de concentração altíssimo, como visto na maior parte da temporada. E um 3 a 1 para confirmar o inquestionável título, que foi festejado pela torcida do começo ao fim. Aliás, foi festejado, não: está sendo, como mostram as 150 mil pessoas presentes à avenida Coolsingel nesta segunda, quando o sonho da exibição da salva de prata foi realizado.

O que será? Ninguém sabe. Apesar de já ter certa experiência, Van Bronckhorst possui apenas dois anos de carreira como técnico; tem muito o que aprender antes de saltos mais ambiciosos. Vilhena renovou contrato até 2020 – e ofereceu o título “a toda a torcida, e a uma pessoa em especial”, lembrando a mãe que lhe falta. Toornstra não sabe o que fará: se renova ou se deixa o clube. Brad Jones tem várias opções: pode até ficar, mas com a recuperação do titular original Vermeer, clubes da Inglaterra ou Turquia são alternativas a serem consideradas. O emprestado Berghuis quer ficar. Já Elia quer sair: “Quero atuar num nível mais alto”. E Kuyt, entronizado na galeria de grandes ídolos do Feyenoord, é enigmático: pode seguir ou pode terminar a carreira, em alta. Seja como for, Martin van Geel, diretor geral do Feyenoord, já declarou: o clube conta com ele.

E seja como for, agora não é hora disso. É hora de ver Van Bronckhorst, Kuyt, Vilhena, Elia, Jorgensen, Brad Jones, Berghuis, todos eles voltarem as costas e caminharem rumo ao horizonte, com o sol poente, como no fim de um filme de faroeste. Como velhos pistoleiros seguros. Afinal, eles tinham uma missão. E a cumpriram.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 15 de maio de 2017)

sábado, 13 de maio de 2017

Ajax não é favorito. E daí?

Ajax sofreu na semifinal da Liga Europa. Terá desafio duríssimo. Mas reanimou futebol holandês (Maurice van Steen/VI Images)
Esta coluna poderia celebrar a chegada do Ajax a uma final europeia, após 21 anos. Poderia celebrar a concretização de uma ideia de Johan Cruyff, expressa numa coluna no diário De Telegraaf, em setembro de 2010: fazer o Ajax voltar a expressar em campo os valores que o fizeram famoso (revelação incessante de jovens e estilo ofensivo de jogo), a partir da integração de ídolos ao cotidiano do clube. Poderia citar a inesperada manutenção das chances de título holandês, após a derrota do Feyenoord na semana passada. E fará tudo isso.

Porém, uma coisa é o carinho acendrado deste colunista (também conhecido como “eu”) pelo futebol holandês. Outra é a mínima necessidade desta coluna ter algo de jornalístico, mesmo que o titular dela não o seja. Assim, primeiramente, faz-se necessário ser o “estraga prazeres” da vez, falando das perspectivas para a final da Liga Europa, no dia 24 de maio, na Friends Arena de Estocolmo (exatos 22 anos após o último título de Liga dos Campeões dos Ajacieden): não, o Ajax não é favorito para a conquista. Longe disso. Claro, tem chances: se não fosse um time bom, sequer teria chegado à final. Além do mais, trata-se de um gigante europeu. Mas não é favorito.

E não é favorito por causa de algumas coisas vistas em campo contra o Lyon, nas semifinais – aliás, vistas em quase todos os jogos do Ajax fora de casa. Trata-se de um time talentoso, que cria chances a granel. Mas que também as desperdiça muito – principalmente pela lentidão de Bertrand Traoré na direita, sempre precisando trazer a bola para o meio antes da finalização, encerrando vários contragolpes. Os gols perdidos já fizeram falta nas quartas de final, contra o Schalke 04. E quase fizeram de novo contra os Gones.

Mas é preciso reconhecer: os gols perdidos e a eventual displicência dos atacantes não trariam tanto temor em determinados momentos, não fosse a fragilidade excessiva da defesa. Certo, ela é esperada: o Ajax é um time ofensivo acima de tudo, no 4-3-3 ou no derivado 4-1-4-1 em que joga. Não sabe e não quer defender, conforme o técnico Peter Bosz deixou claro à (ótima) reportagem do diário inglês The Guardian, na última quarta: “Quando vejo meu time só se defendendo e destruindo jogadas como eu fazia, não gosto. Quando estou no banco, quero ter uma tarde feliz. E se posso ter isso, também posso dar isso aos torcedores”.

Está dando. Mas para isso, não precisava fazer a torcida sofrer. Principalmente pela direita, onde Joël Veltman vem tendo atuações temerárias – já fora expulso no jogo de volta das quartas, contra o Schalke 04, e o mesmo destino só foi impedido contra o Lyon porque foi feita a providencial troca de Veltman por Kenny Tete. Na defesa, Matthijs de Ligt volta a mostrar talento e técnica, mas ainda comete afobações típicas da idade – como na chegada exagerada que rendeu o pênalti convertido por Alexandre Lacazette para o 1 a 1 que recolocou o Lyon no jogo. E Nick Viergever, expulso, forçará mudanças rumo à final. Até mesmo os dois mais confiáveis jogadores de defesa do Ajax (André Onana e, principalmente, Davinson Sánchez) são irregulares.

Eis a chave, aliás, para saber por que o Ajax não é favorito: irregularidade somada à inexperiência. Certo, o Manchester United também viveu de altos e baixos por toda a temporada. Ainda assim, é bem mais razoável esperar por lances decisivos de Paul Pogba, ou Ander Herrera, ou Henrikh Mkhitaryan, ou Marcus Rashford (este, ocupando protagonismo na hora certa, com a inoportuna lesão de Zlatan Ibrahimovic). E a defesa dos Diabos Vermelhos, mesmo com suas fragilidades – e mesmo também desfalcada na final, com a expulsão de Eric Bailly -, mostra mais calma. Enfim: mesmo longe de ser confiável, o United é um time bem mais experiente e experimentado do que o Ajax. Por isso, é o favorito.

Mas... e daí? Diante do começo melancólico de temporada que fez (sempre é bom lembrar: goleada do Rostov, por 4 a 1, na terceira fase preliminar da Liga dos Campeões), ter chegado à final de uma Liga Europa é algo que merece muitas comemorações em Amsterdã.  Coroa a mudança de rumos por que o clube passou, após a dramática perda do título holandês na temporada passada. Coroa a paciência no trabalho de Peter Bosz. Coroa a postura mais agressiva da dupla Edwin van der Sar (diretor geral do clube)-Marc Overmars (diretor de futebol) no tocante a transferências. E finalmente, dá um afago no futebol holandês, tão necessitado disso após tantas decepções e uma decadência tão profunda. 

Mesmo que seja difícil, muito difícil, o Ajax ensina a Holanda: é possível ser mais moderno sem deixar de lado os cânones do jeito holandês de jogar bola. E isso já vale muito. Além do mais, é só um jogo em Estocolmo. Repita-se: o United é favorito. Mas...


Após a derrota inesperada, Feyenoord teve um foco: treinos, para evitar a tragédia na última rodada (ANP)
Todos os caminhos levam a De Kuip

Joost de Jong é um jornalista holandês, correspondente do diário Algemeen Dagblad no Rio de Janeiro. Gosta da cidade, estabeleceu família. Mas trouxe algumas paixões da terra natal. Uma delas, o Feyenoord. Que o fez acompanhar à distância toda a via-crúcis do Stadionclub rumo ao virtual título holandês. Que o fez sentir, após a vitória contra o Vitesse: a hora tinha chegado. Joost quis viajar a Roterdã (fez isso duas vezes durante a temporada), mas os preços estavam proibitivos. Decidiu: acompanharia daqui mesmo o jogo contra o Excelsior. O jogo do título... que se transformou num anticlímax que impressionou toda a Holanda – e entristeceu Roterdã.

Nesta semana, Joost escreveu um texto para o diário em que trabalha. E reconheceu: não poderia dizer não ao seu coração, a partir das mensagens de texto recebidas dos amigos deixados em Roterdã. Um deles foi definitivo: “Joost, você precisa vir. Tem de ser assim. Nós ainda temos uma chance. Você tem de estar lá! De outra forma, não será legal”. E Joost continuou: “Se o clube lhe chama, você tem de ir’, disse Leo Beenhakker quando treinava o clube. ‘Se o clube lhe chama, você tem de ir’, repeti a um amigo, há alguns anos, quando ele tinha uma chance de trabalho no Feyenoord e pediu minha opinião. Se o clube chama, você tem de ir. E eu vou. O clube chama, meus amigos chamam, e eu só quero uma coisa: apoiar meu Feyenoord, e ver o título. (...) Na quinta à noite, saio do Rio. Do Rio para Miami, de Miami para Filadélfia, de lá para Amsterdã. Desembarco no sábado de manhã, após quase 32 horas”. De lá, um carro até Roterdã. Para estar domingo, no setor O de De Kuip, no jogo contra o Heracles Almelo, pela última rodada do Campeonato Holandês.

Eis a medida da sensação da torcida do Feyenoord, após a decepção gigante da derrota por 3 a 0 contra o Excelsior. Certo, a coluna até já alertava: “(...) Claro, pode dar tudo errado. Até porque o Excelsior tem alguns bons atacantes, como Stanley Elbers e Nigel Hasselbaink. Um time rápido, que garantiu sua permanência na primeira divisão com uma facilidade até inesperada, diante do sofrimento das últimas temporadas”. No entanto, até pelo tom celebratório, era difícil imaginar que, de fato, daria tudo errado, com Elbers e Hasselbaink aterrorizando a defesa do Stadionclub.

Mas... passou. Não se leu declaração nenhuma, de jogador nenhum do Feyenoord, a nenhum veículo de comunicação holandês, nesta semana que termina. Não se viu o clima retrospectivo que já se via em Roterdã. Agora, o que impera é o silêncio, no trabalho para pegar o Heracles Almelo e acabar com os traumas, de uma vez por todas. E a torcida reage com o que ela tem de mais nobre: o amor. Será duro: menos pelos gols de Samuel Armenteros que impulsionam o Heracles e podem representar o fim trágico, mais pelos próprios fantasmas do Feyenoord. Mas neste domingo, às 9h30 de Brasília, todos os caminhos levarão Het Legioen a De Kuip, para o fim do jejum.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 12 de maio de 2017)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Susto antes do êxtase

Ajax sofreu demais, como já ocorrera nas quartas de final. Mas suportou pressão e fez história (Ajax Life/Twitter)

Difícil segurar a comemoração de torcida - e até imprensa - na Holanda. Após 15 anos, um clube do país voltou a figurar entre os finalistas de um torneio europeu - e na Liga Europa, sucessora da Copa da UEFA que o Feyenoord levou em 2001/02 sobre o Borussia Dortmund. O jejum do Ajax era até mais longo: havia 21 anos os Amsterdammers não sabiam o que era jogar uma decisão continental, desde a derrota nos pênaltis para a Juventus, na final da Liga dos Campeões 1995/96. Mais: no contexto atual do futebol europeu, passar da fase de grupos já era algo notável para um clube holandês. Por isso, a significância inegável e elogiável da classificação. Mas o fato é que, até chegar à festa, o Ajax sofreu.

E não precisava ter sofrido. Porque no primeiro tempo, o time mostrou que parecia ter aprendido a lição vinda nas dramáticas quartas de final. Suportou a pressão esperada do Lyon, no começo do jogo em um Parc OL previsivelmente lotado - em grande parte, pelas atuações seguras de Davinson Sánchez (unanimemente elogiado pelo posicionamento nas bolas aéreas e pela capacidade no primeiro combate) e André Onana (bem posicionado em várias defesas - como aos 10', em cobrança de falta de Mathieu Valbuena). 

Aos poucos, os visitantes cresceram de produção no ataque. Passaram a tocar a bola - e a criar chances. Como aos 12', quando Kasper Dolberg e Davy Klaassen tiveram dois chutes em sequência, para depois Bertrand Traoré forçar o goleiro Anthony Lopes a espalmar chute sinuoso. Ou aos 14', quando Hakim Ziyech cobrou falta rapidamente, deixando Amin Younes livre com a bola para encobrir Lopes, mandando para fora. Finalmente, aos 27', o gol primoroso de Dolberg (passe de Younes, e o dinamarquês tocou com calma invejável na saída de Lopes, pela esquerda) fazia justiça ao que se via em campo: uma superioridade tamanha que chegava a se ouvir a torcida visitante no Parc OL. De quebra, até havia chances para o segundo gol - como nos chutes de Klaassen, aos 41', e Lasse Schöne, aos 43'.

Foi assim, até a primeira falha da defesa. Desafortunadamente, do destaque Sánchez: o colombiano deixou a bola passar, e Alexandre Lacazette (de volta, já provando seu valor nos Gones) foi mais rápido do que Matthijs de Ligt. O jovem chegou com força excessiva na dividida, o juiz polonês Szymon Marciniak apitou o pênalti, e Lacazette empatou aos 45'. O empate já era prejudicial, mas a pane Ajacied ficou pior ainda aos 45' + 1, quando Nick Viergever deixou Nabil Fekir passar pela direita e cruzar para Lacazette virar o jogo, desviando na pequena área.

O empate de Lacazette: de novo, começando momentos dramáticos para o Ajax (Tom Bode/VI Images)
Ficava a dúvida: novamente, a juventude do Ajax iria se afetar com a pressão do time lionês? A resposta que o segundo tempo forneceu foi afirmativa. Os avanços de Jérémy Morel pela esquerda passaram a assustar; os de Maxwel Cornet pela direita, ainda mais. De quebra, no meio, Fekir e Lacazette chutavam mais e mais contra a meta. O cartão amarelo levado por Joël Veltman aos 48' já preocupava. O único ponto de segurança no Ajax era Sánchez, que continuava seguro nas bolas aéreas.

Os arremates foram se avolumando: Lacazette aos 55' (Onana agarrou), Cornet aos 55' (para fora), Fekir aos 65' (falha de De Ligt na saída de bola, que deixou o francês livre para bater)... o Ajax tentava aumentar a velocidade nos raros contragolpes, tanto com Traoré e Younes quanto com a entrada de Donny van de Beek na vaga de Schöne. Van de Beek até trouxe perigo, quase marcando um belo gol com a bola mandada no travessão aos 79'. E Kenny Tete até entrou em lugar de Veltman, antes que uma expulsão ocorresse. Porém, estava claro: mais gols do Lyon pareciam desastres esperando para acontecerem. A pressão ampliada com as entradas de Maciej Rybus e Rachid Ghezzal só aumentava a sensação.

Sensação concretizada com o gol de Ghezzal, aos 81'. E com a expulsão de Nick Viergever, aos 84', parecia questão de tempo o quarto gol dos Gones, para levar o jogo à prorrogação. Fekir teve chance aos 85'; Lacazette, aos 87'; Cornet talvez tenha perdido a bola do jogo, em finalização cruzada rente à trave de Onana, aos 89'. E o gol... não aconteceu. O Ajax podia comemorar. A final que parecia um devaneio no começo da temporada era real. 

Veio com sustos: a lição das quartas não foi aprendida. Talvez porque o Ajax seja um time feito para atacar, jamais para defender. Talvez porque o Ajax seja um time jovem: seis dos jogadores que terminaram a partida em Lyon nem eram nascidos naquela final de 1996 contra a Juventus. Por tudo isso, o Manchester United (irregular, mas experiente) é favorito para a final de 24 de maio na Friends Arena de Estocolmo.

Mas esses pensamentos ficam para depois. Agora, é hora de ecoar as palavras de Klaassen: "Somos uma máquina de lutar". De Peter Bosz: "Agora, sim, veremos se realmente podemos fazer história". De Matthijs de Ligt: "Foi a mais bonita partida da minha precoce carreira". De Lasse Schöne: "Quando eu falei antes que poderíamos vencer a Liga Europa, acharam que eu estava maluco". De Kasper Dolberg: "Tanta coisa está acontecendo...". De Van de Beek: "Vamos vencer a Liga Europa e também ser campeões holandeses". Numa palavra: é hora do Ajax comemorar. Depois daquela distante derrota para o Rostov-RUS na terceira fase preliminar da Liga dos Campeões, quem diria?

terça-feira, 9 de maio de 2017

Como nossos antecessores


Advocaat: inegavelmente experiente, comandará a Oranje pela 3ª vez. Mas está atualizado? (Soccrates Images)

Fevereiro de 2014. A história é conhecida: Ronald Koeman, entgão treinando o Feyenoord, queria comandar a seleção holandesa. Inclusive, já anunciara que deixaria o Stadionclub ao fim daquela temporada  - o contrato iria terminar, e ele ficaria com o caminho aberto. Só que Guus Hiddink não deixou: em suas colunas no diário De Telegraaf, o treinador também disse querer comandar a Laranja. Diretor técnico da federação holandesa, Bert van Oostveen teve a ideia: após a Copa de 2014, Hiddink treinador e Koeman auxiliar (assim fora na Copa de 1998). Sentindo-se desprestigiado - afinal, já tinha uma carreira desenvolvida - e até magoado com a falta de consideração da federação, Koeman desistiu de qualquer vínculo. Então, ficou decidido e foi anunciado naquele fevereiro: Hiddink treinaria a Oranje após a Copa de 2014, com Danny Blind como auxiliar - e sucessor, após a Euro 2016. Deu no que deu: Holanda fora do torneio continental, e mergulhada na crise atual.

Três anos e três meses após a desastrada decisão, a federação holandesa deu sinal de que não aprendeu lição nenhuma. Nesta terça, o diretor técnico Hans van Breukelen e o diretor comercial Jean-Paul Decoussaux confirmaram o que a imprensa já indicava: Dick Advocaat estava contratado para sua terceira passagem como técnico da seleção holandesa, com Ruud Gullit de auxiliar, em contrato até o fim das eliminatórias europeias para a Copa de 2018 - ou para a própria fase final da Copa, se a Holanda chegar a ela. A explicação do ex-goleiro Van Breukelen deixou clara a falta de preocupação com qualquer coisa de longo prazo: "Havia dois cenários: escolher pelo longo prazo ou fazermos de tudo para alcançar a Copa. Ficamos com a segunda opção. Para ela, precisávamos de um sujeito muito experiente, com autoridade". Até por isso, Advocaat foi o escolhido, diante da recusa de nomes procurados, holandeses (Louis van Gaal, Frank de Boer, Huub Stevens) ou estrangeiros (o alemão Roger Schmidt).

Entretanto, o assunto mais falado na conferência de imprensa foi a verdadeira "novela" da escolha do sucessor de Danny Blind. Se Advocaat era o nome, por que Henk ten Cate, treinando o Al Jazira-EAU (já garantido no Mundial de Clubes, como campeão emiratense), esteve tão próximo de um acordo? Aí, foi hora de Van Breukelen negar: "Isso é o que Henk disse. Eu não disse nada sobre ele [Ten Cate] estar perto de ser o escolhido. Eu tinha duas opções". O diretor criticou Ten Cate, por ter revelado à imprensa holandesa a conversa de ambos: "Se eu tenho uma conversa com alguém, o teor dela deve ficar entre as duas pessoas. Acho até mal educado. Portanto, fico feliz dele não ter sido o escolhido".  E ainda disse algo pouco sabido antes: que Ten Cate só não foi escolhido porque o auxiliar imaginado para ele recusou a oferta: "Durante as conversas, Fred Rutten desistiu de ser o auxiliar". Mas por quê forçar uma dupla de técnico e auxiliar? Van Breukelen: "Eu penso em duplas".

Van Breukelen (à esquerda) e Decoussaux: novos erros na condução da escolha do técnico (ANP/Pro Shots)

Restou Advocaat. Que havia deixado a comissão técnica da própria seleção, há pouco menos de um ano, quando ainda auxiliava Danny Blind, para treinar o Fenerbahçe! Van Breukelen reconheceu que era estranho trazê-lo de volta, ainda mais por ter discordado frontalmente da saída de Advocaat. Mas engoliu em seco: "No momento, estamos numa situação em que os sentimentos devem ser postos de lado, para priorizarmos a qualidade. Passo por cima disso para ver o que é melhor para a seleção". O ex-goleiro também assumiu que a escolha do veterano foi recebida estranhamente entre o grupo de jogadores costumeiramente convocados: "Eles ficaram surpresos. Mas são profissionais como eu, e também passarão por cima disso".

Sendo assim, resta esperar por Advocaat - que ainda trabalha com o Fenerbahçe, nas semifinais da Copa da Holanda, e que deverá encerrar o trabalho na última rodada do Campeonato Turco, em 2 de junho, contra o Adanaspor. Até lá, Fred Grim segue o responsável pela Oranje - e pode até treiná-la no amistoso do dia 31 de maio (contra Marrocos, em Agadir). Depois, volta o "Pequeno General", técnico mais velho a comandar a Oranje (69 anos e quatro meses - completa 70 em 27 de setembro), segundo treineiro com mais partidas no banco da seleção nacional (55 jogos nas duas passagens, entre 1992 e 1994 e entre 2002 e 2004). Com a tarefa pesada de fazer um bom trabalho para apagar as más memórias de suas passagens turbulentas por seleções como Bélgica, Rússia e Sérvia - sem contar trabalhos esquecíveis por Sunderland e Fenerbahçe. 

Mas Advocaat não merece críticas, apenas desconfianças sobre sua desatualização. As críticas vão para a dupla de diretores. Que apesar de ter visto tudo o que viu, é quase a mesma. E age como seus antecessores. 

sexta-feira, 5 de maio de 2017

18 anos em duas semanas

Feyenoord sorri nos treinos, com a segurança de quem tem tudo para fazer história (Marco de Swart/AD Sportwereld)

Quanto tempo demoram duas semanas? 14 dias, ora bolas. De fato, é a resposta mais clássica. Porém, segundo várias teorias, essa demora pode variar. Há o tempo lógico de Jacques Lacan, o tempo relativo de Albert Einstein... e o tempo dos torcedores do Feyenoord. Nessas duas semanas que se passaram entre a vitória por 2 a 0 sobre o Vitesse (agora campeão da Copa da Holanda) e o jogo contra o Excelsior, neste domingo, pela 33ª e penúltima rodada do Campeonato Holandês, que pode acabar com o jejum de títulos na Eredivisie, a demora foi exatamente o tempo do jejum: 18 anos.

Duas semanas de “18 anos” em que muito se lembrou dos destaques daquele Feyenoord da temporada 1998/99, campeão com 15 pontos à frente do Willem II, segundo colocado: Jerzy Dudek, Ulrich van Gobbel, Kees van Wonderen, Patrick Paauwe, Paul Bosvelt, Bonaventure Kalou, o volante brasileiro Tininho, Jean-Paul van Gastel (hoje, auxiliar de Giovanni van Bronckhorst na comissão técnica), Jon Dahl Tomasson, Peter van Vossen... e, claro, as lembranças eram salpicadas de declarações destes protagonistas. Ao diário Algemeen Dagblad, um dos maiores da Holanda (e baseado em Roterdã), Van Vossen reconheceu: “Como sempre acompanho o Feyenoord, também estou começando a sentir o frio na barriga. Ver um título tão perto, após tanto tempo, é sensacional”.

Duas semanas em que também se falou muito sobre os tempos bicudos e difíceis que o Feyenoord viveu – principalmente após o caótico fim de administração do presidente Jorien van den Herik, em 2006. As turbulentas passagens de alguns técnicos por De Kuip – como Gertjan Verbeek, demitido na metade da temporada 2008/09, após incompatibilidade com vários veteranos que viviam a fase final de suas carreiras, como Roy Makaay, Tim de Cler e o próprio Van Bronckhorst. Acima de tudo, aquele que talvez tenha sido o ponto mais baixo da história de quase 109 anos do Stadionclub: os 10 a 0 sofridos para o PSV, em 24 de outubro de 2010, maior derrota que o clube sofreu em sua história no Campeonato Holandês.

Duas semanas em que se lembrou também da reação. Cujo ponto inicial, segundo a maioria da imprensa e da torcida, veio com a contratação de Ronald Koeman, em julho de 2011. Foi o casamento perfeito: se o Feyenoord precisava se recompor, Koeman também, após passagens malogradas por Valencia e AZ. E mostrando a garra tão valorizada por Het Legioen – nome dado à torcida do clube -, veio o vice-campeonato na temporada 2011/12, que já massageou o ego da torcida, dando a esperança de que dias melhores viriam. E que rendeu um novo ídolo, o símbolo daquela reação nascente: John Guidetti. Pois o atacante do Celta de Vigo (que chegou a provocar o Ajax ao marcar dois gols no jogo entre ambos, na fase de grupos da Liga Europa) também demonstrou ter o Feyenoord no coração, falando à FOX Sports holandesa: “Eu vejo tudo. Rezo todas as noites para o Feyenoord ser campeão. Eles merecem”.

Com os gols de Guidetti, a boa geração que surgia na defesa (Bruno Martins Indi e Stefan de Vrij como símbolos) e Koeman comandando tudo, o Feyenoord foi subindo. Guidetti voltou ao Manchester City que o emprestara, mas chegou Graziano Pellè, destaque em outro vice-campeonato, na temporada 2013/14. Enfim, Ronald Koeman deixou o Feyenoord, com a carreira refeita. E deixando uma marca, como reconheceu Martijn Krabbendam, setorista do Feyenoord, para a Voetbal International, revista em que trabalha: “Koeman trouxe uma mentalidade vencedora para o Feyenoord”.

Mas nestas duas semanas, também se debateram assuntos da atualidade. Hoje reserva, Dirk Kuyt desconversou sobre a possibilidade de encerrar a carreira com o título. Tonny Vilhena, por sua vez, se antecipou aos previsíveis boatos de saída: renovou com o Feyenoord até 2020. Até Jens Toornstra, outro possível alvo para negociações, parece mais próximo de prolongar seu compromisso com o Stadionclub.

Se a torcida lotou os jogos do Feyenoord em casa, é de se pensar o que fará na festa do título (Pro Shots)

Obviamente, também se combinou sobre a festa. Já no dia seguinte à vitória sobre o Vitesse, a prefeitura de Roterdã anunciou o planejamento para a aguardada recepção na avenida Coolsingel: em caso de confirmação do título, será realizada na próxima segunda. E no domingo, vindo a vitória “fora de casa” sobre o Excelsior (as aspas devem-se ao fato de também ser um clube de Roterdã – logo, não é tão fora de casa), a Eredivisieschaal não será erguida no estádio: os jogadores andarão alguns quilômetros de ônibus, rumo a De Kuip, para receberem a taça na casa do Feyenoord, onde 34 mil torcedores estarão, após comprarem ingressos para acompanhar o jogo em quatro telões. Mas o prefeito Ahmed Aboutaleb já anunciou: caso haja turbulência de torcedores no caminho até De Kuip, nada de recepção na Coolsingel, como “castigo”.

Claro, pode dar tudo errado. Até porque o Excelsior tem alguns bons atacantes, como Stanley Elbers e Nigel Hasselbaink. Um time rápido, que garantiu sua permanência na primeira divisão graças a uma sequência de três vitórias - com uma facilidade até inesperada, diante do sofrimento das últimas temporadas. E causou certos problemas aos grandes na temporada – até “ajudou” o Feyenoord indiretamente, empatando com o Ajax há seis rodadas. Falando em Ajax, como esquecer dele: semifinalista da Liga Europa, sempre à espreita para aproveitar falhas do arquirrival – e tendo um adversário frágil na rodada, o Go Ahead Eagles, virtualmente rebaixado?  Só mesmo a provável escalação de alguns reservas faz crer num tropeço Ajacied – porque, claro, há o jogo de volta contra o Lyon à espera.

Entretanto, mesmo com um Ajax atento (e de um modo diferente, tão motivado quanto o Feyenoord), Het Legioen, a imprensa, Roterdã, a Holanda inteira tem a sensação: chegou a hora das duas semanas de 18 anos acabarem. O anúncio de que Dudek, o goleiro do título de 1998/99, entregará a taça numa eventual cerimônia, só aumenta essa sensação. E será um bonito fecho para o calvário Feyenoorder. 

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 5 de maio de 2017)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Este time já conquistou o mundo

O time que fez o mundo conhecer o Feyenoord, campeão europeu. Em pé: Guus Haak, Manus Vrauwdeunt, Henk Wery, Eddy Treytel, Theo Laseroms, Eddy Pieters Graafland, Theo van Duivenbode, Ruud Geels e Willem van Hanegem. Agachados: Cor Veldhoen, Piet Romeijn, Franz Hasil, Ernst Happel (técnico), Rinus Israël, Coen Moulijn, Guus Brox (diretor), Wim Jansen, Ove Kindvall e Mever (massagista) (Arquivo Kicker)
Como qualquer leitor deste blog (ou acompanhante mediano do futebol europeu) sabe, o Feyenoord está às portas do título holandês, após 18 anos de jejum. Sendo assim, o Espreme a Laranja começa uma pequena série de textos sobre o Stadionclub, preparando o "ambiente" para a conquista cada vez mais provável. Começando nesta quinta, com um texto publicado na Trivela, em 2010, para lembrar simultaneamente do ponto mais baixo da história do clube de Roterdã (os 10 a 0 sofridos para o PSV, na Eredivisie 2010/11) e dos pontos mais altos (os títulos europeu e mundial, primeiros de um clube holandês na história, em 1969/70). Amanhã, a coluna sobre como está o ambiente em Roterdã. E no sábado, um texto comentando o último título nacional do Feyenoord, em 1998/99.

O ano de 2010 terminará amargamente para o Feyenoord. É certo que a primeira metade do ano foi até honrosa: o Stadionclub terminou o Campeonato Holandês em quarto lugar. Porém, sem dúvida, a maior lembrança será a tão falada goleada de 10 a 0 sofrida para o PSV, na temporada 2010/11 da Eredivisie. A maior derrota que já atingiu o clube de Roterdã em sua história no torneio nacional.

Sem dúvida, é um dos pontos mais baixos da história do Feyenoord, que já vai por 102 anos. E, talvez, a goleada sofrida em Eindhoven, no dia 24 de outubro, tenha impressionado exatamente porque, apesar dos pesares, o clube continua tendo tradição. Continua sendo um dos integrantes do Trio de Ferro holandês. E, principalmente, porque foi o primeiro clube a despontar na aparição do futebol holandês no cenário mundial, na década de 1970.

Muito se fala do Ajax tricampeão europeu, mas, se a Holanda começou a aparecer, foi porque, em 1970, o Feyenoord tornou-se o primeiro holandês a conquistar um título continental. Mais do que isto: o primeiro holandês a conquistar um título mundial. O time a ter conseguido a maior goleada da história da Liga dos Campeões em todos os tempos. E é desta época dourada que esta matéria falará.

Van Hanegem: chegando do Xerxes para ser o maior ídolo da história Feyenoorder (Arquivo ANP)
A construção do time

Como em várias equipes que conseguiram sucesso, a construção do Feyenoord que ganharia o mundo levaria tempo. A começar pelo nome: ainda sem frequência em competições europeias, o time ainda se chamava Feijenoord – o “y” seria incluído somente em 1974.

Não se pode dizer, no entanto, que a base já não estivesse lá. A começar pelo experiente goleiro Eddy Pieters Graafland, que defendeu a seleção holandesa por uma década – parando em 1967, quando já tinha 33 anos -, e estava no De Kuip desde 1958.

Também já vestiam a camisa dividida verticalmente em branco e vermelho dois futuros integrantes do time de Rinus Michels na Copa de 1974: o zagueiro e capitão Rinus Israël (reserva no Mundial), também conhecido como “Ijzeren Rinus” (Rinus de ferro), por sua disposição meio exagerada nas jogadas e divididas, e o meio-campista Wim Jansen (titular), surgido nas categorias de base do clube. Já havia o lateral-direito Piet Romeijn. E no ataque, dois importantes atletas: o sueco Ove Kindvall, um bom finalizador, e o já veterano Coen Moulijn, considerado um dos melhores pontas da história da Holanda.

E ainda chegariam mais jogadores, antes da temporada 1968/69. Outro zagueiro vigoroso, Theo Laseroms, que faria uma dupla histórica do Feyenoord com Israël, e o atacante Henk Wery. Porém, o mais importante reforço viria de um clube falido: o Xerxes, nascido em Roterdã (mas, então, na cidade de Delft), havia abandonado o futebol profissional. E o meio-campista Willem van Hanegem chegou ao Feyenoord, junto do goleiro Eddy Treytel.

O primeiro sucesso

E o clube começou a disputar o campeonato holandês, tendo como principais rivais na disputa do título o Ajax (que, ao final daquela temporada, seria finalista da Copa dos Campeões) e o Twente de Jan Jeuring, Theo Pahlplatz e Dick van Dijk, treinado por Kees Rijvers. Entretanto, comandado por Ben Peeters, o Feyenoord teve um ótimo começo de temporada, vencendo seus 13 primeiros jogos – só tropeçou na 14ª rodada, ao empatar sem gols com o Telstar.

Haveria ainda outros tropeços do Stadionclub, que permitiam a Ajax e Twente sonharem com o título. Como os dois empates por 1 a 1 com AZ e ADO, na 20ª e 21ª rodada, e a derrota para o NAC Breda, na 22ª. A maior chance para os adversários, então, veio com a derrota para o Holland Sport, por 1 a 0, na 31ª rodada. Porém, Ajax e Twente também perderam, então. E o Feyenoord terminou vencendo Twente (1 a 0, fora de casa) e NEC (também 1 a 0, no De Kuip). Era o nono título nacional do clube, com direito a artilheiro – Kindvall fez 30 gols, junto de Van Dijk, do Twente. Para melhorar, viria ainda a dupla coroa, com o título da Copa da Holanda: após empate por 1 a 1 com o PSV, 2 a 0 numa partida extra.

Mudanças para a história

E, para a temporada 1969/70, a mudança mais importante viria no banco. Ben Peeters deixou o cargo de técnico vago, e este seria ocupado pelo austríaco Ernst Happel, que já estava havia sete anos no ADO Den Haag, pelo qual vencera a Copa da Holanda, em 1967/68. Entre os jogadores, viriam o lateral-esquerdo Theo van Duivenbode, que surgiu no arquirrival Ajax, e mais um meio-campista, o austríaco Franz Hasil. No gol, Treytel (mais um Feyenoorder a estar na Copa de 1974) tomaria o lugar de Pieters Graafland.

E, na primeira fase da Copa dos Campeões da Europa, o Feyenoord já conseguiu uma façanha histórica: enfrentando o KR, da Islândia, a equipe de Happel aplicou 12 a 2. Simplesmente a maior goleada da história da Copa dos Campeões – e um recorde que resiste até hoje, já na era de Liga dos Campeões.

Na segunda fase, todavia, o desafio era grande: enfrentar o Milan, justamente o campeão da competição na temporada anterior. E, na primeira partida, em 12 de novembro de 1969, no Giuseppe Meazza, Nestor Combin deu a vitória aos Rossoneri. No entanto, o meio-campo do time holandês estava em estado de graça. E seria justamente a principal dupla dos Feyenoorders que definiria a vitória e a classificação no De Kuip, em 26 de novembro: Jansen marcaria, aos seis minutos do primeiro tempo, e Van Hanegem faria o gol do 2 a 0, aos 37 da segunda etapa.

Paralelamente à superação de tamanho desafio, o time que Happel armara não decepcionava na Holanda: continuava disputando o título da Eredivisie com o Ajax. No entanto, um resultado ruim no De Klassieker acabaria desanimando o Feyenoord: em casa, a equipe vencia por 3 a 1, mas permitiu o empate, por duas falhas de Treytel. O Ajax se animaria, então, para vencer o título holandês – e goleiro perderia a posição para veterano Pieters Graafland.

Na Copa dos Campeões, porém, o time de Roterdã prosseguia firme na disputa do título. Nas quartas de final, o adversário seria o Vorwärts Berlin, da Alemanha Oriental. E o mesmo cenário da vitória sobre o Milan se repetiu: derrota por 1 a 0 fora de casa, mas triunfo por 2 a 0 na volta. Classificação garantida nas semifinais, onde o adversário seria o Legia Varsóvia, da Polônia.

E, enfim, a classificação para a decisão: empate sem gols em Varsóvia, e vitória por 2 a 0 em Roterdã. Chegava, enfim, a decisão esperada, no dia 6 de maio. No mesmo San Siro em que a equipe jogara contra o Milan. E com um adversário nada desprezível: o Celtic, que havia sido campeão europeu, havia duas temporadas.

O capitão Israël (esquerda) e o veterano Pieters Graafland erguem a taça da Copa dos Campeões (Arquivo ANP)

Suado e inesquecível

No jogo, a primeira chance foi do Feyenoord, com Hasil, chutando de longe para a defesa de Evan Williams. Porém, aos 29 minutos do primeiro tempo, os Bhoys abriram o placar: após falta na meia-lua, uma cobrança ensaiada terminou no chute de Tommy Gemmell, no canto esquerdo de Pieters Graafland, que teve a visão tapada.

Mas não duraria mais do que dois minutos a vantagem escocesa. Aos 31, pela direita, o árbitro italiano Concetto Lo Bello apitou falta. Hasil cobrou, e a bola foi disputada de cabeça, até que Israël completou, também testando, sobre Williams. Era o gol de empate.

Sem mais gols, a partida foi para a prorrogação. E nela continuaria empatada, até os 12 minutos da segunda parte do tempo extra. No meio-campo, Lo Bello apitou falta. A bola foi lançada para a área. Billy McNeill, capitão do Celtic, tocou com a mão. Porém, o árbitro deu a lei da vantagem, o artilheiro Kindvall dominou pela esquerda e tocou na saída de Willians. Era o gol do título. Do primeiro título europeu de um clube holandês. E Israël levantou a taça.

"Ijzeren Rinus" Israël já erguera o troféu da Copa dos Campeões. E ergueu o do Mundial Interclubes (Arquivo ANP)
Desafio ainda mais difícil

A disputa do Mundial Interclubes, porém, seria ainda mais desafiadora. Afinal de contas, o time de Ernst Happel (com Treytel de volta ao gol, já que Pieters Graafland encerrou a carreira depois do título europeu) teria pela frente o lendário Estudiantes. O time de Osvaldo Zubeldía, tricampeão sul-americano, campeão mundial em 1968, que contava com Oscar Malbernat, Carlos Pachamé, Carlos Bilardo, Juan Ramón Verón… temido tanto pela habilidade quanto pelos ameaçadores expedientes extracampo que usava costumeiramente.

E o primeiro jogo para o Feyenoord seria fora de casa, em La Bombonera, no dia 26 de agosto de 1970. E parecia que o Estudiantes iria fazer mais uma vítima: rapidamente, Juan Miguel Echecopar fez 1 a 0, e Verón ampliou a vantagem dos Pinchas. Todavia, o time holandês teria uma importante reação: ainda no primeiro tempo, Van Hanegem diminuiu. E, no segundo, Kindvall apareceu mais uma vez, empatando o jogo. Um placar ótimo para a volta, em Roterdã.

Porém, no dia 9 de setembro, o time de La Plata fazia jogo duríssimo, impedindo que o clube da Het Legioen marcasse e mantendo o empate sem gols, que forçaria um jogo extra para a decisão do título. Até que, no intervalo, Ernst Happel trocou Coen Moulijn por um defensor, Joop van Daele – que jogava de óculos (curiosidade importante para daqui a pouco). E Van Daele seria o autor do gol que faria a Het Legioen, a fanática torcida, explodir. O gol que fazia do Feyenoord o primeiro holandês campeão mundial.

Daí, mais uma história se somaria ao incrível anedotário daquele Estudiantes. Irritados e inconformados com os óculos de Van Daele, os jogadores da equipe argentina foram protestar após o gol. Malbernat resolveu o problema a seu modo: chegou a Van Daele, tirou seus óculos e começou a pisar em cima deles, dizendo: “Você não pode jogar de óculos. Não na América do Sul.” Hoje, o óculos quebrado de Van Daele está no museu do clube. Como um bálsamo que, diante dos difíceis tempos atuais, é a principal lembrança do tempo mais feliz da história do Feyenoord.

(Texto originalmente publicado na Trivela, em 8 de novembro de 2010)

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Como não amar?

Jogadores aplaudiram a torcida ao fim do jogo. O Ajax mereceu muitos aplausos mais (ANP/Pro Shots)

O tremendo sofrimento passado para conseguir superar o Schalke 04 e chegar onde chegou - isto é, nas semifinais da Liga Europa - fazia crer que o Ajax, aparentemente, já conseguira ir longe demais. Recuperar um pouco do respeito, com a primeira semifinal continental em 20 anos, já servia para massagear o ego dos Ajacieden. Seria demais superar o Lyon, com um time tão talentoso quanto é o holandês, e uma geração tão promissora (Corentin Tolisso, Lucas Tousart, Maxwel Cornet, Nabil Fekir) quanto a que se vê na Amsterdam Arena - quase Johan Cruyff Arena -, em que pesasse a ausência de Alexandre Lacazette, começando o jogo no banco por causa de uma lesão. 

Pois é: foi demais. Nem pareceu que seria: mais acelerados pelas laterais nos primeiros 15 minutos de jogo, os Gones conseguiam criar mais chances quando tinham a bola nos pés. Além do mais, com uma defesa inicialmente bem postada, a equipe lionesa continha facilmente as tíbias tentativas dos Godenzonen, mesmo que ela tentasse trocar passes e manter a posse. Já parecia claro para quem lotou a Amsterdam Arena: o Lyon não ofereceria as mesmas facilidades que o Schalke 04 oferecera no jogo de ida das quartas. Mais do que isso: o OL parecia até mais próximo do primeiro gol. Era necessário ter sorte. Aos 25', o Ajax teve, com a cobrança perfeita de falta por Hakim Ziyech, o desvio providencial de Bertrand Traoré, e o gol que abriu o caminho para o 4 a 1 que foi demais.

E foi demais principalmente porque, após abrir o placar, o Ajax impôs seu estilo, como se o Lyon não fosse um time mais experimentado nas lides europeias. A defesa do Ajax passou a dar menos espaços para os jogadores lioneses - principalmente, pelo crescimento visível dos dois laterais em campo e, principalmente, pelas ótimas atuações de Matthijs de Ligt e André Onana. Após as falhas na estreia pela seleção holandesa, De Ligt está voltando a apresentar um nível técnico dos mais promissores - e dos mais invejáveis para alguém com 17 anos (o mais jovem jogador holandês a ter atuado numa semifinal de torneio continental). Onana assusta às vezes nas saídas de gol, mas é suficientemente ágil para fazer defesas salvadoras - como em chutes de Cornet, no primeiro tempo, e Fekir, no segundo.

Com a defesa cuidando bem de suas tarefas, o ataque precisava aproveitar suas chances, para não dar ao Lyon as esperanças que o Schalke 04 teve no jogo de volta. Kasper Dolberg fez isso muito bem, aos 34': num átimo, Mouctar Diakhabi demorou para voltar após má reposição de bola do goleiro Anthony Lopes, e o atacante dinamarquês pegou a bola para o chute cruzado do 2 a 0, seu 5º gol pela Liga Europa. Mas Amin Younes falhou, ao perder chance valiosa para o terceiro gol, aos 44', arrematando para grande defesa de Lopes. Pelo menos, o alemão compensou isso da melhor maneira possível: fazendo 3 a 0, logo no início do segundo tempo (48', mais precisamente), em chute que não daria em gol, não fosse a atenção de um dos auxiliares, que notou a bola passando da linha.

Aí se viu o mais prazeroso: um Ajax destemido, sabendo o que desejava - atacar mais, criar mais chances, para se aproximar bastante da final em Estocolmo. Atacou tanto que o Lyon começou a chegar, lembrando que também é ótimo time. E coroou essas tentativas com o gol de Mathieu Valbuena, em belo chute no ângulo direito de Onana, aos 65'. Susto? Sim. Mas durou pouco, com o segundo gol de Traoré, fecho apropriado para belíssima troca de passes, aos 71'.

Younes insinuante nos dribles; Traoré com dois gols decisivos; Ziyech com três passes para gol. Só podia dar em goleada (ANP/Pro Shots)
Porém, mais do que a goleada empolgante ("Poderia ter sido 8 a 3, ou 7 a 4", reconheceu Peter Bosz), mais do que o clima alegremente incendiário entre os torcedores (no fim do jogo, já se gritava "Wij gaan naar Stockholm" - "Vamos a Estocolmo"), o que agradou foi ver um Ajax destemido, um Ajax ofensivo, um Ajax que parece ter se lembrado: é um time grande, um gigante europeu. Tudo isso expresso em declarações como as do capitão Davy Klaassen após o jogo, à emissora de tevê RTL: "Não vamos deixar escapar. Foi até bom ter passado pelo que passamos contra o Schalke, pois aprendemos a lição. Será idiotice se permitirmos [a virada do Lyon]". 

Até por isso, as reações simpáticas à goleada. Na Holanda e fora dela. Como não amar quando o Ajax se porta como Ajax?