segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Um jogo, um parágrafo, um vídeo: a 10ª rodada da Eredivisie

Twente 0x2 RKC Waalwijk (sexta-feira, 27 de novembro)

Já aos 5', o Twente ameaçou ter outro começo veloz no ataque, com a bola na trave que Danilo mandou. Só que, aos poucos, os visitantes de Waalwijk se aprumaram na defesa. E no jeito com que atuaram, esperando as chances de contra-ataque, tiveram plena eficiência. Com Ola John como símbolo dela: aos 22', o atacante fez boa jogada individual e cruzou para Cyril Ngonge completar, de voleio, fazendo 1 a 0. A atenção dos atacantes valeu o segundo gol pouco depois: aos 30', o zagueiro Kik Pierie foi desarmado por Finn Stokkers, que já deixou a bola com John - ele devolveu, e Stokkers colocou nas redes. Com a vantagem garantida no placar, os Católicos auriazuis só precisavam se cuidar na defesa, diante do ataque dos Tukkers, contando com o brasileiro Danilo, artilheiro do campeonato. E se cuidaram: firmes, evitaram chances perigosas do time da casa no segundo tempo. O RKC Waalwijk conseguia uma grande e merecida surpresa na abertura da rodada.

Emmen 0x5 Ajax (sábado, 28 de novembro)

O Ajax repetiu o roteiro de suas partidas mais recentes pelo Campeonato Holandês. Começa sem atacar muito, aos poucos acha espaços para chutar (como Antony fez, aos 18'), os espaços para troca de passes aumentam, as jogadas se encaixam, os gols aparecem, o jogo se decide rápido. No primeiro, aos 20', Davy Klaassen fez bonita triangulação com Lassina Traoré e Noussair Mazraoui, e ainda deu sorte com o desvio de Miguel Araújo no chute. No segundo, aos 29', bonita finalização de Zakaria Labyad. No terceiro aos 38', Antony poderia ter marcado em seu chute, já - mas Traoré apareceu no meio, para tirar qualquer chance de defesa de Felix Wiedwald. Por falar no goleiro alemão, ele fez pelo menos três boas defesas no segundo tempo. Mas novamente ficou "vendido" aos 69' - rebateu uma vez, Klaas-Jan Huntelaar ainda tentou, mas só com Jurgen Ekkelenkamp é que veio o 4 a 0 do Ajax. Aos 82', ainda houve tempo do quinto gol, com Quincy Promes completando cruzamento de David Neres. Fora as outras chances perdidas. O Emmen? Só apareceu com dois chutes (Caner Cavlan no primeiro tempo, Nikolai Laursen no segundo). Sem novidades: mais um triunfo impávido do líder da Eredivisie.


ADO Den Haag 1x1 Heerenveen (sábado, 28 de novembro)

Após a goleada sofrida para o Sparta Rotterdam na rodada passada, o ADO Den Haag tinha que mostrar serviço. Mostrou rapidamente: já aos 13', num contra-ataque, David Philipp chutou por baixo e fez 1 a 0 para os mandantes. Porém, o Heerenveen demorou pouco para empatar - e no mesmo estilo: aos 16', Lucas Woudenberg ajeitou, e Joey Veerman concluiu rasteiro para o empate. A partir daí, os visitantes da Frísia tentaram mais a virada. No primeiro tempo (aos 26', Pawel Bochniewicz bateu para fora após escanteio rebatido pelo goleiro Luuk Koopmans) e no segundo (em sequência aos 59', Joey Veerman bateu em cima da defesa, e Rodney Kongolo completou para fora). Mas o Den Haag seguiu com sua defesa mais fechada e concentrada. E ganhou um ponto para mitigar sua difícil situação. Vencedor, na partida, só Ricardo Kishna: 1168 dias depois, o atacante afligido por diversas lesões no joelho voltou a jogar, pelo ADO Den Haag. E comoveu, celebrando a vitória pessoal com lágrimas ao fim da partida.
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VVV-Venlo 2x2 Zwolle (sábado, 28 de novembro)
No primeiro tempo, os gols foram quase os únicos momentos de emoção em Venlo. Quando o time da casa abriu o placar, aos 22', a infelicidade foi do goleiro Michael Zetterer, soltando cruzamento nos pés de Jafar Arias. Já o empate dos Zwollenaren, aos 36', foi mérito de Kenneth Paal: o lateral esquerdo acreditou na jogada, evitou que a bola saísse pela linha de fundo e cruzou para Immanuel Pherai fazer. Já na etapa final, o Zwolle trouxe mais emoção, buscando o gol com jogadas pelas pontas. E conseguiu a merecida virada aos 69', quando Mike van Duinen completou cruzamento - o goleiro Thorsten Kirschbaum quase defendeu, mas a bola passou por ele. Veio ainda uma bola na trave de Mustafa Saymak, aos 74'. Mas aí, inesperadamente, quando o VVV-Venlo mais precisava de seu goleador, ele apareceu: aos 78', Georgios Giakoumakis tocou por cobertura, na saída de Zetterer, para empatar marcando seu nono gol, voltando à artilharia da Eredivisie e completando uma etapa final animada.


Vitesse 2x0 Fortuna Sittard (domingo, 29 de novembro)

O Vitesse foi mais um time a enfrentar um adversário fechado que apostava nos contragolpes - algo justificado, pela situação difícil que o lanterna Fortuna Sittard vive no campeonato. Mas os visitantes de Sittard tiveram êxito, na maior parte do tempo: não só contiveram o time de Arnhem, mas até assustaram, numa tentativa de Emil Hansson. No entanto, de tanto bater na pedra dura, o Vites a furou na reta final do jogo. Duas vezes, na bola parada. Aos 74', Oussama Darfalou completou escanteio para o 1 a 0; e aos 83', Armando Broja completou lançamento de Oussama Tannane para confirmar a vitória que mantém a perseguição (difícil) ao Ajax.

Feyenoord 1x1 Utrecht (domingo, 29 de novembro)

O Utrecht até surpreendeu. Apostando em contra-ataques rápidos, mesmo sem tanta posse de bola, pôs o Feyenoord sob sérios riscos no primeiro tempo. A começar nos primeiros minutos: Sander van de Streek perdeu gol aos 3' (o goleiro Nick Marsman rebateu), e Mimoun Mahi mandou rente à trave aos 4'. Como faria aos 25', completando cruzamento de Bart Ramselaar. O time da casa só assustou em De Kuip aos 10': num cruzamento, o lateral Mark van der Maarel desviou contra o próprio gol, a bola bateu na trave, e o goleiro Maarten Paes evitou que ela entrasse. Se errou na defesa, porém, Van der Maarel acertou no ataque quando o segundo tempo começou: aos 50', em seu 250º jogo pelo Utrecht, fez 1 a 0, finalizando após escanteio. Houve até chances para ampliar - como com Ramselaar, aos 50'. Mas inesperadamente, quem balançou as redes foi o Feyenoord, empatando aos 65' numa triangulação - Steven Berghuis cruzou, Marcos Senesi ajeitou, Lutsharel Geertruida completou. Tão inesperado que o Utrecht é que teve mais chance de voltar à frente, depois. Marsman evitou, em tentativas de Simon Gustafson (77') e Othman Boussaid (83'). E ficou mais um empate para o Feyenoord.

Groningen 1x0 Willem II (domingo, 29 de novembro)

Desde o começo, o Groningen tomou o domínio ofensivo das ações contra os Tricolores visitantes. Com 25 minutos de jogo, já eram dez chutes a gol dos Groningers - os mais perigosos, de Damill Dankerlui e Patrick Joosten (que ainda reclamou pênalti). Depois disso, Joël van Kaam - titular, mais uma vez - também passou por uma jogada e reclamou penalidade máxima. De nada adiantava: gol, mesmo, o Groningen não tinha. Só teria aos 63': Tomas Suslov passou, e Ahmed El Messaoudi chutou forte para fazer 1 a 0. Só aí o Willem II buscou mais o ataque, com (quem mais?) Vangelis Pavlidis, que tentou finalizar, lançou a bola a outros companheiros... mas a vitória ficou com o Groningen, estabilizado no meio da tabela. Já os visitantes de Tilburg saíram preocupados: só uma posição acima da zona de repescagem/rebaixamento.

Heracles Almelo 1x2 AZ (domingo, 29 de novembro)

O Heracles Almelo até deu a primeira estocada (chute em diagonal de Sinan Bakis, aos 12'), mas o AZ logo dominou a posse de bola e rondou mais a área. O único nome que evitava o gol dos visitantes de Alkmaar era o goleiro Michael Brouwer - principalmente na ótima defesa feita no cabeceio de Myron Boadu (titular de novo), aos 32'. A demora só acabou por um pênalti, aos 41', quando Robin Pröpper derrubou Boadu na área - e aí, Teun Koopmeiners cobrou com a segurança de sempre para o 1 a 0. O triunfo dos Alkmaarders ficou ainda mais encaminhado logo depois: aos 44', Koopmeiners cruzou, e Boadu cabeceou para o 2 a 0. Na etapa final, o domínio do AZ continuou: nas chegadas constantes à área, Calvin Stengs trouxe mais perigo, aos 53' (Brouwer espalmou) e 70' (bola na trave). Só que o time de Alkmaar não fez, e tomou leve susto: aos 76', Lucas Schoofs completou cruzamento para diminuir a vantagem. Mas o AZ seguiu seguro, seguiu atacando, conseguiu a quarta vitória seguida na Eredivisie.


PSV 1x0 Sparta Rotterdam (domingo, 29 de novembro)

O PSV já entrou em campo sem tanta força: em meio à roda-viva de jogos, foram oito titulares poupados. E com bola rolando, ficou claro que o time misto dos Boeren teria seríssimas dificuldades em superar um Sparta bem fechado (com até cinco na defesa). E o primeiro tempo transcorreu monótono. Se houve chute a gol, foi dos visitantes de Roterdã: aos 9', num contra-ataque, Lennart Thy aproveitou a má saída de gol de Lars Unnerstall, driblou-o fora da área e ficou com o gol vazio - mas chutou para fora. No segundo tempo, o goleiro Maduka Okoye trabalhou mais, em chutes de Eran Zahavi (57') e Adrian Fein (59'), só que a dificuldade no ataque seguia. Três titulares do setor entraram - Donyell Malen, Cody Gakpo e Noni Madueke. E num pênalti, aos 78', veio a chance que o time da casa esperava para furar a barreira. E Malen ainda perdeu a cobrança, mas fez 1 a 0 no rebote de Okoye. O Sparta assustou no fim - Danzell Gravenberch perdeu aos 87' -, mas afinal os três pontos foram para a conta do PSV.

sábado, 28 de novembro de 2020

Os 25 anos de Ajax x Grêmio - na visão do Ajax

O Ajax pode nem comemorar tanto a conquista do Mundial Interclubes de 1995 quanto o Grêmio lamenta a derrota. Mas os Ajacieden gostam de lembrar, sim, que foram campeões. E fazem questão de ostentar a conquista - com a camisa que Dinho vestiu naquela final (Marcelo Alves/O Globo)


Muito se sabe de como o Grêmio reagiu em relação à final do Mundial Interclubes, contra o Ajax, há exatamente 25 anos: a postura de admiração em relação ao adversário, a irritação com o juiz inglês David Elleray (pela polêmica expulsão de Rivarola), a lamentação pela derrota nos pênaltis, após 120 minutos de 0 a 0, o orgulho por ver que o Tricolor segurou um adversário que causava tanto furor no futebol mundial, naquela década. Pois do lado do Ajax, a empolgação com aquela partida no Estádio Mundial de Tóquio evidente e obviamente não era a mesma. Porém, a postura do Grêmio em campo - e o fato de que, ora bolas, se tratava de um título mundial, que o Ajax só ganhara em 1972 (e se recusara a disputar em 1971 e 1973) - fizeram com que o clube holandês valorizasse a conquista daquele 28 de novembro de 1995. Conquista sempre lembrada - até pela camisa 5 vestida por Dinho naquela final no Japão, exposta no museu dentro da Johan Cruyff Arena, como se vê acima. É essa visão holandesa sobre aquele Mundial Interclubes será descrita aqui.

O Ajax no Brasil: a mania com respeito até exagerado

No Brasil, a badalação que se fazia sobre os Amsterdammers era até demasiada. É verdade que os motivos justificavam: o Ajax não só fora campeão holandês invicto na temporada 1994/95, como seguia com uma sequência admirável de jogos sem derrota. Em todas as competições - Copa da Holanda, Liga dos Campeões e Campeonato Holandês -, o Ajax não perdia desde 8 de janeiro de 1995. Até ali, em 15 rodadas da Eredivisie 1995/96, eram 14 vitórias, um empate e somente três gols sofridos. Não servia muito de parâmetro. Mas Alberto Helena Júnior, então colunista da Folha de S. Paulo, explicava o esquecimento do fato de que o nível técnico da Eredivisie era fragílimo: "Afinal, argumentam, o Campeonato Holandês é um cemitério de galinhas. Certo, até concordo. Mas, para chegar a Tóquio, o Ajax teve de matar pelo caminho alguns leões da Europa, como, por exemplo, o Milan e o Bayern de Munique, abatido por 5 a 2, fora os gols perdidos e o baile". Outro a lembrar isso foi Galvão Bueno, logo no começo do jogo, na transmissão da TV Globo: "No Campeonato Holandês eles têm o Ajax, o Feyenoord e o PSV. E o resto, não joga na divisão D do futebol brasileiro. Por isso aquelas goleadas de 8 a 0, 11 a 0, 10 a 0... eles jogam com defesas muito frágeis. É uma coisa sistemática do futebol holandês".

Para aumentar o respeito até exagerado que se tinha em relação ao Ajax, na semana anterior ao jogo em Tóquio, aquela equipe disputara um jogo considerado inesquecível - pelos próprios jogadores: na quinta rodada da fase de grupos pela Liga dos Campeões 1995/96, em 22 de novembro, o Ajax vencera o Real Madrid por 2 a 0, em pleno Santiago Bernabéu. E o nível técnico mostrado pelos Ajacieden deixara aquele placar muito barato, numa atuação até histórica. Além do mais, se Frank Rijkaard encerrara a carreira após o título europeu e se Clarence Seedorf já era da Sampdoria àquela altura, sobravam jogadores falados, de talento reconhecido (Edwin van der Sar, Frank de Boer, Edgar Davids, Jari Litmanen, Patrick Kluivert) ou apenas cumpridores discretos dos deveres (Michael Reiziger, Winston Bogarde, Ronald de Boer), todos treinados por Louis van Gaal.


Enfim: o Ajax era mania em 1995. Até no Brasil: a TV Globo exibira a final da Liga dos Campeões contra o Milan na tevê aberta, a TVA Esportes a exibira na tevê por assinatura - e já convertida em ESPN Brasil, seguia mostrando a Liga dos Campeões. E muita gente que assistia a futebol àquela altura achou aquele time vencedor, no mínimo, interessante. Prova disso era a matéria de Rodrigo Bueno, para a Folha de S. Paulo em 26 de novembro de 1995, ouvindo Nelson Semeone, gerente da Planeta Futebol, loja paulistana de camisas de futebol, que tinha certa fama: "O Ajax sempre vendeu bem, mas, devido à atual fase que o time vive, temos vendido mais de 40 camisas do Ajax por semana". Era um número maior do que as camisas de qualquer clube brasileiro vendidas na Planeta Futebol naquela época.

Na Holanda: quanto mais perto o jogo, mais informação e mais cuidado

Logo após a final vencida na Liga dos Campeões, Louis van Gaal deu mostra de como a Copa Libertadores (e quem a decidia) era um assunto totalmente alheio ao Ajax. Perguntado por Marcelo Duarte, enviado especial da revista Placar à decisão contra o Milan, o técnico disse: "Não sei quem vem do lado de lá". Porém, à medida que a partida em Tóquio foi se aproximando, pouco a pouco vieram as informações sobre o Grêmio. Tanto internas, para a comissão técnica do Ajax, quanto externas, para a torcida. E elas repercutiam na Holanda (Países Baixos) o estereótipo que se tinha daquela equipe gremista (com Danrlei, Arce, Adílson - hoje Adílson Batista -, Roger - hoje Roger Machado -, Dinho, Luís Carlos Goiano, Arílson, Carlos Miguel, Jardel, Paulo Nunes...): um time mais de força do que de técnica. Foi o tom da notícia do diário Algemeen Dagblad em 1º de setembro de 1995, repercutindo a conquista da Libertadores pelo Tricolor: "O mosqueteiro é o mascote do clube: um soldado com armas históricas. Combina com o time, no qual faltas duras e comportamento são mais frequentes do que a típica técnica brasileira".

Porém, tão logo o Ajax viajou a Tóquio, logo após a marcante atuação de 22 de novembro de 1995 contra o Real Madrid na Liga dos Campeões, é justo dizer: o foco foi total no Grêmio. E se houve um personagem que tomou todo o cuidado para que o adversário brasileiro fosse bem conhecido dos Ajacieden, foi justamente quem assumiu desconhecimento sobre os times que poderiam vencer a Libertadores: Louis van Gaal. Em podcast especial produzido pelo Ajax sobre aquela final, Blind reconheceu: "Só fomos estudar sobre o Grêmio na semana do jogo. Como o Mundial Interclubes é bem mais importante na América do Sul - é o maior título que se pode ganhar para um clube de lá -, eles já estavam se preparando havia duas semanas". 

Junto a Blind no podcast, Van der Sar (hoje diretor geral do Ajax) se lembrou: "Van Gaal e a comissão técnica expuseram tudo que era necessário saber sobre o Grêmio". E o ex-goleiro se recordou de um fator altamente importante para o Ajax não se abalar com o fuso horário japonês - as constantes atividades que a delegação vinda de Amsterdã teve, tão logo chegou a Tóquio, quatro dias antes do jogo: "Não podíamos dormir, de jeito nenhum: a gente precisava ficar em pé, precisava andar, precisava ficar acordado. E as atividades que Van Gaal planejou foram úteis para isso". Quais atividades? Um simples passeio por parques, templos e lojas de eletrônicos em Tóquio, com várias câmeras fotográficas para registrar tudo. As diferenças culturais chamaram a atenção, conforme registrou o jornalista Mark van den Heuvel no diário Het Parool, em 27 de novembro de 1995. Blind elogiava: "As pessoas são muito gentis". Kluivert estranhava: "As pessoas aqui são meio estressadas". E Van Gaal já reconhecia: "Eu não viveria em Tóquio. Muito estresse, muitas filas, muitos prédios. E japoneses são incrivelmente gentis, mas... até demais. Prefiro algo mais normal. Mas não levo a mal os japoneses, é a cultura deles".

No "Het Parool" de 27 de novembro de 1995, a estratégia do Ajax para driblar o fuso horário na viagem a Tóquio: andar, andar e andar pela capital (Reprodução/Arquivo)

De todo modo, se a viagem era cansativa e se os torcedores eram poucos em Tóquio (mas provocativos: traziam camisetas com os dizeres "Grêmio, Grêmio, who the fuck is Grêmio?” - "Grêmio, Grêmio, que merda é essa de Grêmio?" - antes do jogo), quem era da delegação do Ajax tinha um objetivo, como expressava ao Het Parool Bobby Haarms (1934-2009), um faz-tudo naquela delegação, figura querida e histórica no Ajax: "Não estou aqui para me divertir. Estou aqui para um jogo. Não importa muito onde ele é, se em Tóquio ou em Deventer [cidade do Go Ahead Eagles, time holandês]".

E cada vez mais, a imprensa holandesa repercutia sobre o Grêmio naquelas vésperas da decisão em Tóquio. Com um destaque básico: o estilo firme da marcação do time de Luiz Felipe Scolari. No Het Parool de 27 de novembro, Mark van den Heuvel citava que um jornalista holandês, Jan Donkers, fora assistir a Grêmio 1x0 Sport, no Olímpico, em 29 de outubro, pelo Campeonato Brasileiro - e ficou impressionado com o estado dos jogadores do Sport: "Eles chegaram ao hotel mancando, pareciam soldados voltando da guerra". No diário Trouw, o jornalista Matty Verkamman trazia uma opinião brasileira respeitável - Paulo Roberto Falcão, que comentaria o Mundial Interclubes para a Rádio Gaúcha: "Eu valorizo o futebol do Grêmio, assim como faço com o Ajax. Eles se defendem bem e saem rápido para o contra-ataque. É mais ou menos como a Seleção Brasileira foi campeã mundial, nos Estados Unidos: defesa fechada e ataque bem dosado. Pode não ser bonito mas é eficiente".

Na edição do Trouw de 28 de novembro, dia do jogo, Matty Verkamman escrevia até um curto histórico do Grêmio. Finalmente, eram repercutidos os destaques do Grêmio: Arílson, Paulo Nunes e, o mais comentado, Jardel. E uma opinião que "Felipão" deu na coletiva pré-jogo era muito usada, para descrever a diferença entre o que o Grêmio mostrava em campo e o imaginário do futebol brasileiro na Holanda: "Somos um time europeu. Viemos de um lugar em que o inverno é frio, e alguns lugares não têm espaço para caminhar. Claro que vamos ter um estilo de força física. O Ajax é que é mais comparável a um clube de São Paulo, ou do Rio de Janeiro".

O jogo: Ajax campeão e Grêmio vencedor

Por mais que o Ajax fosse considerado favorito, Van Gaal estava bem informado sobre a principal qualidade ofensiva gremista. Em sua biografia, lançada em 2011, Van der Sar deixou isso claro - e se lembrou de um lance perigoso do Grêmio, já no segundo tempo, aos 77': “Van Gaal dissera: ‘Jardel sempre cabeceia no primeiro pau. Sempre. Ele nunca se posiciona na segunda trave’. Foi isso mesmo, mas uma vez o cara fez que ia para o primeiro pau e foi para o segundo. E a bola foi para lá. Jardel perdeu por um fio de cabelo. Ali eu temi perder o título”. 

De certa forma, a postura Ajacied naquele Mundial Interclubes foi resumida por Van der Sar, no podcast especial do Ajax: "Estávamos todos cansados, mais preocupados com a Eredivisie e a Liga dos Campeões. Mas quando estávamos em campo, sabíamos: era uma decisão, era um título importante, e tínhamos que ganhar". E a equipe de Amsterdã teve dificuldades - até inesperadas. Em seu relato do jogo para a edição de dezembro da revista Placar, Sérgio Xavier Filho descreveu bem a pressão gremista no início do jogo: "O ataque gremista obrigou o goleiro holandês a diversos chutões, e não foi por outra razão que o time gaúcho dominou os primeiros minutos da partida". De fato: foram dois chutes que passaram à esquerda de Van der Sar - Paulo Nunes, aos 5', e Arílson, aos 19'.

E nem mesmo a controversa expulsão de Rivarola, numa dividida pela bola com Kluivert, aos 56' - que até rendeu grande chance do Ajax (Litmanen chutou fraco para Danrlei pegar, na sequência) - fez com que o Ajax melhorasse. Danny Blind lamentou: "Não conseguimos impor o nosso estilo. Estávamos bem na Liga dos Campeões, mas jogamos mal em Tóquio. Mesmo com o Grêmio tendo dez jogadores, fomos lentos". Não só foram lentos: também permitiram chances ao Tricolor, principalmente na segunda parte dos 90 minutos - como dois toques de Jardel, aos 60' e o supracitado, aos 76'. Nem mesmo a entrada de Nwankwo Kanu criou mais chances no ataque. A rigor, os únicos dois destaques dos Ajacieden foram Blind, na defesa, e Overmars, bastante ativo na ponta direita.

Para sempre a torcida do Grêmio criticará o juiz David Elleray: uma dividida até normal rendeu a expulsão a Rivarola. Mas o Ajax também criticou o juiz daquela decisão de Mundial (Masahide Tomikoshi)

Se o interesse dos Ajacieden em Amsterdã não era o mesmo que o dos gremistas (e dos colorados, "aumentando" a torcida do Ajax) em Porto Alegre, ele existia: o Algemeen Dagblad do dia do jogo previa uma "onda de gripes" na capital holandesa, para mais gente "enforcar" o trabalho e ir assistir à partida, às 11h da manhã de Amsterdã - e mesmo que as empresas na cidade mantivessem expediente normal, deixariam telões à disposição dos funcionários para uma espiadela no jogo, nos horários de folga.

Assim, todos viram um Ajax que teve até mais posse de bola, mas criou pouco. Cruzou bolas em excesso - foram 39 lançamentos para a área. Que sofreu com o gramado do Estádio Nacional de Tóquio, o elemento mais criticado pelo Ajax naquela final - o Het Parool do dia seguinte à final registrou Van Gaal irado: "Estava horrivelmente escorregadio. A final do Mundial Interclubes deveria ser jogada em condições perfeitas, e seguramente não foi o caso". 25 anos depois, Van der Sar se recordou: "Era um gramado careca, era ralo demais". E se a arbitragem de David Elleray foi o item mais criticado pelos gremistas, por rigor excessivo (e por demorar a dar cartões para o Ajax), a queixa do Ajax foi a oposta. O Het Parool registrou as palavras do presidente Ajacied, Michael van Praag: "Realmente perguntei se o juiz é que não deveria ter recebido o carro da Toyota, como melhor da partida. Ele deixou passar algumas faltas duras do Grêmio, durante a partida".

Na hora dos pênaltis, o Ajax estava tão despreocupado. Sequer treinara cobranças. Treinador dos goleiros da equipe holandesa, Frans Hoek justificou: "Van der Sar já sabe os cantos em que os batedores cobram. Treinar para quê?". E mesmo com o erro de Kluivert, a calma se apresentou nas cobranças. Melhor exemplo disso não houve do que o cobrador que converteu para o 4 a 3 que deu o segundo título mundial da história do Ajax. Van Gaal comentou: "Blind se ofereceu para bater o último. Facilitou o meu trabalho". E bateu muito bem para definir o título que orgulhou Frank de Boer, ao diário Amigoe: "Alguém acabou de me dizer 'que orgulho seus pais devem ter de você e de Ronald'. É, eu me emocionei".



Ainda assim, mesmo com o Ajax campeão, o Grêmio podia se orgulhar. Tinha conseguido o que o Real Madrid passara longe de conseguir na Liga dos Campeões, quase uma semana antes: dificultado as coisas. Na Folha de S. Paulo de 29 de novembro, dia seguinte à final, Alberto Helena Júnior (constantemente elogioso ao Ajax e crítico ao Grêmio) deu o elogio insuspeito: "O Ajax é campeão, mas o Grêmio é vencedor".

A festa foi pouca, mas foi festa

Não, o Ajax não fez muita festa no estádio - "não era um ambiente fervilhante, tinha uma pista de atletismo, deixava a torcida distante", opinou Van der Sar ao podcast especial de 25 anos da conquista. No entanto, quando o time saiu do Estádio Nacional de Tóquio, com a delegação unida de novo, pôde festejar. Primeiro, no Hard Rock Café de Tóquio ("Cantamos umas músicas de André Hazes, até o sol raiar, quase até a hora da viagem de volta", riu Van der Sar). 

Depois, no dia 30 de novembro, data do desembarque em Amsterdã - que tivera lá seus festejos com a vitória (cerca de mil pessoas foram às ruas após a cobrança decisiva de Blind) e que rendera boa audiência (4 milhões de telespectadores viram a partida de Tóquio, na emissora NOS). Se a festa na Museumplein, a Praça dos Museus, foi menos empolgada do que a apoteose dos festejos pelo título da Liga dos Campeões, também atraiu lá seus milhares de pessoas. 

E deixou claro que, sim, o Ajax se orgulha do título mundial ganho diante do Grêmio. Não fosse assim, e Louis van Gaal não faria este discurso na festa na Museumplein, até hoje lembrado, 25 anos depois:

"En wat zijn wij? Wij zijn de beste! Wij zijn de beste! En niet alleen van Amsterdam, maar ook van Rotterdam! En ook van Eindhoven! En ook van Europa! En wij zijn de beste van de.... wereld!"

(E o que nós somos? Nós somos os melhores! Nós somos os melhores! E não só de Amsterdã, mas também de Roterdã! E também de Eindhoven! E também da Europa! E nós somos os melhores do... mundo!)

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Mostrando coragem

Entre os clubes holandeses que ora participam da Liga Europa na temporada atual, a situação era melhor para uns (AZ) e pior para outros (PSV) quando a quarta rodada da fase de grupos começou. Impossível dizer que houvesse uma uniformidade de níveis de atuação em campo. Mas a rodada mostrou uma qualidade comum aos dois supracitados, mais o Feyenoord: coragem. Talvez tenha sido por ela que todos eles tenham conseguido resultados que, se não foram perfeitos, mantêm as chances de classificação à segunda fase, a duas rodadas do fim.

O PSV poderia ter se baqueado com a desvantagem precoce para o PAOK. Mas o ataque se fortaleceu - com Malen, entre outros -, e a virada foi merecida (Soccrates/PSV)

E não houve melhor exemplo dessa coragem demonstrada em campo do que o PSV. Afinal de contas, as circunstâncias da fase inicial da partida contra o PAOK foram as piores possíveis: mesmo em Eindhoven, o time da casa revelou uma defesa lenta nas pontas e desatenta no miolo. Prato cheio para Christos Tzolis, Andrija Zivkovic e quem mais ajudasse colocassem o time grego na frente em apenas 13 minutos de jogo. No primeiro gol, aos 4', o desvio insuficiente da defesa deixou a bola nos pés de um Fernando Varela livre para chutar; e no segundo, aos 13', novamente houve espaço para Zivkovic levantar a bola na cabeça de Tzolis - que surgiu por trás, sem ninguém a acompanhá-lo. Para piorar, dois minutos antes do PAOK fazer 2 a 0, quando o PSV foi competente, um erro de arbitragem lhe tirou o gol de empate: Donyell Malen estava em posição legal ao cabecear para as redes, mas um impedimento foi marcado. Só que, se alguém dos Boeren estava em posição irregular, era Eran Zahavi - que não estava participando da jogada. Parecia tudo perdido.

Mas a partir do meio do primeiro tempo, o PSV se recompôs. Se Zahavi não jogava bem, o trio Noni  Madueke-Cody Gakpo-Donyell Malen compensava isso, acelerando as jogadas de ataque. Foi exatamente com rapidez que veio o primeiro gol, aos 20': Madueke tocou rápido, e Gakpo entrou livre na área para finalizar. E no restante da primeira etapa, os anfitriões criaram muitas chances de empate: com Malen, com Ibrahim Sangaré (boa atuação), até mesmo com Olivier Boscagli. A desvantagem seguia no intervalo, mas o PSV parecia destinado ao empate. E logo que o segundo tempo começou, o time de Eindhoven fez até melhor: seguiu rápido, e fez o PAOK provar do próprio veneno. Com rapidez nos avanços pelas pontas, assim surgiu o gol de empate, aos 51', com Madueke. E já dois minutos depois, a esperteza de Malen o deixou livre para aproveitar o rebote de arremate de Zahavi e virar o placar. E no resto do jogo, o PSV seguiu alerta. Sofreu pouco na defesa. E voltou à disputa pelas vagas na segunda fase: com 6 pontos, é vice-líder do grupo E. Terá dificuldades na quinta rodada, indo à Espanha para pegar o líder Granada. Mas voltou a falar grosso.

Com onze em campo, o Feyenoord até atacou, com Toornstra ajudando nos contragolpes. Após a expulsão de Jorgensen, a defesa deu conta do recado contra o CSKA Moscou (Getty Images/UEFA)

Se o PSV se valeu do ataque para se recuperar do mau começo contra o PAOK, o Feyenoord foi corajoso exatamente ao não ser corajoso. Até porque, no início do jogo contra o CSKA Moscou, fora de casa, o time moscovita é que trouxe mais perigo, nas chances de Nikola Vlasic (8') e Ivan Oblyakov (16'), que passaram rente ao gol. Todavia, o Feyenoord mostrava rapidez no contra-ataque, graças às boas atuações de Jens Toornstra e Orkun Kökcü. Até por isso, também fez o goleiro Igor Akinfeev trabalhar vez por outra - como não podia deixar de ser, com Steven Berghuis (aos 24' e 35'). E mesmo se o CSKA Moscou reaparecesse na área, o goleiro Nick Marsman estava a postos para boas defesas, como fez no arremate de Fyodor Chalov, aos 40'. Até mesmo o lateral direito Bart Nieuwkoop teve sua chance de gol - até a mais perigosa de todas do Stadionclub, nos acréscimos da etapa inicial.

Porém, qualquer ofensividade do Feyenoord foi forçosamente cortada logo no princípio do segundo tempo. Afinal, de novo o time perdeu um jogador por expulsão: aos 48', Nicolai Jorgensen acertou o rosto de Magnusson com o cotovelo e recebeu um cartão vermelho quase indiscutível. Aí entraram os méritos da defesa: se as laterais mostravam alguma fragilidade (principalmente a esquerda, com Lutsharel Geertruida), elas ficaram mais fechadas. No miolo de zaga, Marcos Senesi e Uros Spajic justificaram a confiança cada vez maior que recebem da torcida: foram seguros na marcação dos atacantes. Na única vez que o CSKA Moscou entrou na área e balançou as redes, aos 65', Ilya Shkuryn estava impedido. No mais, só tentativas infrutíferas pelas pontas e chutes de fora, tão inofensivos quanto. É fato: as partidas contra a equipe russa reabilitaram o Feyenoord na Liga Europa, segundo colocado do grupo H que é, agora. Mas vencer o Wolfsberger austríaco, fora de casa, na próxima rodada, ainda é imperativo para o Stadionclub se fortalecer de vez no torneio.

O AZ foi mais ofensivo contra a Real Sociedad. Mas lamentou muitas chances perdidas (ANP)

Se há um time que tem o que lamentar na rodada, mesmo com atuação elogiável, é o AZ. Afinal de contas, não só o time voltou a mostrar alguma firmeza na defesa contra a Real Sociedad: ao contrário do que se vira na rodada passada, em San Sebastián, os Alkmaarders tiveram um pouco mais de coragem na frente. O que resultou em mais chances trocadas no primeiro tempo: Jonas Svensson (22', voleio torto para fora) e Teun Koopmeiners (30', chute desviado e defendido por Àlex Remiro) tentaram de um lado, Adnan Januzaj (24', por cima do gol) e Mikel Oyarzábal (arremate pego por Marco Bizot) tentaram do outro.

No segundo tempo, o equilíbrio pode até ter seguido, mas o AZ criou mais chances do que os visitantes da Espanha. Duas delas, em menos de um minuto. Aos 59', Dani de Wit cabeceou em cima de Remiro, na pequena área, e o goleiro rebateu; a jogada seguiu, e Koopmeiners acertou o travessão, num chute de média distância. Se a Real Sociedad rondava o gol, tinha a barreira segura da defesa - Bizot espalmou a maior chance, em falta de Roberto López aos 81'. E aos 88', a bola do jogo foi à cabeça de Zakaria Aboukhlal, vindo do banco - só que o marroquino foi desajeitado no cabeceio, e ela encobriu a meta de Remiro. E mesmo com o empate, o AZ caiu para a terceira posição do grupo F (embora com 7 pontos, como a Real Sociedad, tem saldo de gols menor). Claro, a classificação ainda é possível, ainda mais tendo em vista que o jogo da última rodada tem o Rijeka croata, frágil. Mas, se o time de Alkmaar quiser se fortalecer mais no grupo, precisará de um ponto - ou três - contra o Napoli, na próxima rodada.

Ainda assim, vencendo ou empatando, ofensivos ou defensivos, os times holandeses mostraram mais coragem nesta rodada da Liga Europa. Têm um prêmio momentâneo: continuam, todos eles, com chances de classificação à segunda fase do torneio. A ver se continuarão assim na penúltima rodada, para continuarem com chances.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Na mira

O Ajax vinha bem contra o Midtjylland, criava chances... mas faltava o gol. Por grande mérito de Gravenberch (centro), ele logo veio. E a vitória fácil foi concretizada (Pro Shots)

Talvez esta tenha sido a primeira partida realmente fácil que o Ajax teve em sua campanha na Liga dos Campeões. Aliás, podia ter sido facílima, tantas as chances que o time holandês teve para resolver o resultado contra o Midtjylland dinamarquês já no primeiro tempo. No entanto, os Ajacieden tiveram até sorte por acertarem rapidamente a mira na etapa complementar. E a vitória por 3 a 1 completou a tarefa que se esperava: vencer bem a equipe dinamarquesa, a mais fraca do grupo D, antes de partir para tentar uma vaga nas oitavas de final contra Liverpool (próxima rodada, em Anfield) e, principalmente, a adversária direta Atalanta (última rodada, em Amsterdã). De todo modo, essa vaga está na mira.

Na verdade, havia razões para o Ajax respeitar o Midtjylland. Primeiro, porque o time dinamarquês demonstrara capacidade para assustar, no 2 a 1 árduo da terceira rodada. Segundo, e principalmente, pelas várias lesões (Noussair Mazraoui, Davy Klaassen, Antony) que colocavam dúvidas sobre o time que entraria no gramado da Johan Cruyff Arena. Mas tanto Mazraoui quanto Klaassen puderam entrar em campo - Antony foi preservado no banco. E o Ajax começou bem, muito bem. Rápido pelas pontas, mantendo a posse de bola, seguindo no campo de ataque.

Tanto que as chances se avolumaram. Assim como a quantidade de gols desperdiçados: foi Lassina Traoré mandando por cima do gol aos 9', foi Zakaria Labyad perdendo uma primeira chance aos 10', foi Labyad cabeceando livre, na pequena área, para grande defesa do goleiro Jesper Hansen aos 17', foi Traoré perdendo duas grandes chances em sequência (aos 27', o burquinense chutou no travessão; aos 28', livre na área, novamente concluiu sobre o gol), foi Perr Schuurs arriscando um voleio torto aos 35'... para piorar, o Midtjylland deu leves sustos - como um arremate de Alexander Scholz, aos 42'. Parecia o típico caso de "quem não faz, toma". Criar, o Ajax criava. Ter superioridade, o Ajax tinha - até ampla. Mas de nada adiantaria se os gols não viessem.

As chances perdidas por nomes como Traoré (foto) poderiam ter feito falta ao Ajax. Mas o começo do segundo tempo já resolveu as coisas (Getty Images)

Para a sorte do time Amsterdammer, vieram tão logo o segundo tempo começou. Aliás, começaram vindo em grande estilo, a partir do chute preciso e perfeito de Ryan Gravenberch, coroando ótima atuação já aos 47'. Porém, Gravenberch só tivera a bola porque Dusan Tadic a passara antes. E o sérvio, discretamente, deu outra mostra de sua importância diferenciada no ataque Ajacied já aos 49': seu lançamento em profundidade deixou Mazraoui livre para tocar e fazer 2 a 0. 

A vitória estava encaminhada. E mesmo que outras chances tenham sido perdidas (como um cabeceio de Labyad, aos 55'), tanto o Ajax estava mais seguro em campo, menos apressado, como o Midtjylland apresentava fragilidades decepcionantes. Prova disso foi o lance do terceiro gol, aos 66': Traoré ganhou uma dividida aérea do zagueiro Erik Sviatchenko, com facilidade, e deixou David Neres livre para arrematar rumo às redes. Certo, houve o pênalti que Awer Mabil converteu no gol de honra dos visitantes dinamarqueses, aos 79'.

Mas era só uma nota de pé de página. O Ajax já cumprira o seu compromisso, de forma fácil que podia ter sido até facílima. Já está garantido na segunda fase de uma competição europeia, Liga dos Campeões ou Liga Europa. Na Champions League, mantém a vaga nas oitavas na mira - e em boas condições, segundo colocado do grupo D que é. Mas para chegar até ela, precisará superar Liverpool e Atalanta. Pelo que fez nesta quarta, tem condições de fazer isso. Quem sabe, com um pouco mais de eficiência.

Liga dos Campeões - fase de grupos - Grupo D

Ajax 3x1 Midtjylland-DIN

Local: Johan Cruyff Arena (Amsterdã)
Data: 25 de novembro de 2020
Árbitro: Sergei Karasev (Rússia)
Gols: Ryan Gravenberch, aos 47', Noussair Mazraoui, aos 49', David Neres, aos 66', e Awer Mabil, aos 81'.

Ajax
André Onana; Noussair Mazraoui (Sean Klaiber), Perr Schuurs, Daley Blind (Lisandro Martínez) e Nicolás Tagliafico; Ryan Gravenberch, Zakaria Labyad (Quincy Promes) e Davy Klaassen (Edson Álvarez); David Neres, Lassina Traoré e Dusan Tadic. Técnico: Erik ten Hag

Midtjylland
Jesper Hansen; Dion Cools, Erik Sviachenko, Alexander Scholz e Paulinho (Joel Andersson); Frank Onyeka e Nicolas Madsen (Nicolas Anderson); Anders Dreyer (Gustav Isaksen), Pione Sisto (Luca Pfeiffer) e Awer Mabil; Sory Kaba (Bozhidar Kraev). Técnico: Brian Priske

Jongbloed: muito mais do que um goleiro camisa 8

Jongbloed ganhou no imaginário do futebol uma memória inconfundível: foi "o goleiro da Holanda na Copa de 1974, que jogava com a camisa 8". Mas foi mais do que isso (Getty Images)

Sempre que se lê sobre Jan Jongbloed, em grande parte das menções sobre ele, a referência é a respeito do "goleiro da Holanda nas Copas de 1974 e 1978, que usava a camisa 8 e jogava sem luvas". Isso tem toda a razão de ser, claro: afinal, eram grandes ocasiões. E fora elas, Jongbloed realmente não trazia muito mais a ser lembrado pelo público que acompanha/consome futebol. Tanto que não pode ser considerado uma das "grandes laranjas", como o Espreme a Laranja denomina os textos sobre os melhores jogadores da história do futebol da Holanda (Países Baixos): afinal, Jongbloed nunca foi reconhecido por seu talento. 

Todavia, o ex-goleiro também não podia ser colocado na linha dos "grandes jogadores holandeses de quem você nunca ouviu falar" (outra seção deste blog): afinal de contas, bem ou mal, foi titular em duas Copas. E é lembrado por outras razões além das que abrem este texto, feito em celebração aos 80 anos que Jongbloed completa nesta quarta-feira. Razões que serão apresentadas ao longo dele.

A primeira parte: passando despercebido - e gostando disso

Nascido em meio a vários irmãos numa família de Amsterdã, Jongbloed se acostumou a nunca querer ser o centro das atenções. Começou a jogar futebol na rua próxima à sua casa, apenas por diversão - e, de certa forma, por incentivo do pai, um alfaiate que prezava pelos exercícios físicos como o melhor caminho para a longevidade e para o bem estar corporal. Foi o que ele recordou, na biografia Aparteling (termo sem tradução exata para o português, algo como "ovelha negra"), escrita pelo jornalista Yoeri van den Busken, lançada em 2019: "Foi a minha sorte, não se pode negar. Até hoje, jogo vôlei semanalmente com pessoas dez anos mais novas do que eu, que têm dificuldades de movimento".

O futebol também colaborou nisso, de certa forma. Jongbloed logo foi praticar mais seriamente a modalidade, no AFC-DWS (Amsterdamsche Football Club - Door Wilskracht Sterk, "forte pela força de vontade" em holandês), clube hoje amador, que na época era profissional e disputava a primeira divisão holandesa. Já adolescente, ele queria ser goleiro, mas a posição já estava ocupada nos times de base do AFC-DWS. Sem problemas: aprovado, Jongbloed começou a jogar na linha mesmo. Isso serviria para que, quando enfim pudesse jogar no gol, estivesse acostumado ao que hoje se chama "jogar com os pés". Isso mesmo: na virada dos anos 1950 para 1960, Jongbloed já era um goleiro que "jogava com os pés". Até mais do que com as mãos.

E foi assim, adiantado, saindo costumeiramente da área, que Jongbloed evoluiu levemente dentro do futebol holandês. Em 1959, estreou no time principal do DWS, em que seria titular por 13 anos. E rapidamente, ganhou algum reconhecimento. Já em 1960, com 20 anos, foi convocado para a seleção holandesa, sendo reserva de Eddy Pieters Graafland numa excursão pelas Antilhas Holandesas. E em 26 de setembro de 1962, novamente convocado, Jongbloed estreou pela Laranja: substituiu Piet Lagarde nos últimos cinco minutos de um amistoso contra a Dinamarca (goleada dinamarquesa: 4 a 1 em Copenhague).

Após uma única partida pela seleção holandesa, Jongbloed seguiu atuando no pequeno AFC-DWS. Com vida estabelecida fora do futebol, parecia que o deixaria discretamente. Até 1974 (Jacques Klok/Arquivo ANP)

Porém, ser jogador ainda não era algo que desse muito dinheiro na Holanda: mesmo com o profissionalismo já vigente no futebol de lá desde 1956, poucos atletas viviam só do futebol. Jongbloed era um caso desses: paralelamente à carreira no DWS, mantinha (e fazia questão de manter) uma tabacaria, em parceria com a esposa Dien. 

Enfim: o goleiro passava despercebido - e gostava disso. O AFC-DWS nunca foi um clube de ponta no Campeonato Holandês. Havia goleiros melhores e mais reconhecidos no país: Eddy Pieters Graafland, Gert Bals, Piet Schrijvers, Jan van Beveren. Nem mesmo a transformação do AFC-DWS em FC Amsterdam (surgido em 1972, após a fusão entre AFC-DWS e Blauw-Wit - nele, o goleiro seguiu titular) recolocou Jongbloed no radar da seleção. E ele não se importava: já naquela época, preferia a pesca ao futebol. De mais a mais, sua tabacaria ia tão bem que até rendia filiais abertas em Amsterdã.

Em suma, Jongbloed não seria lembrado pelo futebol. Até as vésperas da Copa de 1974.

1974: quando tudo mudou. Ou quase tudo

Antes da Copa de 1974, a posição de goleiro era um relativo problema na preparação da Holanda para o torneio. Jan van Beveren, do PSV, considerado o melhor para jogar debaixo das três traves, não só tinha uma lesão muscular (que terminaria por inviabilizar sua participação na Copa), como já andava às turras com o estilo centralista e personalista de Johan Cruyff e alguns companheiros dele no Ajax. Sobrava Piet Schrijvers, do Twente, que já atuara em algumas partidas das eliminatórias para 1974. Também havia Eddy Treijtel (Feyenoord) e Ton Thie (ADO Den Haag). Todos eles, goleiros que se limitavam a pegar bolas com as mãos. Pouco, para o que Rinus Michels pretendia na seleção que treinaria durante a Copa: usar nela o estilo tático com que já se acostumavam no Ajax. 

Isso incluía um goleiro que soubesse jogar com mãos e pés, quase como se fosse um zagueiro com uniforme diferente. Havia a alternativa de convocar Heinz Stuy, o titular do Ajax tricampeão europeu. Mas Rinus Michels se lembrou do discreto titular do FC Amsterdam. Johan Cruyff gostou da lembrança: nativo de Amsterdã como o goleiro, tinha uma relação cordial com ele, que encontrava vez por outra no meio do futebol. Michels preferiu convocá-lo a chamar Stuy. Reza a lenda que Jongbloed estava pescando quando foi comunicado: fora escolhido para a lista final dos 22 convocados a disputarem o mundial na Alemanha. Verdade ou não, o fato é que o goleiro já veterano (33-para-34 anos) voltou a jogar pela seleção quase 11 anos após sua primeira partida: em 26 de maio de 1974, no último amistoso da Holanda antes da Copa, estava lá Jongbloed na meta, nos 4 a 1 sobre a Argentina.

E Jongbloed virou, quase sem querer, o titular dos sete jogos daquela campanha em que a Laranja deixou de ser uma seleção de terceiro escalão no futebol mundial para entrar na história. Com os convocados inscritos em ordem alfabética, aquele homem que mal ligava para futebol fora do campo recebeu o número 8 em sua camisa - de certa forma, ampliando o ar de "mais um na linha" que trazia. Mas fora dos jogos, o arqueiro da camisa 8 amarela (azul contra a Suécia, na fase de grupos) seguia quase alheio ao futebol e à pressão da Copa. Falando ao biógrafo Van den Busken em 2019, ele se recordou: "Eu achava muito legal jogar futebol, ou ser treinador. Mas, como espectador, não era o maior dos amantes. Nunca fui. Em 1974, por obrigação, a gente precisava assistir a outros jogos da Copa. Eu comecei a me chatear rapidamente. Meus pensamentos iam para Dien e meus filhos, e eu não prestava atenção nenhuma".

Havia goleiros melhores e mais falados na Holanda antes da Copa de 1974. Mas Rinus Michels preferiu Jongbloed. E ele não o decepcionou naquele Mundial (Arquivo ANP)

Já marcado pela camisa 8 e pelo estilo algo ousado de jogar para um goleiro, Jongbloed se notabilizou ainda mais na final daquela Copa: preferiu jogá-la sem luvas - segundo justificou, "para sentir mais a bola". Naquela decisão contra a Alemanha, Jongbloed teve boa participação num lance (defesa em chute de Berti Vogts, no primeiro tempo). Mas foi criticado nos dois gols: sequer escolheu um canto na cobrança de pênalti de Paul Breitner que empatou a final, e ao sequer tentar defender o toque de Gerd Müller que virou o placar para os alemães. Na biografia de 2019, Jongbloed deu de ombros para as críticas: "Quem fala que aquele chute de Müller era defensável nunca jogou futebol".

A Holanda perdeu a final, muita gente no país lamentou a "mãe de todas as derrotas"... mas para o goleiro daquela histórica equipe que simbolizou o "Futebol Total", a vida seguiria a mesma. Tanto que, logo após a Copa, Jongbloed recebeu uma proposta de transferência para o Ajax. Recusou sem dor no coração. Também deixou de lado propostas de Feyenoord e até do Liverpool: preferia continuar pescando, cuidando de sua tabacaria e jogando no ambiente tranquilo do FC Amsterdam.

Repetindo a dose

Jongbloed só deixou o FC Amsterdam (que voltou ao amadorismo em 1982) para outro clube médio/pequeno da Holanda: o Roda JC, em 1977. Já veterano, seguia sendo convocado vez por outra para a seleção, jogava amistosos aqui e eliminatórias da Copa ali, mas perdera a preferência na titularidade para Schrijvers, que fora titular neerlandês na Euro 1976. De todo modo, sua boa forma física, seu ritmo de jogo - era titular absoluto no Roda JC - e sua capacidade de se integrar às jogadas da defesa garantiram a presença entre os 22 convocados para a Copa de 1978. E embora a numeração das camisas da Laranja não tivesse ordem alfabética como em 1974, Jongbloed usaria por vontade própria o número 8. E como na Alemanha, começou titular na fase de grupos.

Entretanto, em meio às várias mudanças por que a Holanda passou antes da segunda fase daquela Copa, para melhorar as atuações após uma inconstante fase de grupos, Jongbloed acabou indo para o banco, com Schrijvers novamente titular. Provavelmente, as coisas seguiriam assim até o final da participação neerlandesa naquele Mundial. Aí, o azar de Schrijvers foi a sorte de Jongbloed: no último jogo da segunda fase, contra a Itália, que definiria uma vaga na final da Copa, o goleiro titular colidiu com o zagueiro Ernie Brandts, justamente na jogada do gol da Azzurra, aos 20'. Lesionado, Schrijvers precisou sair de campo. E foi substituído por... Jongbloed. Que correspondeu àquela situação. E ganhou lugar na seleção que jogou a segunda final de Copa seguida, repetindo a dose de 1974.

Jongbloed começou a Copa de 1978 titular, foi para a reserva no decorrer do torneio... mas o destino fez dele o goleiro da Holanda em mais uma final de Copa (Arquivo ANP)

A derrota para a Argentina, em Buenos Aires, naquele 25 de junho de 1978, foi a última das 24 partidas do goleiro pela Laranja. Entre elas, duas finais de Copa. Nada mal para alguém que já tinha 37 anos e 212 dias - ainda hoje, Jongbloed é o jogador com mais tempo entre a primeira e a última partida pela seleção da Holanda (15 anos, 9 meses e 29 dias). Notável para um jogador tão discreto e avesso a badalações. 

Mas a vida seguia. E ela traria desafios maiores para Jongbloed no começo dos anos 1980.

Várias dores no coração

Virando a barreira dos 40 anos, Jongbloed seguia com o "sangue jovem" (tradução literal de seu sobrenome para o português). Enfileirava temporadas e temporadas como titular do Roda JC. Em 1982, já aos 42 anos, o goleiro mudou novamente de time: do Roda JC, tomou o caminho para o Go Ahead Eagles. Mas se em campo, sua carreira seguia cada vez mais jovial, os problemas fora de campo começaram a se avolumar. A começar pela traumática separação de Dien, esposa de longa data, que já abalou o jogador. 

Mas nada seria tão doloroso para Jongbloed quanto ver aquele que prometia continuar sua trajetória no futebol perder a vida, de maneira tão surpreendente quanto trágica. Seu filho, Eric-Jan Jongbloed, já se iniciava no futebol: também goleiro, Eric-Jan atuava no mesmo DWS em que o pai começara a carreira. E era titular no clube (agora) amador. Até o dia 23 de setembro de 1984, num jogo debaixo de chuva pesada, entre o DWS e o Rood-Wit, outra equipe amadora de Amsterdã. Enquanto Eric-Jan jogava, o pai Jan assistia nas cadeiras atrás do gol. Em meio à chuva forte, houve um relâmpago. Jongbloed pai estava com o rosto virado, conversando com Nicole, sua outra filha. Quando voltou, viu a cena aterradora: o relâmpago transformara Eric-Jan em cinzas. Aos 21 anos, ele tinha morrido em campo.

Nada que Jongbloed passou nos campos de futebol foi tão difícil quanto testemunhar a morte precoce e cruel do filho Eric-Jan, atingido por um raio em campo (Arquivo Nacional)

A tragédia tocou toda a Holanda (Países Baixos). Jongbloed chamou mais a atenção pública ali do que, até, nas duas finais de Copa do Mundo em que jogou. Entrevistado em 2014, Rob Stenacker (colega de Eric-Jan no DWS) descreveu o momento cruel ao jornalista Jurryt van de Vooren. Pouco antes do relâmpago, Stenacker estava na área - cobraria o tiro de meta, mas foi dissuadido por um grito do Jongbloed mais jovem: "Vendo em retrospecto, aquilo salvou minha vida - pode parecer egoísta, mas estou feliz por ter deixado a área. Estava uns seis, sete metros à frente [de Eric-Jan]. Aí, ouvi um barulho horrível nas minhas costas. Notou-se imediatamente que as pessoas tinham visto algo horrível. E quando eu me virei e olhei, só vi fumaça onde Eric estava. Sem exagero: foi como se um mágico o tivesse feito desaparecer".


Nem mesmo um drama daquele tamanho fizera Jongbloed parar de jogar. Ele começou a temporada 1985/86 como titular do Go Ahead Eagles, na primeira divisão holandesa. Até o dia 8 de setembro de 1985, na sexta rodada do Campeonato Holandês, quando a equipe da cidade de Deventer enfrentava o Haarlem, com Jongbloed como titular. Durante aquela partida, o goleiro teve um infarto, em pleno gramado. Foi socorrido, levado ao hospital, sobreviveu. Mas o coração forçava o encerramento da carreira do jogador que mais partidas fez na história do futebol profissional dos Países Baixos: entre 1959 e 1985, Jongbloed entrou em campo por 717 partidas - só pela Eredivisie, foram 686 jogos, um abaixo do recordista, o também goleiro (e recém-falecido) Willem "Pim" Doesburg (1943-2020).


Seguindo no futebol - sem se apegar a ele

Se a carreira em campo teve de acabar, Jongbloed seguiu trabalhando no futebol - fora das quatro linhas. E criou vínculo forte com apenas um clube: o Vitesse. Em 1988, o ex-goleiro entrou para a comissão técnica do time de Arnhem. E já teve uma boa experiência na primeira temporada: auxiliou o treinador Bert Jacobs na vitoriosa campanha que levou o Vites à primeira divisão. Em 1989/90, as coisas melhoraram mais ainda: além do quarto lugar no Campeonato Holandês, os Arnhemmers ainda foram à final da Copa da Holanda.

Ao longo daquela década, o Vitesse foi se estabilizando como um time médio no Campeonato Holandês - e Jongbloed acompanhou todo o processo, do banco de reservas. Às vezes, até como técnico interino: ele comandou a equipe entre novembro de 1995 e junho de 1996, apenas concluindo a temporada da Eredivisie até a chegada de Leo Beenhakker, e entre outubro de 1999 e janeiro de 2000, sendo sucedido por um Ronald Koeman que teria sua primeira experiência como técnico principal.

Se Koeman começava, ali Jongbloed terminava: a partir de 2000, preferiu trabalhar nas categorias de base do Vitesse. Nelas ficou até 2010, quando enfim se retirou do futebol. Dez anos depois, embora continue com leve vinculação ao esporte (é comentarista na Radio Noord-Holland, emissora regional de rádio em Amsterdã), Jongbloed segue pouco afeito a ele. Continua preferindo uma vida tranquila, conforme comentou ao biógrafo Yoeri van den Busken: "Não sou de luxos. Rico, eu não vou ficar. Só tenho uns centavos na conta do banco, e a casa em que moro é minha. Só pago 68 euros por mês. Se eu morrer, fica tudo para Nicole e os filhos dela. Já ajeitei tudo para quando acontecer. Até seria bom se eu tivesse mais, mas estou contente com o que tenho".

Jongbloed em 2016: o futebol sempre o circunda, mas ele não se apega às lembranças (ANP)

Futebol? Só na rádio, ou nas vezes em que vai assistir aos jogos em que a neta atua. Nem mesmo memorabílias do tempo de jogador ele guarda: "Vivi um período legal, mas num certo momento, começam a exagerar sobre a carreira. Sempre penso na minha mãe. Quando estava no leito de morte, ela disse 'foi legal'. É isso". Resumindo ao biógrafo Yoeri van den Busken, Jongbloed resumiu sua vida atual num mantra pessoal: "Eu gosto de pescar, de mulheres e de futebol. Nesta ordem".

E mesmo assim, discretamente, foi um dos únicos goleiros a jogar duas finais de Copa. Mesmo assim, discretamente, sempre será lembrado como "o goleiro da Holanda nas Copas de 1974, que jogava com a camisa 8". Não é para qualquer um.

Jan Jongbloed
Data de nascimento: 25 de novembro de 1940, em Amsterdã
Clubes: AFC-DWS (1959 a 1972), FC Amsterdam (1972 a 1977), Roda JC (1977 a 1982) e Go Ahead Eagles (1982 a 1985)
Seleção: 24 jogos, entre 1963 e 1978

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Um jogo, um parágrafo, um vídeo: a 9ª rodada da Eredivisie

Willem II 2x1 VVV-Venlo (sábado, 21 de novembro)

Rapidez foi a palavra que levou o Willem II a encaminhar a vitória ainda no primeiro tempo. Foi a troca veloz de passes que deixou Vangelis Pavlidis na cara do gol para o 1 a 0, aos 7'. E foi a velocidade que levou Gorkem Saglam a avançar, até marcar um dos gols mais bonitos da rodada, aos 18'. O domínio dos Tricolores era grande a ponto de Pavlidis até ter feito um gol, aos 22' - este foi anulado, por impedimento do grego. Só aí o VVV-Venlo ameaçou um pouco, baseando-se nas bolas altas. Numa delas, aos 23', Vito van Crooij completou na rede pelo lado de fora. Em outra, aos 34', veio o gol dos Venlonaren: Georgios Giakoumakis dominou e diminuiu a vantagem do Willem II para 2 a 1. Numa etapa final de poucas emoções, os visitantes de Venlo até trouxeram perigo no "abafa" dos acréscimos. Mas nada disso impediu a primeira vitória do Willem II após seis rodadas.


Groningen 1x1 Vitesse (sábado, 21 de novembro)

A partida começou extremamente cuidadosa: quem tivesse a bola, parava em frente a uma defesa extremamente fechada. Só um erro do zagueiro Wessel Dammers, aos 11', abriu espaços para a primeira chance do Vitesse, com Matus Bero chutando no travessão. Já o Groningen - que teve um gol anulado - saiu da sinuca de bico pelas pontas - como aos 27', num cruzamento de Daniel van Kaam que Gabriel Gudmundsson completou por cima. Mas só num lance individual veio o gol do time da casa - e que gol: o chute de Patrick Joosten, aos 29', de longe, foi belíssimo. Mas se o Groningen feria com cruzamentos, com cruzamentos foi ferido: antes do intervalo, Oussama Tannane cruzou para Loïs Openda completar e fazer 1 a 1. E o ar "estudado" do jogo só foi interrompido no segundo tempo quando Armando Broja teve boa chance para deixar o Vites na frente, aos 63': driblou o goleiro, mas chutou por cima. A única chance notável, na etapa final de um jogo de muita cautela.


Zwolle 1x1 Utrecht (sábado, 21 de novembro)

Diante de um Utrecht ainda hesitante, com o interino René Hake no comando, o Zwolle foi mais destemido. Da primeira vez que Mustafa Saymak chutou e a bola desviou, aos 12', ela atingiu a trave. Mas na segunda vez, o rumo foi o desejado: Saymak bateu aos 32', a bola resvalou em Django Warmerdam e tirou as chances de defesa do goleiro Maarten Paes: era o 1 a 0 dos Zwollenaren. Ainda no primeiro tempo, Bart Ramselaar até empatou, mas o VAR cortou o barato do Utrecht: o atacante estava impedido. E no segundo tempo, o Zwolle é que quase ampliou - aos 46', principalmente, num cabeceio de Immanuel Pherai. Porém, até inesperadamente, uma dupla importante aliviou os Utregs: aos 59', Gyrano Kerk lançou e Mimoun Mahi fez 1 a 1. Melhor para os visitantes: o Zwolle teve também um gol anulado pelo VAR aos 69' (Jesper Drost estava impedido), e Eliano Reijnders mandou na trave aos 74'.


Ajax 5x0 Heracles Almelo (domingo, 22 de novembro)

Quando Lassina Traoré fez 1 a 0 logo aos 6', ficou claro que seria mais uma rodada tranquila para o Ajax. Houve pelo menos mais duas grandes chances depois - numa delas, a conclusão de Dusan Tadic foi bem defendida pelo goleiro Michael Brouwer aos 28'. Na sobra do escanteio da sequência, David Neres deu a mostra mais firme da superioridade Ajacied fazendo 2 a 0 num belo chute forte, que mandou a bola no ângulo esquerdo. Contra um Heracles Almelo que dava pouquíssimo trabalho, as poucas dúvidas sobre a vitória do Ajax acabaram quando Zakaria Labyad fez 3 a 0, aos 36'. Na etapa final, vieram mais dois gols - Tadic marcou o quarto aos 57' (o VAR ainda teve dúvidas sobre a posição do sérvio, mas validou o gol), e Labyad completou a goleada aproveitando rebote, aos 77'. Líderes isolados do campeonato, os Amsterdammers só lamentaram algumas lesões que forçaram substituições. Davy Klaassen, Noussair Mazraoui, o próprio Labyad: todos saíram, a princípio, por precaução. No Heracles Almelo, Robin Pröpper comoveu: o zagueiro e capitão deixou o campo chorando, temendo mais uma lesão grave no joelho que já perturbou sua carreira por duas vezes. De certa forma, a onda de lesões chamou mais a atenção até do que a esperada vitória.


Fortuna Sittard 1x3 Feyenoord (domingo, 22 de novembro)

Começo mais desastroso, o Feyenoord não podia temer. Com apenas 30 segundos de jogo, num contra-ataque rápido, um chute em diagonal de Zian Flemming já colocava o Fortuna Sittard na frente. E o que já era ruim ficou pior logo aos 12': numa dividida igual pela bola, Orkun Kökcü pisou o tornozelo de Jorrit Smeets e foi expulso diretamente. Seriam 78 minutos com um a menos. E tendo de aguentar os incômodos do Fortuna - por exemplo, chute de Mats Seuntjens no travessão, aos 15'. Mas o Feyenoord se organizou. Jens Toornstra e Bryan Linssen ditavam o meio-campo, sem contar o destaque de Steven Berghuis. Os defensores iam ajudar o ataque. E numa dessas ajudas, Marcos Senesi fez talvez o mais bonito de tantos gols de fora da área que a rodada teve, aos 34', para empatar o jogo. Podia melhorar? Claro: ainda antes do intervalo, Martin Angha derrubou Linssen na área, e o juiz marcou pênalti. Nem o alerta do VAR revogou a marcação, e Berghuis bateu para o 2 a 1 da virada. A vantagem foi protegida por um Feyenoord mais fechado no segundo tempo, só que o Fortuna Sittard assustou vez por outra: Nick Marsman precisou defender duas em sequência aos 64', e George Cox quase empatou aos 72'. Mas numa rápida escapada, já no fim, a salvação: Berghuis foi derrubado na área por Smeets, e cobrou outro pênalti para o 3 a 1. Invencibilidade do Feyenoord mantida - de uma maneira muito valorosa.


Sparta Rotterdam 6x0 ADO Den Haag (domingo, 22 de novembro)

Quando a partida começou, até que o ADO Den Haag se esforçou, no primeiro jogo sob o comando de Ruud Brood. Mas aos poucos, o Sparta tomou conta. Da posse de bola, das proximidades da área, do jogo. Criou chances, até que o primeiro gol surgisse: aos 44', Dirk Abels cruzou, a bola foi ajeitada, e Lennart Thy conferiu. E aí, no segundo tempo, porteira aberta, a boiada passou diante de um Den Haag fragilizado. Em 15 minutos, a vantagem tinha virado goleada dos mandantes em Roterdã: Sven Mijnans cabeceou para o 2 a 0 aos 53', Abdou Harroui (de volta após ter o coronavírus) completou triangulação para os 3 a 0 aos 56', Thy fez seu segundo gol - e o 4 a 0 - aos 60'. De quebra, após entrar em campo nos minutos finais, Mario Engels fez seus dois primeiros gols após a chegada aos Spartanen, que conseguiram a maior goleada do clube pela Eredivisie desde 1984. E nem mesmo a estreia do novo técnico apagou as vulnerabilidades técnicas dos visitantes de Haia.


Twente 1x1 PSV (domingo, 22 de novembro)

O Twente costumava marcar gols precocemente, pela rapidez de seu ataque? Pois o PSV quis fazer os Tukkers provarem de seu veneno em casa. Já começou com a chance de Cody Gakpo, aos 6', rebatida pelo goleiro Joël Drommel. Seguiu no minuto seguinte, com a grande defesa de Drommel após escanteio. Mas aos 8', foi impossível resistir: Drommel ainda salvou o cabeceio, mas Donyell Malen fez 1 a 0 no rebote. Aos poucos, o Twente até foi tendo espaço para avançar - e até trouxe perigo, com Vaclav Cerny, aos 38'. Mas o PSV pressionava na marcação. Teve um gol anulado de Gakpo, aos 38'. E teve a chance de encaminhar a vitória, aos 44', quando o VAR pediu que o juiz Pol van Boekel revisse um pisão de Jesse Bosch em Noni Madueke na área. Van Boekel reviu, marcou pênalti polêmico... mas Drommel mostrou seu destaque na partida, ao pegar a cobrança de Eran Zahavi. No segundo tempo, após um bom começo (Zahavi e Ibrahim Sangaré quase marcaram), o PSV cansou. E o Twente teve espaço para avançar. Criou uma primeira chance com Cerny, que chutou para Yvon Mvogo espalmar aos 61'. No escanteio da sequência, aos 63', Wout Brama bateu, e Gakpo afastou com a mão: pênalti indiscutível, que Danilo converteu para fazer 1 a 1. Um ponto comemorado pelo Twente - e lamentado pelo PSV, que poderia estar na vice-liderança, mas perdeu até a terceira posição.


RKC Waalwijk 1x1 Heerenveen (domingo, 22 de novembro)

O Heerenveen começou se aguentando na defesa, mas se valeu novamente de um dos integrantes do "duo Veerman" para passar à frente: aos 19', um chutão de Jan Paul van Hecke virou lançamento, que Henk Veerman dominou para fazer 1 a 0. Porém, no fim da etapa inicial, o Fean precisou se aguentar na defesa por obrigação: Sieben Dewaele (substituto do lesionado Oliver Batista Meier no meio) cometeu falta dura num carrinho, e foi expulso. Não que os visitantes tenham renunciado ao ataque na etapa final - Mitchell van Bergen até causou problemas aqui e ali -, mas o RKC partiu em busca do empate. De tanto tentar, acabou conseguindo na reta final: aos 83', após Thierry Lutonda cruzar e Finn Stokkers ajeitar, Vitalie Damascan completou para estufar as redes no 1 a 1.


AZ 1x0 Emmen (domingo, 22 de novembro)

O primeiro gol do AZ já poderia ter saído aos 2', quando Albert Gudmundsson completou para fora. Poderia ter saído no minuto seguinte, quando Gudmundsson novamente perdeu. Saiu só aos 11': após escanteio desviado, o goleiro Felix Wiedwald ainda rebateu, mas Bruno Martins Indi estava na pequena área e completou para o 1 a 0. Estava tão fácil que Jesper Karlsson até perdeu um gol cara a cara com Wiedwald, aos 14'. Acuados, os Emmenaren só tiveram espaço para avançar aos 27', quando Nikolai Laursen driblou e finalizou para Marco Bizot rebater no gol. De resto, seguiu o domínio do AZ. Que, no segundo tempo, poderia ter ficado ainda maior: aos 60', após revisão no vídeo, o juiz expulsou o volante Lucas Bernadou (pisão no tornozelo de Jonas Svensson). De fato, a facilidade era tanta que... o Emmen até assustou depois. Aos 74', Miguel Araujo quase empatou de cabeça - a bola foi tirada em cima da linha; no minuto seguinte, Michael de Leeuw até fez, mas o gol foi anulado por impedimento. Pode ter sido menos do que se esperava, mas... terceira vitória seguida: os Alkmaarders sobem.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Passo a passo

O protesto de Ahmad Mendes Moreira abriu a discussão do racismo no futebol holandês. Discussão já muito viva antes (Soccrates/Getty Images)

É dia 20 de novembro, o dia de reflexão sobre a condição dos negros no Brasil - data justificada pela morte de Zumbi dos Palmares, há exatos 325 anos. Assim como, há três dias, foi dia 17 de novembro de 2020. Quando se completou um ano de ofensas ditas por alguns torcedores do Den Bosch ao atacante Ahmad Mendes Moreira, do Excelsior, durante o jogo entre ambas as equipes, pela 15ª rodada da Eerste Divisie, a segunda divisão do futebol da Holanda (Países Baixos). Indignado com as ofensas, Mendes Moreira deixou o gramado por alguns minutos, durante os quais a partida parou. Um fato que trouxe ao futebol holandês, abertamente, uma discussão que não só já está posta na mesa do futebol mundial, mas que até demorou para entrar dentro de campo nos Países Baixos: a presença de atos racistas, dentro e fora de campo. Presença que não começou em 17 de novembro de 2019.

Os pioneiros: num trevo de cinco folhas

Aliás, ela começa junto com a presença dos primeiros jogadores que migraram do Suriname (antiga colônia holandesa, vale lembrar) para os Países Baixos, nos anos 1950. Uma dupla de irmãos simboliza essa primeira diáspora: Humphrey (1930-2019) e Frank Mijnals. Ambos filhos de um jogador surinamês, Louis Mijnals, começaram a jogar pelo Robinhood, um dos clubes mais tradicionais da capital surinamesa, Paramaribo. Querendo seguir carreira profissional, Humphrey - três anos mais velho do que Frank - deixou o Suriname para correr mundo. Andou até pelo Brasil - nos idos de 1956, Humphrey chegou a atuar pelo América pernambucano. Até parar na Holanda, onde começou a jogar no Elinkwijk (um dos clubes que entrou na fusão originária do atual Utrecht).

Em 1957, também desejoso de ser um jogador profissional, Frank também tomou o caminho da Holanda (que adotara o profissionalismo em seu futebol no ano anterior). Também foi jogar com o irmão no Elinkwijk. A mesma coisa fizeram outros surinameses: Michel Kruin, Erwin Sparendam (1934-2014) e Charley Marbach. A frequência deles no Elinkwijk os tornou parte de um grupo: foram nomeados "o trevo de cinco folhas". Vários dos integrantes do "trevo" encararam atitudes racistas contra eles, em campo. 

Michel Kruin (primeiro sentado, da esquerda para a direita), Humphrey (segundo sentado) e Frank Mijnals (quarto sentado), Erwin Sparendam (quinto sentado) e Charley Marbach (primeiro em pé, da esquerda para a direita): os surinameses do Elinkwijk se insurgiram contra o que sofriam, vez por outra (Ben van Meerendonk/AHF/coleção IISG)

Falando em reportagem ao diário NRC Handelsblad, em julho passado, disponível só para assinantes, Frank Mijnals (ainda vivo, aos 87 anos de idade, morando no Suriname) se recordou de algo vivido na partida contra o MVV Maastricht, pelo Campeonato Holandês, em 1959. Antes mesmo do jogo, o atacante já ouvira do técnico: precisaria estar preparado para as ofensas que viriam. Durante a partida... "Gritaram o jogo inteiro para mim 'macaco, volta para a árvore, negro sujo, imundo'! Eu não me deixei levar". Porém, perto do fim do jogo, o zagueiro André Maas, do MVV, agarrou Mijnals pela face, dando-lhe ainda um soco no estômago. Foi demais: Frank perguntou por que o oponente lhe fizera aquilo. Sem resposta, devolveu: um tapa no rosto de Maas. 61 anos depois, Frank Mijnals se recordou: "Eu não entendo por que ele me bateu. Não tinha acontecido nada entre a gente no jogo".

O que Mijnals soube é que, depois do tapa em André Maas, a briga se generalizou. Um grupo de torcedores do MVV chegou a entrar em campo e o agrediu mais. Nas lembranças em 2020, ele recordou: "Por sorte, havia polícia por lá, senão tinham me matado". Pior ainda foram as consequências posteriores. Frank Mijnals foi julgado, teve de pagar multa de 75 mil florins (moeda holandesa da época) e levou suspensões da federação e do próprio clube. A lamentação de Frank ainda segue neste ano: "Era como se me dissessem 'como um negro pode bater num branco?'".

Se havia lamentação, também havia altivez e devolução contra qualquer ato discriminatório na época. E aí, o exemplo não foi só de Frank Mijnals. Também ao NRC Handelsblad, o atacante Michel Kruin (o outro ainda vivo do "trevo de cinco folhas", também aos 87 anos) se lembrou: em 1958, durante um jogo entre Elinkwijk e Blauw-Wit, Kruin recebeu uma cusparada do meio-campista adversário Anton Goedhart, que lhe disse na sequência para que "voltasse ao Suriname". Bastou: Kruin disse que deixou "Goedhart a nocaute", e ambos foram expulsos do jogo. Tudo com um detalhe: assistindo àquela partida, na tribuna de honra, estava Severinus Emanuels, ministro-presidente do Suriname na época. E Kruin acrescentou algo ao troco: foi a Emanuels. "Eu disse calmamente a ele que, se alguém nos pegasse de novo, nunca mais nenhum negro viria jogar no Elinkwijk".

(Antes de Blauw-Wit x Elinkwijk, em 1958, o presidente do Suriname cumprimentou os jogadores negros migrados de lá. Durante o jogo, Michel Kruin foi ofendido, respondeu, foi expulso... e falou mais algo ao presidente)

Humphrey Mijnals: indo à seleção e respondendo no mesmo tom

O mesmo tom de "bateu, levou" também vinha de Humphrey Mijnals. Aí, quem lembrou ao diário holandês foi sua viúva, Marianne Mijnals. Mantendo recordações do companheiro de vida no corredor do apartamento onde vive, em Utrecht, Marianne exibiu alguns recortes de jornal com entrevistas. Num deles, Humphrey dizia: regularmente era chamado de "negro sujo", ou mesmo de "Zwarte Piet" (que voltará a ser assunto deste texto, daqui a pouco), mas... "se acontece isso, eu devolvo com um 'branco sujo' de volta, e fica tudo certo". Marianne acrescentou: "Ele seguia com isso, nunca foi um grande problema". 

Se ouvia ofensas racistas, Humphrey Mijnals respondia no mesmo tom. E preferia o orgulho de ter sido o primeiro negro a atuar pela seleção holandesa (Arquivo ANP)

Para Mijnals, valia mais outro orgulho: foi ele o primeiro jogador negro a atuar pela seleção holandesa, em 1960, estreando num amistoso contra a Bulgária (Holanda 4 a 2) - e se destacando nele, ao evitar um gol dos búlgaros com uma bicicleta na pequena área. Mijnals fez três jogos pela Laranja: depois, ao protestar contra o método de escolha pelas convocações na época, foi colocado numa "lista de proibidos" da federação. Para ele, tudo bem: já tinha valido, sem traumas. Humphrey deixou claro em entrevista aos jornalistas Fred Huber e Thales Soares, do globoesporte.com, em 2013: "No meu tempo, [a relação entre brancos e negros] era perfeita. Nunca houve problema. Eu amava jogar pela Holanda e eles gostavam de jogar comigo. Mesmo sendo o primeiro, eles me respeitavam. Joguei ao lado de grandes nomes como Faas Wilkes e Abe Lenstra, lendas do futebol holandês". Sete anos depois, neste 2020, a viúva Marianne confirmou: "Ele se orgulhava da carreira. Sempre que conhecia alguém, dizia imediatamente 'eu fui jogador profissional e atuei pela seleção da Holanda'".

De certa forma, a conversa mais aberta sobre racismo inexistia naquela primeira geração. Decorrente até de uma preocupação dos próprios imigrantes surinameses em campo, conforme Michel Kruin reconheceu ao NRC Handelsblad: "Falava-se pouco de discriminação. Eu acho que nos levariam a mal [se falássemos]". Frank Mijnals teve menos papas na língua: "O racismo era bem pior naquela época do que agora". Mesmo se sofressem, a preferência de ambos era responder em campo. Kruin se lembrou: "Todos nós íamos para um canto [antes do jogo] e fazíamos um grito de guerra. Não me lembro precisamente do que gritávamos, mas era algo na linha de 'nós, homens negros, não vamos deixar ninguém vir para cima da gente'". E Mijnals, mais detalhista, confirmou: "Para mim, tinha a ver com a mentalidade neerlandesa. O importante era só o que a comunidade branca pensava da comunidade negra, nunca o que a comunidade negra pensava. Éramos colocados num canto. (...) Mas se eu ouvia algo racista, meu objetivo era dar uma lição aos branquelos com os pés. Porque, naquela época, nada humilhava mais do que um jogador negro que fosse mais rápido do que um branco".

Rijkaard e Gullit começaram a jogar futebol na mesma vizinhança em que moravam. Também começaram a aumentar a voz em relação aos assuntos étnicos no futebol holandês, nos anos 1980 (ANP)

Gullit, Rijkaard, Menzo: as vozes começam a falar

O tempo passou. Na década de 1970, alguns filhos de imigrantes surinameses começaram a se encantar pelo futebol - principalmente nas ruas do Jordaan, bairro operário de Amsterdã. Ali começaram a bater bola dois garotos amigos, chamados Ruud Gullit e Frank Rijkaard. Eles cresceram, viraram jogadores e começaram a se destacar, nos anos 1980 - Gullit no Feyenoord e, depois, em PSV e Milan; Rijkaard, no Ajax. Eram símbolos negros na Holanda, e sabiam disso. Em 1986, já titular da Laranja, Rijkaard falou ao diário Het Parool que "a Holanda se tornara um país multirracial" e que "isso tinha de ser aceito". 

Gullit foi além, no apogeu de sua carreira, já no Milan: ao receber a "Bola de Ouro" da revista France Football, em 1987, o atacante quis se manifestar em seu discurso, pedindo a libertação de Nelson Mandela, então ainda preso na Ilha Robben, na África do Sul. Foi proibido pela revista. Deu seu jeito: distribuiu uma cópia do discurso que faria a cada um dos presentes, e ofereceu o prêmio a Mandela. Ali se criava, indiretamente, uma relação cordial entre o jogador e o homenageado, que tiveram alguns bons momentos até a morte de Mandela, em 2013 - foi justamente quando se publicou algo na Trivela sobre a relação entre "Madiba" e Gullit.

De certa forma, as manifestações sutis mas firmes de Gullit e Rijkaard em relação às causas étnicas já eram um sinal de que o problema era mais visto - e mais alertado. Basta lembrar que Gullit reconheceu à revista Voetbal International, em 1988, tão logo soube que o treinador da seleção da Holanda seria Thijs Libregts: "Será difícil trabalhar com um treinador como Libregts”. Tudo por se lembrar que, em 1984, treinando o Feyenoord, Libregts comentou ao diário De Volkskrant como lidava com a boa fase de Gullit nos campos: "Eu espero que a mentalidade dele [Gullit] continue boa. Negros, sabe como é...". 

Stanley Menzo marcou época no gol do Ajax. E também se manifestou sobre como recebia as (frequentes) ofensas racistas que tinha de escutar (Pics United)

Também contemporâneo dos dois era o goleiro Stanley Menzo, titular do Ajax entre 1984 e 1993, querido da torcida Ajacied por sua postura carismática, bastante comentado pelo estilo de jogar até melhor com os pés do que com as mãos. Na seleção, Menzo nunca conseguiu muito espaço: foi reserva da Laranja, na Copa de 1990 e na Euro 1992. Mas no Ajax, marcou época. E entrevistado pelo mesmo NRC Handelsblad, em 1991, indicou que nem mesmo o caráter mais "multirracial" citado por Frank Rijkaard eliminara as ofensas que ouvia, de vez em quando - assim como indicou que aprendera a se importar menos com aquilo: "Negro de merda, garoto de programa, judeu sujo - é mais ou menos o que eu ouço das arquibancadas. Agora, gritos como 'tem um macaco na árvore' saíram de moda, mas ao invés disso eles fazem aqueles barulhos de 'uh, uh, uh'. Eu me arrepio. Há pouco tempo, atiravam frutas exóticas contra mim. (...) Por outro lado, eu não deixo que isso influencie em minhas atuações. Eu me sinto mais forte: jogo uma boa partida e saio rindo. Se você se deixa levar, eles pegam você mesmo. Sentem isso, fazem gato e sapato de você. 'Gritos não doem', eles dizem. Ora, se doem...".

Mais pedidos por mais respeito

E a geração posterior - Michael Reiziger, Winston Bogarde, Clarence Seedorf, Edgar Davids, Patrick Kluivert - deu um passo à frente nas manifestações ao se sentir menosprezada dentro do ambiente futebolístico. Basta lembrar do Kabel, o grupo que unia aqueles colegas jovens de geração e ascendência. Da diferenciação de salários feita naquela época, dentro do grupo de jogadores do Ajax. De como tudo isso explodiu dentro da campanha da seleção masculina da Holanda na Euro 1996 - melhor descrita neste texto do Espreme a Laranja (republicado pela Trivela), em 2016. Embora nomes como Kluivert tenham dito que o teor racista foi o de menos naquela discussão, ficou claro que aquela geração tinha personalidade e queria ser respeitada. Algo descrito pelo jornalista Simon Kuper: "Nenhum dos negros quis sugerir que [Guus] Hiddink [técnico da Holanda na Euro 1996], [Ronald] De Boer ou Blind foi deliberadamente racista. Eles só pensam que o técnico foi insensível. Acham que ele os vê como negros talentosos, de uma cultura semelhante à do rap, não como líderes. Claramente Hiddink subestimou o pedido deles por respeito".

Esta foto, com jogadores brancos e negros em mesas separadas, causou grandes problemas à delegação da Holanda na Euro 1996: o tema étnico podia não ser o mais importante da discussão, mas os jovens negros que surgiam na Laranja tinham personalidade e queriam respeito (Guus Dubbelman).

E o pedido por respeito foi além nesta geração que hoje é preponderante na seleção masculina da Holanda. Denzel Dumfries, Virgil van Dijk, Georginio Wijnaldum, Memphis Depay... a lista é grande. E todos eles têm procurado exercer postura cada vez mais crítica contra atos racistas, chamando atenção neste 2020. Começou a partir do principal tema para discussões socioétnicas nos Países Baixos, já há algum tempo: a questão do "Zwarte Piet" (lembram?). Personagem negro retratado em enfeites de Natal, antes visto apenas como "o ajudante de Sinterklaas" - Sinterklaas é o Papai Noel para os holandeses -, agora retratar o "Zwarte Piet" é visto como retratar o negro apenas num papel subalterno. Pior ainda: com muitos brancos se fantasiando de Zwarte Piet nas festividades de Natal, o ato dá margem para a prática do "blackface" (brancos interpretando negros), cada vez mais criticada em tempos atuais. 

Cada país tem seu tema local na discussão universal sobre racismo e antirracismo. O tema da Holanda é o Zwarte Piet (Getty Images)

Outros acham que tais queixas são desnecessárias, que é apenas um personagem tradicional de Natal. Seja como for, o Zwarte Piet foi o "tema local" dado às manifestações holandesas referentes à violência contra negros, despertada pela morte de George Floyd, em junho passado. Duas presenças nelas foram Dumfries (nos atos em Roterdã) e Memphis Depay (em Amsterdã). Comentarista e colunista conhecido no futebol holandês, Johan Derksen criticou os atos na mesa-redonda Veronica Inside, da emissora de tevê Veronica: "Respeito os que protestam, mas tudo que vejo são malucos querendo espaço na tevê". E ao ver um negro caracterizado como o Zwarte Piet, com um cartaz tendo "Zwarte Piet Lives Matter" ("A vida do Zwarte Piet importa"), Derksen fez o gracejo: "Quem me garante que aquele não é Akwasi?", em referência a um rapper e ativista holandês. 

Memphis Depay foi presença de primeira hora, quando as manifestações do "Vidas Negras Importam" chegaram à Holanda (Perfil pessoal de Memphis Depay no Twitter)

Bastou: dias depois, uma nota assinada por Van Dijk, capitão da seleção masculina, e Sari van Veenendaal, capitã da seleção feminina, informava que os jogadores de ambas as seleções boicotariam o Veronica Inside. A nota terminava assim: "É humor irresponsável? É o que se fala nas discussões de futebol nos botecos? É só uma opinião? Não! Já foi longe demais. Não é a primeira nem a segunda vez. É seguido. Basta". Lateral da seleção feminina, Merel van Dongen acrescentou: "A liberdade de expressão é boa e muito importante, mas uma opinião ou uma piadinha podem doer e ferir".

O melhor protesto é dentro ou fora de campo?

Antes mesmo disso, já houvera os atos contra Ahmad Mendes Moreira. Falando à FOX Sports holandesa após o fim daquele Den Bosch x Excelsior - no qual até chegou a marcar gol -, o atacante lamentou: "Ouvi falarem em 'negro disso', 'negro daquilo', 'Zwarte Piet'... tudo bem, podem xingar, mas é muita coincidência que só eu tenha sido o alvo. Isso me causa muita dor". Em meio a datas FIFA, Georginio Wijnaldum se destacava na seleção da Holanda. E se manifestou abertamente sobre o que ocorrera na segunda divisão - e até sobre mais coisas: indagado sobre o caso do Zwarte Piet, o meio-campista opinou que, por ele, o personagem "precisa mudar". Naqueles dias, a seleção se mostrou tocada: os jogadores convocados posaram para uma foto, usada numa campanha feita nas rodadas seguintes de primeira e segunda divisão - os times pararam durante um minuto após o início das partidas, como que indicando que não se mexeriam caso fossem ouvidas ofensas racistas. A comemoração unida de Wijnaldum e Frenkie de Jong, comemorando um gol nos 5 a 0 contra a Estônia - apontando para os braços, como que indicando que a cor da pele de ambos não importava - foi mais um sinal simpático.

A comemoração conjunta de Wijnaldum e Frenkie de Jong contra a Estônia, nas eliminatórias da Euro, dias após as ofensas racistas contra Mendes Moreira, foram elogiadas. Mas não resolveram (Rico Brouwer/Getty Images)

Mas tais medidas publicamente antirracistas não atraíram a crença de um dos negros de maior destaque no Campeonato Holandês, na atualidade: André Onana, goleiro do Ajax. Entrevistado pela revista Voetbal International justamente após as ofensas a Mendes Moreira, o arqueiro camaronês foi mais firme na descrença em relação a mudanças de postura: "Eu não sairia do campo em caso de ofensas racistas. Aprendi muitas coisas aqui na Holanda. Sair do campo só atrairia atenção extra. Não quero isso. Há coisas na vida que não influenciam, e essa é uma delas, em minha opinião. Não posso mudar o comportamento de um grupo no estádio. Para ser honesto, quando jogamos [Ajax] fora, sempre gritam algo racista para mim. Ouço essas coisas. Há muito tempo. Para você [jornalista] é anormal, por isso o choque. Mas é comum para mim. Em quase todo jogo fora de casa há frases racistas. Não posso mudar isso. Por isso, tenho de ser mais forte do que o racismo, lidar com ele, ignorar. Vocês querem que pare, eu também, mas não acontecerá. Nem mesmo se alguém sair do campo duas, três vezes. O futebol não é sobre racismo, por isso nem precisamos falar nisso. O futebol une, homens e culturas. É sobre isso que temos de falar. Claro que desejo a interrupção, mas quer minha opinião honesta? O racismo nunca acaba. Sempre haverá algumas pessoas falando coisas". 

Dos anos 1950 até agora, muitas opiniões sobre os atos mudam. Se sair do campo foi a atitude tomada por Ahmad Mendes Moreira, pelo menos por alguns minutos, o veterano Frank Mijnals se mostrou contrário ao método de protesto, falando ao NRC Handelsblad: "Eu acho que aquele rapaz precisa se preparar contra esse tipo de coisa. Ele não construiu nenhuma barreira. Acima de tudo, você deve dizer 'eu sou negro, eu me orgulho de ser negro, e eu me concentro 100 por cento no futebol'". Já Michel Kruin refletiu sobre as diferenças entre a época em que jogou no Elinkwijk e agora, em 2020: "Eu gostaria de ter falado, e falado mais forte. Mas penso se eu conseguiria sozinho... você era achincalhado só de entrar em campo. Tínhamos menos visão do que os jogadores de hoje têm. Realmente nos levariam a mal, nós seríamos quebrados".

A "Comissão Mijnals" foi criada pela federação holandesa para, supostamente, trazer mais representatividade às suas medidas. E já se levantou por não ser ouvida (KNVB Media)

Enfim, com o alarido em torno do que Ahmad Mendes Moreira ouvira, a federação holandesa se mexeu. Com a suposta intenção de ter mais representatividade em suas escolhas, criou em julho de 2020 a "Comissão Mijnals": homenageando exatamente Humphrey Mijnals, o conselho contava com nomes como o apresentador de televisão Humberto Tan; a ex-jogadora (e diretora do futebol feminino no Ajax) Daphne Koster; o prefeito de Arnhem, Ahmed Marcouch; e o próprio Ruud Gullit. Porém, já numa primeira escolha importante após o advento da "Comissão Mijnals", houve fortes discordâncias entre ela e a federação. Após a contratação de Frank de Boer para treinar a seleção masculina, Humberto Tan criticou a opção: "Parece que todo o processo de escolha foi um teatro. A KNVB quis fazer a comissão, porque ela mesma indicou que desejava ser mais diversa e inclusiva, queria lutar contra o racismo e a discriminação. Mas nada aconteceu de acordo com nossos conselhos". Pelo menos por enquanto, a "Comissão Mijnals" ainda continua.

Diferenças de visão, diferenças de abordagem... entre palavras e ações, a opinião dos negros sobre o que sofrem no futebol dentro da Holanda (Países Baixos) anda para a profundidade. Passo a passo, dos anos 1950 até hoje.

(No começo desta semana, veio a resolução de investigação sobre ato de discriminação de um torcedor contra o atacante Issa Kallon, em MVV Maastricht x Cambuur, pela primeira rodada da segunda divisão holandesa. De acordo com nota do MVV, a federação decidiu que não poderia punir o clube de Maastricht, "já que o clube não poderia evitar tal ato")