sábado, 31 de outubro de 2020

Grandes laranjas: Van Basten

Pelo que fez enquanto pôde jogar, Van Basten sempre receberá aplausos (Bongarts/Getty Images)

É raro ver um jogador apelidado de "cisne". Mas poucos deles mereceram tanto o epíteto quanto Marco van Basten. Bastou vê-lo em campo para não se esquecer: a facilidade e suavidade dos movimentos do atacante holandês na área, com a bola nos pés ou não, já o tornavam um atacante absolutamente diferenciado. Tão diferenciado que foi justamente com o animal citado na primeira fase do texto que Van Basten foi apelidado na Holanda (Países Baixos): "Cisne Holandês", ou mesmo "Cisne de Utrecht", sua cidade natal. 

Mas não era só pela movimentação que Van Basten merecia todos os elogios. Afinal, ele era atacante. Atacantes têm como sua principal característica os gols. E o nativo de Utrecht os fazia. Melhor ainda: com a bola nos pés, mostrava uma técnica gigantesca, que lhe possibilitava fazer várias funções. Ser o principal centroavante? Van Basten era, e sabia usar da técnica e do bom porte físico (alto - 1,88m - e magro) para proteger a bola e finalizar. Voltar para buscar jogo fora da área? Van Basten voltava, fazendo boas jogadas com os meio-campistas. Poder de finalização? Pois bem: era ótimo nos chutes e nos cabeceios, de perto ou de longe, e sabia se antecipar para concluir de maneiras até inimagináveis.

Por tudo isso, é quase unânime entre quem acompanhou futebol no fim da década de 1980 e no começo da década de 1990: Van Basten era um dos melhores atacantes do mundo naquela época - para muitos, o melhor. Na Holanda, virou o símbolo de uma geração - e, raro dizer, uma geração vitoriosa. Outra coisa unânime: muito se lamenta o fim precoce de sua carreira, pelos problemas no tornozelo que o atormentaram desde quando ela começou, praticamente. Nada melhor do que um texto, então, para celebrar os 56 anos de Marco van Basten - segundo algumas fontes, "Marcel" van Basten.

Já durante infância e adolescência, Van Basten começou a sofrer com lesões (Arquivo pessoal)

O começo: inspirado pelo pai, machucado pela vida

Nascido em Utrecht, no dia 31 de outubro de 1964, Van Basten teve uma inspiração dentro de casa: seu pai, Joop van Basten (1930-2014), não só era jogador, mas também seguiu no futebol após parar nos campos, treinando várias equipes amadoras pela Holanda (Países Baixos). Percebendo o talento que tinha em casa, Joop não demorou: começou a treinar fundamentos com o pequeno Marco, ainda em casa. E já em 1970, aos 6 anos, Van Basten "filho" começou a jogar no EDO, clube amador de Utrecht. Depois, foi para mais um clube municipal, o UVV. Tudo isso, sendo acompanhado pelo pai, figura eternamente presente em sua vida - enquanto viveu, Joop cuidou de um verdadeiro "museu" de Marco em sua casa, com todos os prêmios e vários itens que o filho colecionou ao longo da carreira. E enquanto o filho atuou nos Países Baixos, Joop nunca deixava de ir ao estádio.

Exemplo dentro de casa: enquanto jogou, Van Basten teve o pai Joop como principal incentivador (Pro Shots)

Entretanto, se foi inspirado pelo pai, Van Basten também foi machucado pela vida. Primeiro, por um acontecimento externo e traumático. Ainda quando criança, na cidade de Maarssen, ele patinava sob um rio congelado, com um amigo, apelidado "Jopie", que caiu num buraco aberto no gelo. Van Basten fez o que podia para trazer ajuda, mas o amigo morreu afogado e congelado na sua frente. Muito se diz que o falecimento de "Jopie" deixou marcas eternas na personalidade de Marco, considerado altivo e distante - para muitos, até excessivamente arrogante.

Já na adolescência, também começou um problema que perturbaria Van Basten durante toda a sua carreira, antes e durante a fase profissional dela: as lesões no tornozelo. Aos 15 anos, ainda no UVV de Utrecht, ele foi examinado pelo ortopedista Rein Strikwerda, que trabalhava no conhecido Utrecht. E o médico foi sucinto ao dizer que seus dois tornozelos não estavam bem, e que ele deveria parar de jogar. Caso contrário, corria até risco de precisar de uma cadeira de rodas, em alguns anos. 

Marco e o pai decidiram que ele continuaria. Logo depois, foi para o Elinkwijk, outro clube amador da cidade natal. Ali Aad de Mos, então técnico do Ajax, viu qualidades no garoto, levando-o para Amsterdã. E aos 17 anos, Van Basten iniciava sua carreira profissional. Sua primeira partida foi contra o NEC, em 3 de abril de 1982, pelo Campeonato Holandês da temporada 1981/82. E ele... já fez gol, na goleada por 5 a 0. Logo em sua estreia pelos profissionais do Ajax. Como fizera... Johan Cruyff, que  acabara de retornar ao Ajax (primeiro como consultor técnico, depois de volta aos campos). Por muito tempo em sua vida, Cruyff tratou e cuidou de Van Basten como se fosse um pupilo, um "sucessor".

Antes mesmo dos 20 anos de idade, na seleção sub-20 ou na principal, Van Basten já indicava que teria grande futuro na Holanda (Pics United)

No Ajax e na seleção, um começo fulgurante

Dali em diante, o desenvolvimento de Van Basten foi fulgurante. Em 1983, numa fase de reformulação na seleção holandesa, Van Basten foi convocado para o Mundial Sub-20 daquele ano - e com dois gols e a titularidade absoluta, já ajudou na campanha da Holanda, eliminada pela vice-campeã Argentina nas quartas de final. E em setembro do mesmo 1983, Van Basten estreou na seleção principal, que vivia fase turbulenta nas eliminatórias da Euro 1984. Junto a nomes como Frank Rijkaard, seu colega no Ajax, e Ruud Gullit, já brilhando no Feyenoord, Van Basten era um dos símbolos de uma geração que poderia trazer dias melhores à Laranja. E provou isso na partida em que fez seu primeiro gol por ela: a virada por 3 a 2 para cima da Irlanda, nas eliminatórias da Euro, fora de casa. A Holanda ficou de fora daquela competição continental, mas Van Basten já sinalizava que era promissor.

Até porque Van Basten já era absoluto no Ajax, mesmo recém-entrado na faixa dos 20 anos de idade. Justificava isso em campo. Começou na temporada 1983/84, com um desempenho positivamente absurdo: 28 gols em 26 jogos, e a primeira artilharia do Campeonato Holandês. Em 1984/85, de novo goleador da Eredivisie (22 gols). Na temporada 1985/86, com o "tutor futebolístico" Cruyff como técnico do Ajax, ele deu o sinal mais forte à Europa de que era alguém merecedor de toda atenção: 37 gols em 26 jogos. Não só foi goleador do Holandês pela terceira temporada seguida: foi o Chuteira de Ouro europeia daquela temporada, como quem mais gols fez no futebol do Velho Continente.


A torcida do Ajax se acostumou a ver esta cena muitas e muitas vezes: Van Basten comemorando, o adversário lamentando. Foram quatro artilharias seguidas na Eredivisie (Pics United)

Paralelamente a isso tudo, mais um fator importante perturbava sua vida pessoal. Em 16 de outubro de 1985, Leny van Basten, mãe de Marco, sofreu um AVC, enquanto o filho jogava pela seleção holandesa, na repescagem das eliminatórias para a Copa de 1986. Duas semanas depois de ser internada, Leny sofreu um infarto. Passou a necessitar de ajuda para viver, e perdeu parte da memória. Se era presença massiva na carreira do filho, Joop van Basten teve de intercalar isso com as ajudas à esposa, até a morte dela. E Van Basten filho teve de deixar a casa dos pais, indo viver com Liesbeth van Capelleveen, então namorada – e há 27 anos, esposa e mãe de seus três filhos. Coisas das quais quase nunca fala: já desde os anos 1980, Van Basten se opõe a qualquer menção à vida privada em entrevistas.

Em campo, a ausência da seleção holandesa (da qual já era titular absoluto) na Copa de 1986  atrapalhava um pouco o reconhecimento internacional de Van Basten. Mas só um pouco: o que o jovem de Utrecht fazia no Ajax era suficiente, pelo menos na Europa. E a temporada 1986/87 provou isso. Na liga neerlandesa, Van Basten foi artilheiro pela quarta vez consecutiva. Pela segunda vez seguida, com mais de um gol por jogo na Eredivisie: 31 gols em 27 partidas pelo Ajax. Entre esses gols, aquele que considera, até hoje, o mais bonito de sua carreira: nos 3 a 1 contra o Den Bosch, pela 15ª rodada daquela Eredivisie, em 9 de novembro de 1986. Entrevistado pelo globoesporte.com, em 2014, quando completou 50 anos, Van Basten explicou a razão: "O gol da final da Eurocopa em 1988 foi particular, especial, mas é preciso um pouco de sorte. A acrobacia com o Ajax é mais bonita".

Porém, o desenvolvimento de Van Basten ocorreu do lado ruim, também. Em 7 de dezembro de 1986, após tentar cometer falta em Edwin Oude Riekerink, do Groningen, num jogo do Campeonato Holandês, o próprio Van Basten lesionou seu tornozelo direito. Começava ali a série de cirurgias. Johan Cruyff não quis saber: esperou só algumas semanas e mandou o atacante voltar - Cruyff considerava que o atacante era indispensável para o time que treinava, e que jogar com dor fazia parte dos sacrifícios. Mesmo assim, bastou para Van Basten ser o personagem fundamental na conquista da Recopa Europeia da temporada 1986/87, inclusive marcando o único gol da final contra o Lokomotiv Leipzig, da então Alemanha Oriental.

O Ajax voltava a ter algum reconhecimento no futebol europeu. E Van Basten, mesmo com dor, mostrou o suficiente para ser trazido a peso de ouro pelo Milan. Foi escolhido a dedo por Silvio Berlusconi (presidente do Milan), Adriano Galliani (diretor geral milanista) e Arrigo Sacchi (técnico do rubro-negro de Milão) para chegar ao clube, antes da temporada 1987/88. Deixou gols e mais gols para serem sempre lembrados no Ajax. Mais precisamente, 153 gols em 172 partidas - todos eles lembrados neste vídeo do clube de Amsterdã, disponibilizado no ano passado.

No Milan, Van Basten teve até folga das lesões. E chegou ao auge, como um dos melhores atacantes do mundo (Getty Images)

No Milan e na seleção, Van Basten chega ao apogeu

Na temporada 1987/88, sua primeira nos Rossoneri, o holandês mal jogou pelo Campeonato Italiano. Somente 11 jogos, com três gols. Pior: em dezembro de 1987, teve de voltar à mesa de cirurgia, para novamente operar o tornozelo direito. Ali o cirurgião René Marti, “fiel escudeiro”, descobriu o problema: a cartilagem no local estava completamente comprometida. Van Basten voltou aos campos já na parte final da temporada, e ainda teve tempo de marcar um gol na vitória milanista por 3 a 2 sobre o Napoli de Maradona e Careca, triunfo fundamental para a conquista rossonera da Serie A. Mas ficara a dúvida: convocado para a Euro 1988, ele conseguiria estar em forma ali? O técnico Rinus Michels desconfiava que não - tanto que John Bosman estreou naquela Euro como titular.

Van Basten só se tornou titular da Holanda na segunda partida daquela Euro, contra a Inglaterra. Já nela, começou a dar a resposta: fez os três gols da vitória da Laranja por 3 a 1. E concluiu a resposta ao longo do torneio: cinco gols, a artilharia do torneio europeu de seleções e o posto de principal destaque não só da Holanda campeã, mas daquela competição. Tudo coroado com a obra-prima que Van Basten fez, na final da Euro, contra a União Soviética - obra-prima conseguida mais "por sorte", como o próprio afirma: durante a comemoração, perguntado como fizera aquilo pelo colega de time Jan Wouters, Van Basten afirmou: "Eu não sei". Aquele que começara o torneio na reserva da Oranje saía dele completamente consagrado.

Ali começava a melhor fase da carreira de Van Basten. Já no fim de 1988, ele recebeu a "Bola de Ouro" da revista France Football, como melhor jogador da Europa. E na temporada 1988/89, 24-para-25 anos de idade, Van Basten viveu o seu apogeu. Seu estilo de técnica refinada, de atacante que sabia não só fazer gols mas também armar jogadas, trouxe vários apelidos: San Marco, “Gazela”, “Cisne Holandês”. E vários títulos: fundamental nas conquistas da Copa dos Campeões e do Mundial Interclubes pelo Milan, foi novamente eleito o melhor jogador europeu pela France Football. Junto dos compatriotas Frank Rijkaard e Ruud Gullit, Van Basten era o símbolo de uma fase histórica do clube rossonero.

Em 1990, o Milan perdeu o título italiano para o Napoli. Mas Van Basten foi artilheiro da Serie A do Calcio pela primeira vez na carreira (19 gols). De quebra, o Milan alcançou o bicampeonato da Copa dos Campeões. Dois fatores que tornavam bastante saborosa a imaginação sobre o que "San Marco" poderia fazer na Copa do Mundo daquele ano, como um dos principais atacantes do planeta e grande esperança da seleção da Holanda. Mas ali, Van Basten decepcionou. Naufragou em meio a um elenco cheio de problemas de relacionamentos, mostrou-se cansado e apagado. Não fez gol na Copa, não trazia perigo às defesas, nada. Nem o bicampeonato mundial ganho pelo Milan no fim de 1990 apagou o fato de que ele fora a grande surpresa negativa daquela Copa, entre os jogadores.

Era preciso reagir. E Van Basten fez isso. Principalmente em 1992. O nativo de Utrecht trouxe desempenhos assombrosos pelo Milan – já então, de Fabio Capello, credenciado pela campanha invicta no título italiano de 1991/92. Mesmo num clube cheio de atacantes de bom nível (Stefano Eranio, Gianluigi Lentini, Jean-Pierre Papin, Daniele Massaro), o holandês era a estrela principal - e provou isso com mais uma artilharia no Italiano (25 gols). Com atuações primorosas – destaque para o 4 a 0 contra o IFK Göteborg sueco, pela fase de grupos semifinal da Copa dos Campeões 1992/93, os quatro gols de Van Basten -, conseguiu o feito de unificar os títulos de melhor jogador europeu, pela France Football, e de melhor jogador do mundo, pela FIFA. Nem mesmo uma nova falha pela seleção da Holanda (perdeu um pênalti decisivo na semifinal da Eurocopa, contra a Dinamarca) diminuía a impressão de que Van Basten voltara com tudo em 1992. E que era o melhor atacante do mundo naquele ano.

Os problemas no tornozelo - e as más cirurgias - vencem Van Basten

Porém, justamente na semana em que recebeu o troféu da FIFA em 1992, o holandês teve o golpe mais duro entre os tantos da carreira. Quando o Milan enfrentava o Ancona, em 13 de dezembro de 1992, pelo Campeonato Italiano, Van Basten sofreu entrada dura em seu tornozelo direito, que foi operado, em 21 de dezembro de 1992. O mesmo René Marti que o operara antes retirou pedaços da cartilagem e de ossos do tornozelo. E a partir dali, deu um prognóstico pessimista. Que se confirmou: em 1993, Van Basten esteve em apenas três jogos, incluindo atuação apagada na final da Liga dos Campeões. 

Aquela decisão foi sua última partida profissional: logo depois, outra cirurgia, desta vez com o médico belga Marc Martens. O jogador esperava recuperar-se a ponto de ser convocado para a Copa de 1994. Não só não deu certo, como ele ainda passou por mais uma intervenção no tornozelo. De tantas cirurgias mal feitas, o local já lesionado estava naturalmente desgastado. Até que em agosto de 1995, após mais de dois anos esperando voltar, o segundo melhor jogador da história do futebol holandês desistiu: “Eu não melhorei. Só de ficar em pé o tornozelo já dói, só com uma partidinha de tênis ele já dói. E não sei se os doutores sempre me ajudaram, já que de 1992 para frente a situação só piorou”. 

Em 18 de agosto de 1995, aos 30 anos de idade (dois meses e 13 dias antes de completar 31), Van Basten entrou em campo vestido à paisana, para se despedir da torcida presente ao Giuseppe Meazza, estádio no bairro de San Siro, onde o Milan enfrentaria a Juventus na disputa do Troféu Berlusconi, um torneio amistoso. Ainda técnico do Milan então, Fabio Capello simbolizou como aquela despedida era lamentada: sentado no banco de reservas, Capello chorou copiosamente. Em 2014, numa matéria da revista Voetbal International que celebrava os 50 anos de Van Basten, o treinador italiano repetiu o lamento: “Quando vejo de novo as imagens da despedida dele em San Siro, ainda me sinto comovido. Eu sentia uma injustiça enorme no fato de que ele teria de parar”.

Um dia o trauma acabou. E fora de campo, Van Basten voltou ao futebol

As dores no tornozelo de Van Basten só pararam com uma cirurgia em 1996, quando os ossos do local foram fixados com parafusos. Os problemas estavam terminados. Só ficava o trauma de ter parado tão cedo. E as marcas no corpo: Van Basten passou a mancar levemente da perna direita, já não conseguiria fazer os giros de corpo que tão bem fazia em campo, e não poderia mais jogar futebol por longo tempo - desde então, Van Basten só entrou em campo para jogar em alguns minutos das partidas de despedida de Dennis Bergkamp e Demetrio Albertini, ambas em 2006. De resto, nunca mais.

Nos primeiros anos pós-futebol, o ex-jogador ficou bem distante do esporte que lhe dera fama: somente jogava golfe, esporte que até hoje pratica - até mesmo jogando em alguns torneios. Esse afastamento do esporte ocorreu até 2001: certo dia daquele ano, Van Basten visitou o ex-atacante John van’t Schip, colega dos tempos de início de carreira no Ajax, onde já treinava equipes das categorias de base. Van Basten pensou que talvez fosse bom recomeçar daquela maneira. Foi convidado por Van't Schip para ajudá-lo. E foi ali que Van Basten voltou ao futebol: como técnico do time B do Ajax, entre 2003 e 2004. Seu retorno era paulatino e tranquilo, mas isso durou só uma temporada. 

Com experiência quase nula e alguns problemas de relacionamento, Van Basten passou longe da unanimidade como técnico da seleção (Martin Bureau/AFP/Getty Images)

Já em 2004, por sugestão do velho tutor Johan Cruyff à federação, Van Basten foi escolhido para treinar a seleção holandesa, voltando aos holofotes mesmo com experiência quase nula, com a função de reformular uma seleção que via terminar a geração brilhante dos anos 1990 - e começar a geração que brilharia nas Copas de 2010 e 2014. Nos quatro anos em que comandou a Laranja, Van Basten passou longe da unanimidade. Sob o comando do ex-atacante, a Holanda nunca chegou a empolgar. Para piorar, como técnico, ele teve problemas de relacionamento. Clarence Seedorf e Edgar Davids se irritaram com o que julgaram falta de consideração de Van Basten, e mesmo com algumas partidas sob seu comando na seleção, Davids sequer foi convocado para a Copa de 2006, enquanto Seedorf desistiu da Euro 2008 ao ser pré-convocado sem garantias de que seria titular. Durante a Copa de 2006, Van Basten ainda brigou com Mark van Bommel, que jurou - e cumpriu - não voltar à Laranja enquanto ele fosse o técnico. Ainda naquele mundial, Ruud van Nistelrooy foi deixado no banco por Van Basten durante todo o jogo da eliminação, nas oitavas de final, contra Portugal - e chegou até a abandonar temporariamente a seleção.

Na Euro 2008, quando a Holanda enfim rendeu bem sob seu comando, Van Basten já estava de saída marcada, para o Ajax, que pretendia reformular-se internamente. Mas o que podia ser uma parceria frutuosa com Johan Cruyff, seu mestre, terminou logo no começo: Cruyff saiu ao ter o projeto de mudar as categorias de base censurado por Van Basten. E a relação entre os dois nunca mais foi a mesma. Pior: o Ajax foi humilhado várias vezes na temporada 2008/09 (terminou a Eredivisie na terceira colocação, atrás de AZ e Twente), e Van Basten se demitiu antes mesmo do fim da liga. Perfeccionista, achava que jamais conseguiria melhorar a equipe onde tudo começou.

O ex-atacante só voltou a ser técnico no Heerenveen, entre 2012 e 2014. Fez um trabalho razoável. Tanto que, antes da temporada 2014/15 da Eredivisie, foi contratado pelo AZ. Num clube um pouco mais ambicioso, poderia ser a grande oportunidade de reconquistar algum crédito como técnico. Mas 2014 foi um ano de emoções fortes demais para quem fazia 50 anos. Em julho, morreu o pai Joop, seu grande incentivador. O trauma de perder o principal responsável por sua carreira no futebol somou-se ao perfeccionismo excessivo que Marco sempre teve. Algumas crises de ansiedade foram suficientes para que Van Basten abrisse mão do trabalho no AZ. Primeiro, pedindo licença do cargo de técnico, em setembro. Depois, decidindo encerrar a carreira de técnico, para virar auxiliar. Então, Van Basten justificou: "A vida é uma só para todos, e temos de torná-la melhor, pelo menos”. 

Van Basten encerrou a carreira de técnico - mas segue no futebol, e segue com algumas polêmicas (VI Images/Getty Images)

O que não quer dizer que Van Basten voltou a se afastar do mundo do futebol. Até voltou à seleção holandesa, sendo auxiliar técnico de Danny Blind, entre 2015 e 2016. Nesse ano, o ex-atacante deixou a comissão técnica da seleção, contratado pela FIFA como conselheiro técnico. Também não deu certo: algumas de suas sugestões, como o fim do impedimento, foram muito mal vistas, e Van Basten deixou o cargo em 2018. Foi quando ele abriu sua faceta de comentarista: primeiro na FOX Sports holandesa, depois em outro canal a cabo, o Ziggo Sport. E houve pelo menos uma polêmica: em 2019, fazendo uma gozação com o sotaque do repórter Hans Kraay ao falar alemão, Van Basten proferiu a saudação nazista "sieg heil". Pegou mal: com fortes críticas pelo gracejo sem graça, não só o ex-atacante pediu desculpas, mas foi suspenso por uma semana pela FOX Sports, onde trabalhava. Houve consequências até no FIFA 19: sua carta no modo "Ultimate Team" foi retirada após a celeuma.

Atualmente, no Ziggo Sport, Van Basten vez por outra divide espaço nas mesas redondas até com nomes como seu histórico parceiro Ruud Gullit. Mas o que ficará de sua trajetória no futebol é o que fez dentro dos campos. Todos os que o viram jogar lamentam ter durado tão pouco. Mas, como compôs e cantou o outro, talvez foi por ter durado pouco que sua carreira como jogador foi inesquecível. 

(Adaptação e atualização do texto feito por Felipe dos Santos Souza para a Trivela, quando Van Basten completou 50 anos de idade, em 31 de outubro de 2014)

Marco (em algumas fontes, Marcel) van Basten
Data de nascimento: 31 de outubro de 1964, em Utrecht
Clubes: Ajax (1982 a 1987) e Milan-ITA (1987 a 1995)
Seleção: 58 jogos e 24 gols, entre 1983 e 1992

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Holandês (não) quis apito

A primeira rodada da fase de grupos da Liga Europa inverteu a "gangorra" que se esperava entre os clubes holandeses - o AZ com vitória elogiável contra o Napoli, enquanto o Feyenoord amargava um empate que podia ser vitória contra o Dinamo Zagreb, e o PSV decepcionara pela virada sofrida para o Granada espanhol. E a situação seguiu a mesma na segunda rodada, nesta quinta: o time de Alkmaar mostrou ampla superioridade em relação ao adversário, enquanto as equipes de Roterdã e Eindhoven sofreram demais - os Boeren ainda superaram seus problemas, ao passo que o Stadionclub sofreu goleada lamentável. No entanto, tais problemas não ocorreram só por demérito: também vieram da arbitragem.

Sim, o Feyenoord mereceu a derrota duríssima para o Wolfsberger, em casa. Mas as decisões polêmicas do juiz Srdjan Jovanovic prejudicaram ainda mais (BSR Photo Agency)

Principalmente no caso do Feyenoord. O trio de arbitragem da Ucrânia que apitaria o jogo contra o Wolfsberger, da Áustria, precisou ser trocado às pressas: o juiz Mykola Balakin e os auxiliares Andriy Skrypka e Semen Shlonchak testaram positivo para o novo coronavírus. Eis que o árbitro sérvio Srdjan Jovanovic foi para o jogo em De Kuip. Com quatro minutos, um aparente tropeço de Christopher Wernitzig em Eric Botteghin (titular no lugar do suspenso Marcos Senesi) virou pênalti no apito de Jovanovic: Michael Liendl, capitão do Wolfsberger, bateu e fez 1 a 0. Ainda no início do primeiro tempo, aos 13', outra queda de Wernitzig, após leve empurrão de Bart Nieuwkoop, rendeu o mesmo fim: pênalti, Liendl, gol. Uma desvantagem de dois gols já era pesada demais para os Feyenoorders. 

Mas se o juiz errou, o ataque do time da casa também errou demais em De Kuip. No primeiro tempo, pela troca de passes infrutífera, sem achar espaço algum na defesa do Wolfsberger; no segundo, logo após Steven Berghuis diminuir para 2 a 1 aos 54', tanto Bryan Linssen quanto Mark Diemers perderam várias chances de gol. Fizeram falta. Porque, aos 60', de tanto atacar, o Feyenoord deixou espaço à vontade para o contra-ataque que rendeu o terceiro gol do adversário - e o terceiro gol de Liendl. E aos 66', no pênalti mais "marcável" que o Wolfsberger teve a seu favor (de fato, o goleiro Justin Bijlow foi duro demais na dividida aérea), Dejan Joveljic fez o 4 a 1 de uma goleada vexatória. Sim, a arbitragem foi polêmica - sem o VAR na fase de grupos da Liga Europa, pelo menos dois pênaltis muito duvidosos foram confirmados. Ainda assim, tanto Berghuis quanto o técnico Dick Advocaat reconheceram calmamente à FOX Sports holandesa: o Feyenoord fora goleado por seus próprios erros (para o atacante, o Feyenoord "começou mal o jogo; já o técnico foi definitivo ao comentar que "foi por nossa própria culpa"). Com apenas um ponto no grupo K, os jogos contra o CSKA Moscou, um dos mais fortes da chave, viram decisivos.

O PSV viu um erro de arbitragem render um gol belíssimo do Omonia Nicósia. E sofreu, mas Malen conseguiu trazer a vitória importante, nos acréscimos (AP)

O PSV não tinha tanta culpa assim dos problemas que o vitimaram antes da viagem ao Chipre, para o jogo contra o Omonia Nicósia. Problemas que residiam principalmente num problema: o surto de infecções pelo novo coronavírus, tanto pelos desfalques (Denzel Dumfries, Pablo Rosario, Cody Gakpo) quanto pelos recuperados que viajaram a Nicósia mas foram barrados (Eran Zahavi e Jordan Teze tiveram de voltar à Holanda - o zagueiro Teze foi liberado para retornar ao Chipre apenas nesta mesma quinta, horas antes do jogo). Ainda assim, os Eindhovenaren tiveram mais posse de bola e foram francamente superiores ao Omonia. Só não chutavam muito a gol. E amargaram um erro de arbitragem ao ver o time cipriota fazer 1 a 0, ainda que de forma belíssima - aos 29', o juiz até marcara falta, mas a bola seguiu rolando levemente, e Jordi Gómez aproveitou para cobrar, antes do meio-campo. Com o VAR, seria irregular. Sem ele, a cobrança do meio-campo espanhol pegou o goleiro Yvon Mvogo desnecessariamente adiantado, e configurou um golaço para o 1 a 0 do Omonia.

Pelo menos, o PSV não demorou para empatar rapidamente - ainda no primeiro tempo, Noni Madueke (titular e boa atuação) cruzou rasteiro para Donyell Malen escorar às redes, aos 40'. Na etapa complementar, os visitantes holandeses até criaram algumas chances vez por outra, mas esbarraram ou na própria lentidão, ou na própria incompetência para furar a barreira do Omonia na área. Basta lembrar a chance que Mohamed Ihattaren perdeu aos 73', chutando da pequena área em cima de dois zagueiros. Ou então, Malen, que só errou na má conclusão de uma boa jogada, aos 84'. Todavia, uma hora o time de Eindhoven acertou: na última hora, aos 90' + 3, quando Mario Götze (novamente titular, jogou os 90 minutos) deixou Malen livre para marcar o 2 a 1 de uma vitória que recoloca o PSV na disputa do grupo E. Só resta agora mais atenção, diante do traiçoeiro PAOK, adversário das próximas rodadas.

Gudmundsson (à esquerda) e Koopmeiners impulsionaram a goleada do AZ: o time dominante e esforçado da Liga Europa nem parece o mesmo que tropeça no Campeonato Holandês (ANP)

Após as duas primeiras rodadas, quem mais está relaxado por enquanto é o time que mais era considerado candidato à eliminação: o AZ. Também, pudera: a dureza vista contra o Napoli foi trocada por uma partida sossegada contra o Rijeka croata. Já aos 6', o pênalti marcado foi a favor, após Dani de Wit ser derrubado - e Teun Koopmeiners converteu para o 1 a 0. Aos 20', um passe preciso de Fredrik Midtsjo, em profundidade, alcançou Albert Gudmundsson, que fez 2 a 0.

A vitória dos Alkmaarders já estava encaminhada. E ficou mais facilitada ainda no segundo tempo, quando o sueco Jesper Karlsson confirmou seu ótimo começo pelo clube holandês ao fazer 3 a 0, aos 51', e Gudmundsson confirmou sua excelente atuação ao marcar o quarto gol, seu segundo na partida, completando ótimo ataque iniciado por Koopmeiners e continuado por Calvin Stengs, aos 60'. Nem mesmo o gol de honra do Rijeka (Sandro Kulenovic, aos 72') atrapalhou a sensação de que o AZ se fortaleceu, como líder de momento no grupo F da Liga Europa, prometendo equilíbrio nos jogos contra a Real Sociedad. Nem parece o mesmo AZ que desperdiça vitórias tão facilmente na Eredivisie...

Mas o AZ foi o único a conseguir vencer sem problemas. De resto, Feyenoord e PSV lamentaram, além dos próprios problemas, os erros de arbitragem. Nesta quinta-feira, holandês quis apito - ou não. Se não derem nas próximas partidas, o pau pode comer, citando a antiga marchinha de carnaval. 

Grandes laranjas: Van der Sar

A Holanda teve bons e maus goleiros ao longo da história de seu futebol. Nenhum como Edwin van der Sar, o maior de todos eles (Dimitar Dilkoff/AFP/Getty Images)

Ele pode não ter sido tão carismático quanto seus contemporâneos Oliver Kahn, Fabien Barthez ou José Luis Chilavert. Pode não ter ganho tantos títulos quanto Dida, Gianluigi Buffon ou Iker Casillas. Pode nem ter encantado tanto quanto Manuel Neuer ou Alisson encantam os torcedores atuais. Mas, mesmo discreto, mesmo com um momento de queda gigante na carreira, Edwin van der Sar ainda é - talvez sempre será - reconhecido como um dos grandes goleiros de sua geração. Afinal de contas, basta dizer que VDS foi, talvez, o único guarda-metas holandês a ser considerado por algum tempo o melhor do mundo. 

Ao longo dos seus 21 anos de carreira, "Sar" uniu várias das qualidades desejadas num grande goleiro: alto (1,97m), calmo, bom no posicionamento, ostentando poder de comando aos zagueiros com que atuou ao longo da carreira, liderança natural (não à toa, foi capitão da Holanda na reta final de sua permanência na seleção masculina). Mais do que isso: foi considerado um dos "pioneiros" na capacidade de tornar o goleiro capaz de se dar bem com a bola nos pés, tanto quanto com as mãos. Por tudo isso, merece este texto para celebrar sua carreira - e os 50 anos que completa neste 29 de outubro. 

Imagem pouco conhecida: a primeira foto particular de Van der Sar jogando no gol, ainda no Foreholte, clube amador em que se iniciou na infância (Arquivo familiar de Van der Sar/Reprodução)

De zagueiro, como o tio, a... "você é o mais alto do time, então tente"

Nascido em Voorhout, pequena cidade no oeste da Holanda, em 29 de outubro de 1970, o pequeno Edwin tinha na família um exemplo em quem se mirava no futebol, quando criança. Só não era goleiro: tio de Van der Sar, o zagueiro Kees Guyt (1953-2012) teve uma carreira discreta no futebol da Holanda, jogando por Volendam e AZ sem nunca ter chegado a um grande nível técnico. Mas ir ver "Ome Kees", (apelido familiar de Guyt) nos gramados, junto da mãe Rien e do pai Gus, já fazia despontar no garoto a vontade de brincar com a bola, mesmo sem pensar que aquilo poderia ser seu futuro profissional.

Aliás, por mais que gostasse de jogar bola na infância "sem stress, protegida" que teve na cidade natal - conforme descreveu ao jornalista Jaap Visser, em sua biografia, lançada em 2011 -, Van der Sar começou as práticas esportivas fazendo... judô, a partir dos 7 anos de idade, num clube de Voorhout. Até tirou ensinamentos do tatame para os gramados: "Como eu tinha aprendido a me segurar, as quedas nunca doíam. Talvez por isso não tenha achado ruim jogar como goleiro: eu não me preocupava mais em como cair, porque já não era um problema, eu não tinha medo".

Van der Sar (no centro da foto) gostava de jogar como zagueiro. Até que um dos colegas de time faltou, disseram que ele podia tentar o gol, já que era o mais alto... e ele seguiu lá (Arquivo particular de Van der Sar/Reprodução)

Mas logo Van der Sar levou para um clube amador o que já fazia normalmente nas ruas: jogar bola. Só não escolheu o clube em que seu pai também brincava com a bola, o GWS: Edwin foi para o Foreholte, mais perto de sua casa, e onde seus amigos de escola também estavam. E lá, VDS encontrou acidentalmente a posição na qual ficaria conhecido, conforme se recordou ao livro "The Soccer Goalkeeper Coach", do treinador de goleiros Maarten Arts: "Primeiro eu jogava na linha, mas aí eu cresci. E um dia, quando ficamos sem goleiro, todo mundo me falou 'você é o mais alto do time, então tente'. Começou assim, e nunca mais mudou". Elogiado pelo técnico e pelos pais, que iam ver suas partidas, Edwin foi ficando naquela posição. E concluiu, na biografia: "Foi assim que virei goleiro, foi por acidente, nunca foi minha meta na vida".

A brincadeira ficou séria. E a mudança para o Ajax, definida no carteado

Quando foi cursar o equivalente ao Ensino Médio, na cidade de Noordwijk, vizinha a Voorhout, Van der Sar ainda não encarava o futebol seriamente - até por pressão da mãe, cuja linha era a de "primeiro o estudo, depois o futebol". Assim, junto aos bate-bolas, ele fazia cursos profissionalizantes e ganhava algum dinheiro com pequenos empregos de meio-período, como entregador de jornais.

Foi assim até 1988. Na mesma classe de Van der Sar, estavam alguns jogadores do VV Noordwijk, clube amador ainda existente - e já um pouco mais sério do que o Foreholte era, tanto que disputava a Tweede Divisie (terceira divisão holandesa, que aliás ainda disputa). Sabendo como o colega jogava e precisando de um goleiro, os atletas de fim de semana sugeriram que Edwin se juntasse a eles no Noordwijk. Bastava ligar para Ruud Bröring, o treinador da equipe de juniores.

Edwin ligou, reticente. E Bröring o convidou para um teste na equipe. Van der Sar foi, ainda desconfiado. Mas foi aprovado: na semana seguinte, já estava treinando com vários dos colegas de escola nos juniores do VV Noordwijk. Ficaria melhor ainda: a equipe de juniores foi campeã holandesa em sua categoria, na temporada 1988/89. E o novato não só era titular: fora decisivo no jogo do título, não só pelas defesas, mas por abrir o placar contra o time amador do Sparta Rotterdam, vencido por 2 a 1. O próprio definiu, em sua biografia: "Foi um ano ótimo, decisivo na minha vida posterior". 

Foi no time de juniores do VV Noordwijk que Van der Sar (no centro da foto) começou a ter seu destino encaminhado: o futebol era o seu futuro (Arquivo familiar de Van der Sar)

De fato. Se Van der Sar ainda pensava em alternar a carreira amadora nos gramados a um diploma profissional (administrador de lojas a varejo), 1989 começou a direcionar o rumo de sua vida para o futebol profissional. Bem no gol dos juniores do VV Noordwijk, ele começa a atrair o interesse de clubes da Eredivisie. Primeiramente, do Sparta Rotterdam, no qual até chegou a treinar. Mas foi, literalmente, num lance de cartas que a vida do jovem alto começou a mudar.

Explica-se: Ruud Bröring, técnico do VV Noordwijk, fazia parte de um grupo de amigos, todos professores de educação física ou treinadores de futebol. Tal grupo costumava se reunir para um carteado, de vez em quando. E um dos membros da "rodinha do carteado" era... Louis van Gaal, então auxiliar técnico do Ajax, amigo de Bröring. Entre uma jogada e outra, Van Gaal comentou: procurava um goleiro e um ponta-direita para o clube de Amsterdã. Bröring respondeu: "Combinado, tenho os dois para você. Pode vir pegá-los quando quiser".

E após ver alguns jogos do VV Noordwijk, Van Gaal aprovou a vinda de Van der Sar (o ponta-direita foi Patrick Scheurwater, que não durou muito em Amsterdã, por razões pessoais). Quando o técnico do time principal do clube amador, John Eelman, foi tirar satisfações com Ruud Bröring, por ter cedido duas de suas promessas, Bröring respondeu, em lembranças à biografia: "Ah, cara, jovens assim você não consegue segurar, e nem se deve segurar só por uns trocados. Quando os jogadores são bons o bastante, você tem mais é de dar força para que eles sigam".

Van der Sar seguiu. Ainda tentou conciliar os juniores do Ajax com a escola em Noordwijk. No clube de Amsterdã, ia e vinha entre os juniores e o grupo principal, no qual treinava como terceiro goleiro. Até que em 1990, Leo Beenhakker, treinador da equipe profissional dos Ajacieden, veio falar com ele após um treino. Suas palavras foram definitivas: "Você pode escolher: termine a escola e siga sendo terceiro goleiro por mais um ano, ou vire o goleiro reserva agora e tente encerrar sua escola".

O nativo de Voorhout tentou, mas não conseguiu seguir na escola. Mas em campo, ali, na metade de 1990, virou reserva imediato de Stanley Menzo no gol do Ajax. Naquele momento, começava a carreira profissional de Edwin van der Sar. Um dia, ele voltaria ao Noordwijk. Muitos anos depois...

23 de abril de 1991, contra o Sparta Rotterdam: Van der Sar sai do banco para substituir Stanley Menzo - e começar sua história no Ajax. Mas ela só teria impulso em 1993 (Cor Mulder/ANP)

Paciência premiada com Van Gaal

Embora tivesse duas partidas pela seleção sub-21 da Holanda, em 1990, Van der Sar fez exatamente o que se esperava que ele fizesse no Ajax, no primeiro ano de sua carreira: nada. Ficou no banco de Stanley Menzo, o carismático titular do gol Ajacied desde 1984. E da reserva, o novato só sairia em 23 de abril de 1991: aos 32 minutos do primeiro tempo de um jogo que o Ajax venceria por 1 a 0, em seu antigo estádio De Meer, pelo Campeonato Holandês da temporada 1990/91, Menzo sofreu uma lesão muscular. E Leo Beenhakker colocou Van der Sar em campo para os 58 minutos restantes. O arqueiro até se atrapalhou em alguns lances, mas nada que perturbasse a impressão inicial.

Tanto que Van der Sar ficou na meta do Ajax durante as nove partidas seguintes da Eredivisie, enquanto Menzo se recuperava da lesão, na reta final de uma empolgante disputa contra o PSV, ponto a ponto, pelo título neerlandês. O titular voltou ao gol Ajacied na última rodada, contra o Vitesse - e os adversários de Eindhoven conseguiram o título da liga, pelo melhor saldo de gols (ambos com 53 pontos, mas o PSV tinha +56 de saldo, dois acima do Ajax). Ainda assim, ficara claro que Van der Sar era um nome confiável para os anos vindouros do clube de Amsterdã. Ainda mais porque, após aquela temporada inicial, Leo Beenhakker tomou o caminho do Real Madrid. E o técnico a sucedê-lo no Ajax foi justamente quem trouxera VDS ao clube: Louis van Gaal, promovido após alguns anos como auxiliar. 

Junto ao treinador de goleiros, Frans Hoek, Van Gaal começa a "preparar" Van der Sar para ser um goleiro mais de acordo com o que o treinador pensava para o Ajax. Em sua biografia, o próprio se surpreendeu: "Eu não achava que era um goleiro para o futuro do Ajax (...) Stanley [Menzo] era o goleiro bom e atlético, e eu era o contrário. Não era ruim, mas era menos espetaculoso, realmente não era um goleiro de alto nível. Outros achavam isso, e eu mesmo achava. Então, em quê eu era bom? Eu era bom em me antecipar. Eu podia jogar com os pés, porque eu via em profundidade e sabia bem o momento de sair do gol. E os treinadores, Hoek e Van Gaal, pensaram em bons exercícios para mim". Falando sobre o pupilo famoso na biografia dele, Van Gaal opinou: "Van der Sar é a prova de que mesmo o melhor goleiro do mundo pode ser 'fabricado'". Usou isso até para provocá-lo, quando treinava o Bayern de Munique que enfrentou o Manchester United do antigo pupilo, nas quartas de final da Liga dos Campeões, em 2009/10: "Ele não gosta que eu fale isso de ser 'fabricado', mas é isso mesmo".

Van der Sar seguiu na reserva do Ajax por dois anos. Mas Louis van Gaal (e o treinador de goleiros Frans Hoek) apostaram no novato. E na temporada desta foto, 1992/93, ele assumiu a titularidade para não largá-la mais (Paul Vreeker/Arquivo ANP)

No entanto, mesmo tendo seu primeiro título profissional (a Copa da UEFA 1991/92), mesmo tendo jogado algumas partidas em 1992 - Menzo lesionara o polegar -,  Van der Sar seguia na reserva. Tinha mais oportunidades no time B do Ajax. Chegou a pensar em sair do clube. Mais do que isso: tinha propostas de um empréstimo para o então FC Den Haag (o atual ADO Den Haag). E foi comunicar isso a Van Gaal. Na hora, o treinador negou: disse ao reserva que ele precisava de paciência, pois havia possibilidades ali para ele, ainda.

E tais possibilidades se concretizaram ainda na temporada 1992/93. Mais precisamente, no jogo de ida das quartas de final da Copa da UEFA daquela temporada: fora de casa, o Ajax perdeu para o Auxerre francês, por 4 a 2. E Menzo falhou em dois dos quatro gols. Foi a gota d'água numa queda técnica do goleiro, que já perdera a vaga de titular na própria seleção holandesa (substituíra Hans van Breukelen após a Euro 1992). Logo após aquela partida, Van Gaal chamou Van der Sar e informou: a partir dali, ele era o goleiro titular do Ajax.

Em 7 de março de 1993, Van der Sar começou jogando contra o Volendam, pelo Campeonato Holandês daquela temporada. No dia 16, foi titular na partida de volta contra o Auxerre, pela Copa da UEFA. O Ajax foi eliminado (até ganhou por 1 a 0 em Amsterdã, mas sem igualar a vantagem do Auxerre), mas o novo goleiro começava a se entrosar com quem já era titular: Frank de Boer, Danny Blind, Jari Litmanen, Edgar Davids, Marc Overmars, Stefan Pettersson. Mais do que isso: começava a se acostumar com a nova regra, que proibia os goleiros de pegarem com as mãos bolas recuadas pelos jogadores do próprio clube. Com isso, Van Gaal passou a exigir mais do novo goleiro, conforme ele se recordou na biografia: "Dizem que aquela mudança de regra foi vantagem minha, porque eu já jogava bem com os pés. Mas quando eu tinha jogado com os pés, até então? Dos 7 aos 9 anos, no Foreholte, e com os amigos, na escola e na rua. É diferente de sair jogando com os pés na equipe principal do Ajax. Eu treinei muito para melhorar com a bola nos pés".

De quebra, mais um título veio, ainda naquela temporada 1992/93: a Copa da Holanda. Pouco depois, já na temporada 1993/94, a Supercopa da Holanda, ganha no Klassieker em cima do Feyenoord, campeão da Eredivisie. Era só o começo.

Van der Sar celebra ao erguer o troféu da Liga dos Campeões: a temporada 1994/95 foi decisiva para transformá-lo num goleiro conhecido (Pics United)

O primeiro grande momento: absoluto no Ajax e na seleção holandesa

Na temporada 1993/94, o Ajax que Louis van Gaal vinha montando pacientemente começou a florescer. Frank Rijkaard chegou para ser o veterano que, junto a Danny Blind, conduziria uma geração de novatos, todos abaixo de 25 anos. Alguns, com relativa experiência, como Frank de Boer, Jari Litmanen e Marc Overmars. Outros, ainda relativamente desconhecidos, como Michael Reiziger, Edgar Davids, Clarence Seedorf, Patrick Kluivert... e Van der Sar. Todos eles já eram nomes certos na conquista do título holandês na temporada 1993/94, que começou um novo período de glória na história Ajacied. 

E o goleiro já despontava como um nome de futuro. A ponto de, mesmo sem ter uma só partida como titular pela seleção masculina da Holanda (Países Baixos), ser um dos três arqueiros convocados por Dick Advocaat para a Laranja que disputou a Copa de 1994. Mesmo como terceiro goleiro naquele Mundial, já voltou com mais experiência. Que já lhe valeu para ser eleito o melhor de sua posição em seu país, ao final de 1994. E já lhe valeu para ser importante na excepcional temporada 1994/95 que o Ajax fez: não só com o bicampeonato holandês invicto, mas principalmente pelo título da Liga dos Campeões. Naquela noite em Viena, Van der Sar teve lembranças inesquecíveis pelo que ocorreu em campo ("Quando o gol saiu, eu pensei 'será que entrou mesmo?'. Aí eu vi os caras comemorando e o juiz apontando para o meio. Fiquei maluco, meu coração quase saiu pela boca") e fora dele ("A gente teve uma festa, no hotel onde estavam as esposas dos jogadores. Lá tocou uma bandinha de músicas holandesas, e quando ela terminou, eu fui tocar bateria. (...) Pensei: 'Não vou perder essa chance'. Bum, bum, pá. Eu me diverti").

Se ganhar um título daquele tamanho pelo Ajax foi divertido, a primeira experiência de Van der Sar como titular da seleção da Holanda teve muitas dores de cabeça, por incrível que pareça. Só a derrota por 1 a 0 para Belarus, pelas eliminatórias da Euro 1996, já seria aborrecedora, pela surpresa negativa da Laranja. Pior ainda foi a falha do goleiro no gol bielorrusso, saindo errado e sendo driblado por Sergei Gerasimets. Mas Van der Sar teve mais impressões negativas daquele 7 de junho de 1995, nas suas memórias: "Minsk [cidade bielorrussa onde foi o jogo] não tinha nada. Nada. No hotel não havia muito a comer, não havia cortinas nos quartos, e quando você se sentava na cama, o colchão afundava meio metro. A gente queria telefonar para casa, e nada. Celulares mal existiam. Precisávamos dar o número de casa para a telefonista, e ela tentaria achar uma conexão para ligar. (...) Que diferença com duas semanas antes, uma final de Liga dos Campeões, num estádio fervilhante em Viena".

Em 1995, além dos títulos no Ajax, Van der Sar chegou à titularidade na seleção da Holanda (Países Baixos). Pelos 13 anos seguintes, o camisa 1 da Laranja foi ele (Michael Cooper/Getty Images)

Pelo menos, foi um dos únicos maus momentos esportivos do arqueiro naquele ano. No fim de 1995, ele já tomara o posto de goleiro titular da Laranja para não largá-lo mais nos 13 anos seguintes - por mais seguro que Ed de Goey fosse, Van der Sar brilhava a ponto de fazer Johan Cruyff dizer que ele era "o melhor armador de seu time", tal a qualidade nos lançamentos com os pés, além da segurança com as mãos. E no Ajax, ganhara um título de Mundial Interclubes recordado entre o distanciamento ("A euforia foi menor, um pouco menor. Estávamos muito longe de casa, num mundo diferente, sem tantos torcedores festejando") e a alegria ("Uma vez que você começa a jogar, você se dá conta de que está disputando um troféu especial. E foi ótimo ter pego um pênalti [de Dinho], que se revelou decisivo para o resultado final"). De quebra, recebera da UEFA o prêmio de melhor goleiro da temporada 1994/95.

No ano seguinte, 1996, mais um título holandês, configurando o tricampeonato, mas duas decepções. A primeira, pelo Ajax, com a queda na final da Liga dos Campeões, para a Juventus, nos pênaltis. A segunda, um pouco mais grave, com a campanha decepcionante da Holanda na Eurocopa: mesmo eliminada nas quartas, também nos pênaltis, para a França, a trajetória foi permeada pelas discussões étnicas eclodidas com o corte de Edgar Davids e suposto favorecimento de alguns jogadores brancos na escalação de Guus Hiddink, durante a Euro. Sem envolvimento direto naquele racha, Van der Sar se irritou em relação à contextualização dos problemas, na biografia: "Do nada, fizeram disso um assunto. Quando Numan e Stam andavam sempre juntos, todos diziam 'legal, eles são amigos'. Mas quando Seedorf e Davids estavam juntos, falavam 'olha, estão formando panelinhas'. Mas não tinha essa separação que todos falavam. Tanto no Ajax quanto na seleção holandesa, todos nos dávamos bem. Negros e brancos iam aos quartos uns dos outros, para jogar. Ninguém falava nada de racismo".

A Copa de 1998 foi o primeiro auge, no primeiro grande momento na carreira de Van der Sar (Bongarts/Getty Images)

Discussões amainadas, Van der Sar seguiu sendo nome indiscutível. No Ajax, enfileirou quatro prêmios seguidos de melhor goleiro do Campeonato Holandês, entre 1994 e 1997 - em 1998, foi eleito o melhor jogador da temporada 1997/98 da Eredivisie, que terminara com outra conquista Ajacied (unida na "dupla coroa", com o título da Copa da Holanda). De quebra, naquela temporada VDS ainda marcou o único gol de sua carreira: título holandês garantido, na penúltima rodada da Eredivisie, bateu e acertou um pênalti na goleada de 8 a 1 sobre o De Graafschap. Na seleção, o goleiro foi indiscutível nas eliminatórias da Copa do Mundo. Obviamente convocado para a Copa, Van der Sar foi titular absoluto em todos os minutos dos jogos da Laranja, num torneio do qual sempre se recordará com saudades. A começar pelo ambiente na delegação: "Na França, tudo se encaixou. A maioria dos jogadores estava no melhor momento da carreira, em boa forma. O técnico também, e ele se cercou de grandes nomes como auxiliares: Neeskens, Koeman, Rijkaard. Cada treino, cada preleção, era de alto nível. O clima estava ótimo, e o grupo estava mais unido do que nunca".

Talvez só em um momento Van der Sar tenha se visto em apuros na Copa de 1998: a partir da comemoração da vitória contra a Iugoslávia, nas oitavas de final. Notou-se um desentendimento brusco entre ele e o zagueiro Winston Bogarde, e bastou: já na zona mista do estádio de Toulouse, voltaram as discussões sobre desentendimentos entre brancos e negros. Na biografia, Van der Sar explicou: "Na comemoração, veio um braço direto na minha goela. Eu não conseguia respirar, e soquei o braço. Parecia o braço de Bogarde, e eu realmente fui para cima dele. Mas era o braço de Cocu, depois notei. Aí,  na zona mista, os jornalistas começaram a falar sobre isso. Virou assunto. Quando um repórter começou com a história de problemas étnicos, eu fiquei furioso: ‘Que problemas de raça? Não tem nada disso atualmente!’. No dia seguinte ao jogo, eu cheguei rápido a Bogarde antes do treino: ‘Winston, há algum problema, há algo que queira falar?’. Ele: ‘Não tem nada. No que me diz respeito, está tudo bem, podemos seguir normalmente’. E eu: ‘Boa, então tudo certo’”.


De resto, Van der Sar viveu alguns dos momentos mais marcantes de sua carreira naquela Copa. Por exemplo, ao se envolver no lance que gerou a expulsão de Ariel Ortega, no tenso Holanda x Argentina das quartas de final. Na biografia, o camisa 1 da Holanda deixou implícito que fingiu ter levado uma cabeçada: "Eu usei o que melhor sei de espanhol para dizer a ele [Ortega] que era um filho da mulher com a profissão mais antiga do mundo. Quando ele subiu, senti três fios de cabelo no meu nariz e, sim, mergulhei para trás. Fui examinado, e o diagnóstico foi claro: aqui não se precisa de médico. 'Cavar' a expulsão? Eu? Bem, aqui no meu nariz ainda há uma cicatriz..." Ou então, a semifinal contra o Brasil: "Foi o ponto alto e o ponto baixo. O estádio em Marselha estava cheio: de um lado, verde e amarelo, do outro, laranja. Jogamos muito bem, merecíamos ir à final".

De volta ao Ajax, Van der Sar seguiu absoluto como titular. Porém, o tempo foi passando. No fim de 1998, os irmãos Frank e Ronald de Boer deixaram os Godenzonen rumo ao Barcelona, em certo litígio com o Ajax. Ao mesmo tempo em que discordou da forma rumorosa como os gêmeos haviam saído, Van der Sar sentiu: era a hora de buscar novos desafios. Tal sensação foi acentuada com a temporada deficiente do clube de Amsterdã: mesmo com o título da Copa da Holanda, o Ajax não passou do 6º lugar na Eredivisie 1998/99. Bastou para Edwin falar a seu agente, Rob Jansen, que desejava mudar de ares - com clubes de Itália, Espanha ou Inglaterra como opções preferidas. 

Começaram as propostas. A Lazio ofereceu um ano de empréstimo ao próprio Ajax, para que Van der Sar só tomasse o caminho do clube azul-celeste de Roma em 2000. O goleiro recusou: queria sair imediatamente de Amsterdã. O Liverpool fez uma proposta concreta, Van der Sar chegou a visitar Anfield, mas... não sentiu muita confiança. Esta só veio quando um trio de emissários da Juventus chegou para negociar: Luciano Moggi (diretor geral do clube italiano), Roberto Bettega (diretor técnico) e Carlo Ancelotti, técnico bianconero. Na sua biografia, o goleiro se recordou: “Bettega disse que eles queriam jogar diferente, de um modo mais ofensivo, com as jogadas construídas desde a defesa. Eu disse: ‘Seria ótimo, porque me sinto bem se eu puder jogar com os pés. Quero ter a bola recuada para mim, rolar a pelota, é o meu tipo de jogo’. ‘Ótimo’, eles responderam, ‘é o que queremos também".

E ao fim da temporada 1998/99, Van der Sar estava acertado: por quatro anos de contrato, ele se tornaria o primeiro goleiro não-italiano da história da Juventus. Mas a história poderia ter sido diferente. Alex Ferguson demorou um pouco, mas quando enfim decidiu fazer uma proposta, Martin Edwards, presidente do Manchester United, lhe disse que ela não seria feita: um negócio mais barato já estava feito, e o australiano Mark Bosnich já estava a caminho dos Diabos Vermelhos. Esse encontro demoraria alguns anos. Agora, era a hora da Juventus para Van der Sar, que deixou Amsterdã saudado pela torcida como "o último dos moicanos": afinal, era o último a sair, de uma geração que fizera do Ajax outra vez o clube mais forte do mundo.

Ele não sabia, mas também era o fim da primeira grande fase de sua carreira.

Van der Sar chegou com otimismo à Juventus, mas logo se viu isolado (La Presse Torino/Archivio Storico)

O sonho logo acaba na Juventus

Van der Sar chegou badalado à Juventus. Parecia o salto perfeito para um goleiro prestes a entrar na lista seleta dos melhores do mundo: mesmo terminando o Campeonato Italiano 1998/99 na sexta posição, a equipe alvinegra de Turim tinha um grupo estelar - para ficar só em três titulares absolutos, havia ali Edgar Davids (colega e amigo de Edwin), Zinedine Zidane e Alessandro del Piero. Parecia que a reestruturação seria rápida. E segundo as promessas feitas pelos dirigentes juventinos, Van der Sar seria parte fundamental da mudança tática por que o clube do Piemonte passaria.

Porém, bastou apenas um jogo para que o goleiro holandês visse que teria mais dificuldades do que pensava para se adaptar ao estilo italiano. Na sua biografia, ele se recordou: “No meu primeiro jogo, pela Copa Intertoto, contra um clube romeno [Ceahlaul Piatra Neamt], eu recebi uma bola recuada da ponta. Já tinha visto que Ferrara [zagueiro] estava livre no meio; permitia a chegada por trás de um adversário, mas estava livre. Pensei: ‘Vamos jogar diferente, mais ofensivamente, e o goleiro participa disso atrás’, e aí mandei a bola de primeira para Ferrara. Mas ele se assustou, mandou rapidamente a bola pela lateral e fez sinais, como quem me dissesse ‘o que está fazendo, idiota?’. [Carlo] Ancelotti saiu imediatamente do banco e gritou: ‘Van der Sar, manda essa bola para frente!’. Eu só pensei: ‘Caramba, não posso mais fazer isso por enquanto. Não estão acostumados, ainda’”.

A Juventus até foi um dos clubes vencedores da Intertoto, antigo torneio de verão da UEFA para clubes que não haviam se classificado a outras competições continentais. No entanto, Van der Sar seguiu pelejando naquele primeiro ano na Itália. Já nos treinos, havia certos problemas de adaptação ao trabalho com o treinador de goleiros da Juventus, Viliam Vecchi, como ele se recordou na biografia: "É um cara muito gentil, ainda tenho contato com ele. (…) O problema é que não era flexível. Eu tinha de treinar à maneira italiana, porque era a melhor, segundo ele. A Itália tinha mais goleiros internacionalmente conhecidos do que a Holanda, isso era inquestionável. Mas eu podia ter chegado a ele e dito que eu não era um goleiro ‘italiano’, e que não me parecia boa ideia tentar fazer isso de mim”. Sem colaborar com o jogo como fazia no Ajax, às vezes só aparecia na hora da reposição de bola (em certas rodadas do Campeonato Italiano 1999/2000, sequer recebeu nota por sua atuação, de tão anônimo que era nas partidas). Para piorar, a Juventus perdeu o título da Serie A na última rodada: derrotada pelo Perugia fora de casa, a Velha Senhora viu a Lazio vencer a Reggina e conquistar o troféu. Nem mesmo o fato de ter sido o goleiro menos vazado da liga italiana amenizou uma certa decepção.

Van der Sar chegou motivado à Euro 2000, mas teve de suportar até uma cavadinha de Totti na traumática eliminação holandesa, na semifinal da Euro (Mark Leech/Offside/Getty Images)

Pelo menos, haveria uma grande chance de recuperação para ele, na Euro 2000. Um dos países-sede do torneio, junto da vizinha Bélgica, a Holanda mantinha em sua seleção a força que ostentara na Copa do Mundo, sendo considerada a grande favorita ao título, junto da então campeã mundial França. Titular absoluto da Laranja, o próprio Van der Sar vinha com motivação extra para aquela Eurocopa: "Estava muito motivado para aquele torneio, em casa. Pensava: ‘Beleza, jogo pela seleção holandesa, seremos campeões europeus, e aí eu mostrarei algo àqueles italianos’”. Acabou não mostrando tudo o que podia, novamente. Primeiro, uma lesão na virilha sofrida no fim do jogo contra a Dinamarca, na fase de grupos, perturbou seu desempenho: Van der Sar sequer jogou contra a França (quando a Holanda já estava classificada), substituído pelo reserva Sander Westerveld, a quem deu lugar nos últimos minutos do jogo das quartas de final, contra a Iugoslávia. Depois, nas semifinais, seria pior: mesmo de volta ao gol, Van der Sar participou de uma das eliminações mais doídas da história da seleção holandesa. Numa Amsterdam Arena toda em laranja, a Itália segurou um 0 a 0 por 120 minutos, com a Oranje perdendo dois pênaltis e tendo um a mais desde os 33'. Na decisão por pênaltis, VDS até pegou um pênalti (de Paolo Maldini), mas a Azzurra venceu por 3 a 1 nas cobranças e foi à final da Euro. 

Era mais um trauma. Mesmo tendo recebido uma proposta do Barcelona, antes da temporada 2000/01, Van der Sar preferiu seguir na Juventus: “Quando a ressaca da derrota na Euro diminuiu, eu só queria uma coisa: revanche. Revanche de tudo. Eu precisava e iria arrebentar na Juve. Eu queria afastar as dúvidas: do clube, da torcida, da imprensa. Pensava comigo mesmo: ‘Não desista, o primeiro ano foi de adaptação, agora seguramente as coisas vão melhorar”. Não melhoraram. Muito ao contrário, até pioraram. Se em 1999/2000 Van der Sar fora apenas discreto, na temporada 2000/01 o goleiro começou a falhar excessivamente. Começou na Liga dos Campeões: em 8 de novembro de 2000, na derrota da Juventus para o Panathinaikos, na fase de grupos, o holandês não só falhou no primeiro gol (não fechou o ângulo numa falta), como cometeu o pênalti que levaria ao segundo gol do time grego - e ainda foi expulso. Três dias depois, na sexta rodada do Campeonato Italiano, num empate de 1 a 1 com a Lazio, Van der Sar falhou novamente, no gol de Marcelo Salas que igualou o placar para os laziale.


Bastou para que Van der Sar começasse a ser ridicularizado na imprensa italiana. Apelidos como "Van der Gol" e "O homem das mãos de manteiga" começaram a se espalhar nas mesas redondas; pela torcida da Juventus, se espalhou o boato de que o goleiro holandês era míope, não conseguia ver direito bolas vindas em chutes de longe - e em jogos à noite, nem nos chutes de perto. Goleiro marcante na história bianconera, Stefano Tacconi foi duro em opiniões nas mesas-redondas: "O estilo de Edwin não combina com o futebol italiano". E o golpe de misericórdia em sua passagem pela Itália veio na 29ª rodada do Campeonato Italiano 2000/01: no estádio Delle Alpi, a Juventus segurava a vitória sobre a líder Roma por 2 a 1, mantendo as esperanças de reaquecer a disputa do título. Mas no último minuto, Hidetoshi Nakata chutou de longe, e Van der Sar soltou a bola nos pés de Vincent Candela, que empatou: 2 a 2. A Roma seria campeã italiana. De novo, a Juve fracassava. E o goleiro virou um dos bodes expiatórios daquela decepção.


Mesmo bem adaptado à vida na Itália ("Comida maravilhosa, viagens maravilhosas, eu e minha família nos apaixonamos pelo país"), Van der Sar sentiu o impacto em sua autoconfiança, conforme lembrou em sua biografia: "Eu torcia para que ninguém viesse falar comigo, eu queria passar o mais despercebido possível". E o fim de sua passagem pela Juventus piorou a sensação ruim. Semanas antes de deixar o clube, o goleiro perguntou ao diretor geral Luciano Moggi se ainda havia espaço para ele no grupo. Moggi o tranquilizou: seriam feitas algumas reformulações, mas Van der Sar ainda tinha algum crédito e ficaria na equipe para a temporada 2001/02. Poucos dias depois, porém, a Juventus anunciava: por 52,8 milhões de euros, o maior valor gasto por um goleiro até então numa transferência, Gianluigi Buffon deixava o Parma e rumava para o clube de Turim. Ali Van der Sar se sentiu "traído", como lamentou em entrevista na época. E entendeu: seu caminho na Itália estava acabado, e ele teria de procurar outro clube.

Vieram sondagens de Liverpool, Arsenal e Borussia Dortmund, mas só um clube fez uma proposta concreta para contratação: o Fulham, que acabara de subir para a primeira divisão inglesa com um projeto então ambicioso. Van der Sar desconfiou, e foi se aconselhar com Louis van Gaal, àquela altura treinador da seleção masculina da Holanda (Países Baixos). Van Gaal o tranquilizou: ir para o Fulham poderia mantê-lo jogando em alto nível. Só então Van der Sar aceitou a proposta dos Cottagers, que o apresentaram em agosto de 2001. Seu plano de carreira era simples: passar uma temporada no Fulham, aparecer bem na Copa de 2002 pela Holanda, e então atrair novamente o interesse de grandes clubes.

Não foi bem o que aconteceu.

O plano inicial de Van der Sar deu errado: ele ficou por quatro anos no Fulham, e caiu no ostracismo, mesmo com boas atuações (Alex Lifesey/Allsport/Getty Images)

No Fulham, o anonimato quase completo

Van der Sar só não contava com uma coisa: a decepção da seleção da Holanda nas eliminatórias da Copa de 2002. Com Van Gaal tendo dificuldades com o grupo de jogadores e um grupo que se revelou mais difícil do que se esperava na qualificação, com uma grande geração de Portugal e a Irlanda sendo um duríssimo adversário, sobrou para uma geração que envelhecia na Laranja. Que ficou fora de um Mundial, pela primeira vez desde 1986. O plano inicial do goleiro dera errado: ao invés da presença na Copa de 2002 impulsionar sua carreira de novo, ele ficaria no Fulham pelos quatro anos seguintes.

Pelo menos em campo, sem problemas. A não ser por um breve período na temporada 2004/05, quando se lesionou e ficou na reserva por alguns jogos, Van der Sar foi titular absoluto dos Cottagers nos quatro anos em que lá ficou. Era querido pela torcida, e considerado um dos jogadores mais confiáveis da equipe de Londres. A partir de 2003, sua situação até melhorou. Começando fora de campo: ao conversar com Watt Nicoll, espécie de "psicólogo motivacional" que ajudava o técnico Chris Coleman no trabalho interno no Fulham, Van der Sar foi claro ao revelar a Nicoll o que lhe atrapalhava: "Eu tenho a sensação de que não estou mais em alto nível. Eu já estive lá, e é para onde quero voltar".

Sentindo-se bem nas conversas com Nicoll ("Aconteceu algo comigo, eu me senti bem com aquilo, relaxado e desperto", recordou-se na biografia), Van der Sar começou a render bem no Fulham. Na temporada 2003/04, foi eleito pela própria torcida dos Cottagers o melhor jogador da boa campanha no Campeonato Inglês (9ª posição) - com destaque para o jogo contra o Liverpool, na última rodada, quando ajudou a segurar o 0 a 0 em Anfield e ainda pegou um pênalti.


Na seleção masculina da Holanda (Países Baixos), Van der Sar seguiu como titular absoluto. Mesmo com o trauma da ausência na Copa de 2002, foi nome certo nas eliminatórias da Euro 2004. E na própria Euro, mesmo numa campanha inconstante da Laranja, o dono da camisa 1 da equipe começou a reaparecer aos olhos do público que viu o torneio europeu em Portugal. Principalmente nas quartas de final daquela Euro: contra a Suécia, em 26 de junho de 2004, um empate aborrecido e tenso por 0 a 0, em 120 minutos, levou a decisão da vaga nas semifinais às cobranças da marca do pênalti. As mesmas cobranças que haviam representado o fim da linha para a Holanda na Euro 1996, na Copa de 1998 e na Euro 2000 - todas essas eliminações, com Van der Sar como titular.

Com quatro cobranças convertidas para cada lado, a decisão foi à série alternada de pênaltis. E aí Van der Sar brilhou: defendeu a cobrança do zagueiro sueco Olof Mellberg, deixando a Holanda à beira das semifinais. Arjen Robben converteu o chute decisivo, a Laranja se classificou, mas a maioria dos 23 jogadores holandeses foi abraçar justamente o goleiro que simbolizava os traumas anteriores - e a relativa redenção naquela Euro 2004. A Holanda caiu na semifinal para o país-sede Portugal, mas a campanha já servira como a primeira reação na carreira do já então veterano de 33 anos.


Van der Sar continuou também inquestionável na meta do Fulham. Na campanha da temporada 2004/05, foi titular em todas as 38 partidas dos Cottagers naquela Premier League - e fundamental em pelo menos um jogo, no empate com o Aston Villa em 1 a 1, pela 27ª rodada, ao pegar um pênalti de Juan Pablo Angel. Mas a titularidade na seleção da Holanda e os elogios que voltava a ouvir despertaram o desejo: voltar a ser comentado como eram contemporâneos como Dida e Kahn - e nomes mais novos, como Buffon e Casillas. 

Por mais que a família estivesse gostando da vida em Londres ("A gente só jogou uma Copa da UEFA em quatro anos, e tínhamos muito tempo livre nas outras temporadas, então fizemos muitas viagens de família", lembrou-se na biografia), VDS queria voltar aos grandes palcos do futebol. Companheira do goleiro desde 1994, casada com ele desde 2006, Annemarie van Kesteren-van der Sar repetiu a angústia que tomava conta do marido, na biografia: "Após um tempo [no Fulham], ele começou a ficar inquieto, ainda mais nas janelas de transferências. Toda vez era a mesma história: virá um clube, um grande clube?"

Se não viesse, Van der Sar já pensava em voltar à Holanda, voltar ao Ajax - e, quem sabe, dali a alguns anos, voltar a atuar na linha, num clube amador qualquer dos Países Baixos. 

Mas veio um grande clube.

Van der Sar conseguiu no Manchester United a chance para voltar a ser reconhecido. E a aproveitou plenamente (Getty Images)

No Manchester United, a chance agarrada. E os títulos voltaram

Van der Sar não se esquece. Conforme contou em suas memórias, foi em junho de 2005, durante as datas FIFA nas quais a Holanda enfrentava Romênia e Finlândia, nas eliminatórias da Copa de 2006. Seu agente Rob Jansen lhe comunicou: o Manchester United se interessava em contratá-lo. O goleiro ainda se acautelou, pensando se os Diabos Vermelhos o quereriam para ser reserva ou titular em Old Trafford. Horas depois de conversar com o agente, viu uma chamada no celular: era ninguém menos do que Alex Ferguson. Ouviu o recado do treinador do United uma, duas, três vezes. Depois da terceira, decidiu retornar a ligação. Ouviu do escocês: "Eu quero você. Eu preciso de um goleiro experiente, alguém que traga calma". Só aí teve a certeza: iria para ser o titular do Manchester United. Ainda naquele junho de 2005, a contratação foi anunciada. "Sir Alex" reconheceu naquele momento, reconheceu em sua autobiografia, reconhecerá sempre que necessário: corrigiu ali o erro de 1999, e sempre se arrependerá de não ter trazido Van der Sar mais cedo para o United. Era a chance desejada para ele tentar voltar a ser reconhecido como um grande goleiro. 

Isso não aconteceu naquela primeira temporada de United. Tanto pela má fase do time, eliminado na fase de grupos da Liga dos Campeões 2005/06 e vendo de longe o Chelsea se tornar bicampeão inglês, quanto por alguns problemas que Van der Sar encarou no primeiro ano. Titular antes de sua chegada e empurrado para a reserva, o norte-americano Tim Howard reclamou aqui e ali da falta de consideração do clube. E Roy Keane, histórico capitão dos Diabos Vermelhos, em plena rota de colisão com Alex Ferguson naquela mesma época, ainda teve alguns problemas indiretos com o recém-chegado. Em um momento, foi uma briga entre o volante irlandês e Ferguson, que Van der Sar tentou apartar, sendo repelido com um "você mal chegou do Fulham e já quer tomar a frente nessas coisas?". Em outro, foi Van der Sar demorando um pouco mais no vestiário antes do treino e ouvindo "aqui não é o Fulham para você fazer o que quiser, quem você pensa que é?". Tendo problemas com o grupo do Manchester United em geral - e Alex Ferguson, em particular -, Keane deixou o clube semanas depois. Enfim: mesmo com o título da Copa da Liga Inglesa em 2005/06, mesmo tendo papel elogiável na Holanda que disputou a Copa de 2006 (titular, capitão, algumas boas defesas - e durante a Copa, se tornando o jogador com mais partidas pela Laranja), ainda não foi aquela a temporada da reação de Van der Sar.

Isso aconteceu em 2006/07. Com um time mais equilibrado, experiente e habilidoso, o Manchester United começou naquela temporada um período de destaque. Nomes fortes não faltavam: Rio Ferdinand, Nemanja Vidic, Ryan Giggs, Paul Scholes, Wayne Rooney, Cristiano Ronaldo... e Van der Sar. Não foi o suficiente para superar o Milan nas semifinais da Liga dos Campeões, mas já bastou para suplantar os rivais fortes e voltar a ser campeão inglês. E o goleiro holandês teve papel decisivo numa das partidas mais marcantes da campanha vitoriosa: na 36ª rodada, a antepenúltima, no clássico contra o Manchester City, em 6 de maio de 2007, o United fez 1 a 0. E Van der Sar pegou um pênalti de Darius Vassell, na reta final do jogo no City of Manchester. No dia seguinte, com o empate entre Chelsea e Arsenal, os Diabos Vermelhos tiveram garantido o título inglês.


Terminou uma temporada, e começou outra: 2007/08. Para Van der Sar, já começou muito bem: na Supercopa da Inglaterra, com Manchester United e Chelsea frente a frente, após 0 a 0 em 90 minutos, a decisão do título daquela Charity Shield foi para os pênaltis. Três defesas de Van der Sar nas cobranças, 3 a 0 Manchester United, mais uma conquista garantida. Durante aquela temporada, o goleiro voltava a ter a sensação que desejara nos tempos de Fulham: ter confiança e boas atuações, numa grande equipe. Sensação que veio a ele, por incrível que pareça, num jogo da fase de grupos da Liga dos Campeões 2007/08, contra o Sporting Lisboa, como ele se recordou: "Foi um jogo quase perfeito. Um jogo daqueles, em que você tem a sensação de que é insuperável, ocorre poucas vezes na carreira".

E os Diabos Vermelhos foram avançando. Foram bicampeões ingleses. Foram fazendo uma campanha consistente na Liga dos Campeões, com direito a um 7 a 1 na Roma, nas quartas de final. Contra o Barcelona, nas semifinais, dois jogos tensos: 0 a 0 em Camp Nou, 1 a 0 United em Old Trafford - "se nosso time errasse, poderia ser o fim, mas felizmente não erramos", celebrou Van der Sar. Que voltaria a jogar uma final de Liga dos Campeões, doze anos depois. Já não havia mais dúvidas: o goleiro holandês, mesmo veterano, voltava a ser um dos melhores da Europa.

Se faltava alguma prova, e se faltava pessoalmente ao arqueiro ter um momento em que ele fosse o destaque absoluto, o herói, tudo isso veio naquela decisão de 20 de maio de 2008, no estádio Luzhniki, em Moscou. Num jogo chuvoso, equilibrado, nervoso, Manchester United e Chelsea viveram o ápice de uma rivalidade no futebol inglês: 1 a 1 no tempo normal e também na prorrogação. Os pênaltis decidiriam o campeão europeu.

Ao contrário de outras decisões por pênaltis das quais participara, naquela Van der Sar tinha anotado, num papel, o nome dos batedores do Chelsea - e o canto em que bateriam. Quase fracassou: só um escorregão de John Terry impediu que o zagueiro convertesse e levasse os Blues à conquista daquela Champions League. As cobranças seguiram na série alternada... até que Nicolas Anelka foi para o sexto chute do Chelsea. VDS soubera, por meio do holandês Huub Stevens e por pesquisas próprias: o atacante francês gostava das cobranças no canto direito.

Anelka errou a cobrança, veio o título europeu do Manchester United, e o sonho de Van der Sar estava realizado: fazer uma defesa decisiva e histórica (Yuri Kadobnov/AFP/Getty Images)

Debaixo de chuva, ele apontou para outro canto. Anelka insistiu no direito... e Van der Sar pegou. Estava tudo acabado. Era o goleiro holandês o grande herói do segundo título europeu do Manchester United. Sensação resumida com emoção em sua biografia: "Eu peguei o chute de Anelka e a emoção explodiu. Eu me arrepiei todo, e fiquei sozinho, molhado, por uns quatro segundos, antes daquela alegria tremenda que veio para cima de mim. Todos os companheiros pulando em você, e você embaixo do montinho. Eu saí deles e procurei contato com o público, com conhecidos. Onde a família estava? Quando eu os encontrei, vieram as lágrimas".

Falando à emissora inglesa ITV, no campo em Moscou, Van der Sar sequer se conteve: "Oh, fucking hell!" ("Que inferno fodido!"). Falando à NOS, emissora pública holandesa, na zona mista antes do vestiário, o goleiro foi mais polido: "Isso não é um sonho de criança, é um sonho de veterano. Foi o meu momento de ser Hans van Breukelen [o goleiro holandês que defendera o pênalti decisivo no título europeu do PSV, em 1988]". Mas talvez, a mais singela história do grande momento da carreira de Edwin van der Sar não ocorreu em Moscou. Ocorreu na casa da família, a partir de sua filha Lynn, 8 anos de idade na época: "Eu não fui à final, porque era pequena. Eu também não vi nada na tevê, porque fui dormir. Aí, no dia seguinte eu acordei e li no jornal que o papai era um herói. E todo mundo veio comemorar comigo na escola".


A partir dali, as coisas só melhoraram para Van der Sar. Na Euro 2008, seu último torneio pela seleção da Holanda, o goleiro seguiu com a boa fase, fazendo defesas seguras e ostentando a braçadeira de capitão. Porém, seguiram as decepções na Laranja: após esplendorosa primeira fase, ela caiu nas quartas de final, para a Rússia. Era a última de 128 partidas pela Oranje, após 13 anos. Em sua biografia, Van der Sar ruminou a lamentação: "Quando ouvi o apito final [contra a Rússia], pensei 'foi isso, meu melhor torneio pela seleção e já acabou'. Agora, olhando em retrospectiva, devo dizer: 13 anos ininterruptos como titular da Holanda é uma marca que fica, mas eu trocaria todas as minhas partidas na seleção por um título com ela".

Van der Sar brilhou pela seleção holandesa na Euro 2008, mas terminou sua trajetória nela sem título (Getty Images)

Pelo menos, sobravam motivos para consolo do holandês. Com lesões do sucessor na titularidade do gol da Laranja (Maarten Stekelenburg) e também do reserva (Henk Timmer), Van der Sar foi convocado às pressas para dois jogos contra Islândia e Noruega, em outubro de 2008, pelas eliminatórias da Copa de 2010. Decidiu atender ao pedido do técnico Bert van Marwijk para as "despedidas" pela seleção: duas vitórias, 130 jogos na Laranja (recorde até 2017, quando Wesley Sneijder o superou), e Van der Sar fez piada: "Pelo menos, agora me despeço com vitória". No fim daquele ano, mais um título pelo Manchester United: o Mundial de Clubes da FIFA. 

De certa forma, a temporada 2008/09 ia até melhor do que a anterior para o arqueiro. Tanto que, quando 2009 começou, o camisa 1 do Manchester United já enfileirava um número generoso de partidas sem sofrer gols no Campeonato Inglês. Tendo uma defesa também em grande fase à frente (a linha Gary Neville-Rio Ferdinand-Nemanja Vidic-Patrice Evra), Van der Sar teve a invencibilidade encerrada em março, mas os Diabos Vermelhos chegaram ao tricampeonato inglês, e ele podia se orgulhar de ser o goleiro da mais longa sequência sem gols sofridos em campeonatos do Reino Unido: 1.311 minutos sem ter as redes balançadas. Na Liga dos Campeões, o United chegou novamente à final, mas as chances de bicampeonato viraram pó diante de um Barcelona que já se ensaiava histórico. 

Tudo bem para VDS, eleito pela UEFA o melhor goleiro da temporada 2008/09. Aos 38 anos, os tempos de ostracismo estavam no passado. Coube a um jornalista italiano, Candido Cannavò (1936-2009), ter em sua última coluna no jornal Gazzetta dello Sport antes de morrer um texto cujo título sintetizava a impressão que se tinha em relação ao veterano que brilhava: "Nessuno ride più su Van der Sar" ("Ninguém ri mais de Van der Sar").

Van der Sar até falhou na decisão da Liga dos Campeões. Mas só o fato de fazer daquela final a última partida de sua carreira já o tornava respeitável com ou sem falhas (Reuters)

Um fim honroso

Van der Sar seguiu com o nível elogiável de atuações. No país natal, muitos insistiam que ele deveria ser  o titular da Holanda na Copa de 2010: só em fevereiro daquele anunciou definitivamente que era melhor dar o prestígio a Maarten Stekelenburg - e ainda assim, em sua biografia, confessou: "Quando eles [seleção] chegaram à final, eu fiquei pensando se não tinha cometido o grande erro da minha carreira. Se a Holanda tivesse sido campeã, eu ouviria que tinha sido um bobo pelo resto da minha vida". Seu único envolvimento com a seleção naquele ano foi ter recebido a Ordem de Cavaleiro de Orange-Nassau, grande honraria dos Países Baixos, antes do amistoso contra a Hungria, despedida da Laranja antes do Mundial na África do Sul.

Ainda assim, o arqueiro começou a ter certos contratempos na metade final de 2009. Antes da temporada 2009/10 se iniciar, uma fratura no dedo mínimo da mão esquerda o tirou dos primeiros momentos da temporada. Em dezembro de 2009, a esposa Annemarie sofreu um AVC, e Van der Sar foi liberado do Manchester United para acompanhar os primeiros socorros e a reabilitação da esposa, que se recuperou, sem sequelas. Por melhor que seguisse, aos 40 anos de idade, ficava claro que o momento de encerrar a carreira estava chegando. 

E Van der Sar anunciou tal decisão, em janeiro de 2011: pararia de jogar profissionalmente ao fim da temporada 2010/11. Quis o destino - e suas ótimas atuações colaboraram para tanto - que o goleiro holandês tivesse suas últimas partidas para celebrar mais um título inglês do Manchester United (seu quarto em Old Trafford). Mais do que isso: quis o destino que o clube vermelho de Manchester chegasse a mais uma final de Liga dos Campeões em 2010/11, e que ela fosse a última partida da carreira de Van der Sar.

Mesmo antes da decisão contra o Barcelona, em Wembley, o goleiro era saudado retrospectivamente por Alex Ferguson: "Ele só está jogando até hoje porque sempre se sacrificou, se dedicou e foi recompensado por isso. Tudo o que ele alcançou é merecido". Foi festejado pela torcida dos Diabos Vermelhos presente à decisão. E mesmo falhando no segundo gol da vitória histórica do Barcelona - 3 a 1 para o time espanhol, com excelente atuação -, Van der Sar terminou a carreira deixando a mais honrosa das impressões. Deixando até saudades. Comprovadas por um estádio lotado em Amsterdã para a sua festa de despedida, em 3 de agosto de 2011, na qual jogou duas partidas - a primeira, defendendo a Holanda de 1998 contra o Ajax de 1995; a segunda, como goleiro de um time de estrelas, contra a equipe atual do Ajax.

Amsterdam Arena na época, 3 de agosto de 2011: foi o dia do capítulo final da carreira de Van der Sar dentro do campo de futebol (Arquivo pessoal do blogueiro)

O pós-carreira: um diretor questionável, um retorno fugaz

Quando encerrou a carreira, muito se especulou sobre o que Van der Sar faria. Em sua biografia de 2011, o próprio deixou pistas: "Eu fiz um curso de treinador, mas não me vejo treinando. Não sou o cara dos esquemas táticos. Saber de cor como o Twente joga, é mais coisa de Frank [de Boer, então técnico do Ajax]. Mas algo em direção é interessante: diretor técnico, isso eu me vejo sendo".Não era o único: participando das mudanças internas por que o Ajax passava então, Johan Cruyff (1947-2016) chegou a Edwin e disse que o via sendo diretor geral do clube, algo semelhante ao que Karl-Heinz Rummenigge fazia e faz no Bayern de Munique. Razão: mesmo sem um curso profundo em administração esportiva, para Cruyff, o poder de comando de Van der Sar nas defesas em que jogara em 21 anos de carreira poderia ser útil no controle de um clube.

Bastou: após um ano sabático e um curso rápido na universidade criada pelo próprio Cruyff, Van der Sar se integrou à diretoria do Ajax, em novembro de 2012. Primeiro, "aprenderia os macetes" como diretor de marketing do clube - e nessa função passou quatro anos. Paralelamente, ajudou na implantação de sua fundação beneficente, para auxiliar vítimas de problemas cerebrais e neurológicos, em razão do histórico familiar da esposa Annemarie (hoje a presidente da fundação). Até que, em fins de 2016, sucedeu Dolf Collee para, enfim, chegar ao cargo imaginado por Johan Cruyff, já então falecido: ser o diretor geral do Ajax. 

Entre negligência em alguns momentos e brilho em outros - como o da foto, festejando o Ajax semifinalista da Liga dos Campeões 2018/19 -, só agora Van der Sar começa a embalar como dirigente (Erwin Spek/Soccrates/Getty Images)

Desde então, de certa forma, Van der Sar viveu em altos e baixos. Por um lado, ao escolher apoiar o lado do diretor de futebol Marc Overmars, colega em campo e fora dele, colaborou para que o Ajax fosse um pouco mais ambicioso no mercado de transferências: ao invés de só criar talentos, o clube comprou nomes como Frenkie de Jong, Hakim Ziyech, Dusan Tadic, David Neres. Com a sorte de ter uma geração altamente promissora de jogadores vindos da base sempre frutífera dos Ajacieden - geração personificada em Matthijs de Ligt e Donny van de Beek -, Van der Sar foi a cara fora de campo para a reação do clube nos últimos anos, finalista da Liga Europa em 2016/17 e semifinalista da Liga dos Campeões em 2018/19. Além do mais, ao mesmo tempo em que adota posturas de divisão de dinheiro com clubes menos aquinhoados da Holanda e deseja fazer do Ajax "o segundo time de todos", o ex-goleiro se mantém com um pé na canoa de quem decide: é vice-presidente da Associação de Clubes Europeus comandada por Andrea Agnelli, presidente da Juventus.

Por outro, é justo dizer que Van der Sar só ganhou confiança de torcida e imprensa de 2018 em diante. Antes, era visto como alguém que só ocupava a função de diretor geral pelo que fizera em campo. Chegou até a ser questionado pela torcida em 2017/18, quando o Ajax viu de longe o PSV ser campeão holandês. Pior ainda: no começo dessa temporada, além de eliminações vexatórias nas fases preliminares de Liga dos Campeões e Liga Europa, o Ajax amargou a parada cardiorrespiratória que prejudicou para sempre a vida de Abdelhak Nouri, uma das principais promessas do futebol holandês até 2017. E Van der Sar também simbolizou a postura negligente do clube. Tanto pelos problemas nos primeiros socorros a "Appie" Nouri (antes desmentidos, depois assumidos publicamente pelo diretor), quanto por posturas como rescindir o contrato de Nouri, logo após o jovem sair do coma, no ano passado. Momentaneamente, há paz com a família, que chegou a processar o Ajax. Mas isso pode mudar.

Contudo, mesmo cada vez mais estabelecido nos gabinetes do futebol, Van der Sar ainda tem seus momentos de "ex-goleiro em atividade". Em sua sala no Ajax, não só guarda luvas e chuteiras, como vez por outra ainda vai para os treinos ao lado dos nomes da posição na equipe de Amsterdã, como se ainda vestisse a camisa 1. E a prova definitiva disso veio em 12 de março de 2016, no clube amador em que sua história no futebol começara: o VV Noordwijk. Então na Hoofdklasse, a quinta divisão do futebol da Holanda (Países Baixos), o clube tinha os seus dois goleiros lesionados antes do jogo contra o Jodan Boys. Van der Sar foi convidado... e aos 45 anos e alguns meses, voltou a atuar, pelo menos por aquela partida. No empate em 1 a 1, deu lembranças do goleiro que foi: pegou um pênalti.


Era Edwin, novamente, fazendo o trabalho de ser um goleiro. Trabalho que, por um tempo, foi perseguido por seu filho Joe van der Sar - que chegou a ser profissional no ADO Den Haag, antes de voltar ao amadorismo. Comprovando algo que disse a seu biógrafo, Jaap Visser, em 2011. Quando começava os trabalhos para o livro que seria publicado, Visser (ele mesmo, um goleiro amador) comentou encantado sobre a arte de ser um goleiro. Van der Sar repeliu a conversa com um suspiro: "Que arte, que nada. É só um trabalho".

E ninguém fez esse trabalho melhor na Holanda do que Edwin van der Sar.

Edwin van der Sar
Data de nascimento: 29 de outubro de 1970, em Voorhout
Clubes: Ajax (1990 a 1999), Juventus-ITA (1999 a 2001), Fulham-ING (2001 a 2005) e Manchester United-ING (2005 a 2011)
Seleção: 130 jogos, entre 1995 e 2008