domingo, 24 de maio de 2020

Há 25 anos, os "filhos dos deuses" eternizavam o Ajax campeão europeu

Muitos garotos promissores. Alguns veteranos a lhes guiar. E o Ajax conquistou a Europa pela última vez (Getty Images)

Quando a década de 1990 começou, o Ajax vivia ponto baixo em sua história: estava em séria crise financeira, via o PSV vindo de um tetracampeonato holandês, e ainda sofrera uma punição pesada: a eliminação sumária da Copa da UEFA na temporada 1989/90, após a torcida atirar uma bomba contra o goleiro Franz Wohlfahrt, do Austria Viena, no jogo de volta da primeira fase. Aos poucos, porém, surgiam alguns bons talentos: os irmãos Frank e Ronald de Boer, os irmãos Rob e Richard Witschge, Bryan Roy e Dennis Bergkamp.

Em 1991, o técnico Leo Beenhakker deixou o clube rumo ao Real Madrid. E tanto pela vontade quanto pela falta de dinheiro para contratar um técnico de ponta, decidiu-se apostar no auxiliar de Beenhakker até ali: um ex-atacante, de nome Louis van Gaal. Mesclando aquela nova geração a nomes mais experientes - o goleiro Stanley Menzo, os zagueiros Sonny Silooy e Danny Blind, os volantes Wim Jonk e Aron Winter, o atacante Stefan Pettersson - , Van Gaal já conseguiu um time suficientemente bom para chegar ao título da Copa da UEFA 1991/92, em decisão equilibrada contra o Torino-ITA. Mas ainda era um momento de transição.

Depois de 1992, alguns saíram: Menzo, os Witschge, Winter, Jonk, Roy, Bergkamp. Mas outras promessas vieram: Van der Sar, Seedorf, Davids, Litmanen, Overmars, Kluivert, Kanu... todos se somando a quem ficou, como Frank de Boer. Bem treinado e preparado por Van Gaal, esse time levou o Ajax ao topo da Europa pela última vez, há exatamente 25 anos. Pois é: em 24 de maio de 1995, o título da Liga dos Campeões era o capítulo principal de uma das equipes mais marcantes dos anos 1990. Tanto que aquela geração ficou eternizada com um apelido: os "Godenzonen", os filhos dos deuses que elevaram o Ajax ao lugar mais alto do futebol europeu.

O Ajax pronto para a temporada 1993/94: o título holandês comprovou que aqueles jovens estavam prontos (Arquivo ANP)

Formando um time: garotos liderados por um veterano


O título da Copa da UEFA em 1991/92 já deixara claro que o Ajax estava renascido, que havia uma base sólida para Van Gaal formar um time. Porém, ainda era cedo para falar num time definido. Isso aconteceria a partir da temporada seguinte, com vários nomes que foram chegando. Já em 1991, começou a ter chances no time principal do Ajax um jovem nascido no Suriname: Edgar Davids, 18 anos então. Em 1992, entre uma temporada e outra, um meio-campista chegou do MyPa, clube da Finlândia, para ser, talvez, o mais querido (e mais técnico) jogador de ataque do Ajax nos anos seguintes - Jari Litmanen, 21 anos. Também em 1992, chegou do Willem II um ponta rápido, ideal para acelerar o ataque Ajacied após a saída de Bryan Roy: Marc Overmars, 19 anos então. E no fim daquele mesmo ano, Van Gaal tornou titular pela primeira vez outro meio-campista destinado a marcar época em sua geração: Clarence Seedorf, outro egresso do Suriname, parceiro de Davids dentro e fora de campo, 16 anos de idade.

Exatamente na metade da temporada, um nome que surgira na base do Ajax mas fora cedido ao Twente foi recontratado, já que vinha bem no ataque dos Tukkers: Ronald de Boer, 23 anos em 1993, irmão de Frank (já então, titular absoluto - fosse na lateral esquerda ou na zaga). E os Amsterdammers já conseguiram mais um título na temporada 1992/93, em meio àquela reformulação decisiva que Van Gaal comandava: a Copa da Holanda. Era bom. Mas ainda era pouco. Ainda mais porque Van Gaal já dava mostras da postura dura e exigente que teria como treinador. Diante de um time tão jovem, lembrava o professor de escola infantil que um dia fora, cobrando duramente os pupilos, guiando-os quase como meninos. Além do mais, naqueles anos, o técnico do Ajax começava sua carreira mostrando outra faceta comum e polêmica de seu trabalho: a falta de apego a sentimentalismos no comando de um time. Se tivesse de trocar um jogador em busca da melhor formação, trocava, sem a menor pena. E uma grande prova disso veio na troca de goleiros, durante a temporada 1992/93. 

O reserva da posição no Ajax era Edwin van der Sar, 23 anos em 1993, que já se queixara a Van Gaal da falta de chances - chegou até a pedir um empréstimo para o ADO Den Haag, que andava interessado. A resposta de Van Gaal: “Você precisa ter paciência. Eu acho que você tem possibilidades no Ajax”. Trocando em miúdos: o técnico já pensava em tirar do gol Stanley Menzo, titular havia nove anos, cria da base. Era só questão de oportunidade para a "crueldade". Ela veio em 3 de março de 1993: no jogo de ida das quartas de final da Copa da UEFA, o Ajax perdeu para o Auxerre-FRA (4 a 2), com duas falhas de Menzo. Bastou: no jogo de volta, Van der Sar entrava no time titular para não mais sair. E o reserva Menzo deixou o Ajax em 1994, rumo ao rival PSV.

Van der Sar, Frank de Boer, Davids, Seedorf, Litmanen, Overmars, Ronald de Boer... o Ajax rejuvenescido era bastante promissor. Mas aquele jovem grupo precisava de mais veteranos para indicarem os atalhos (além de Danny Blind, 32 anos em 1993). E Van Gaal sabia disso. Resolveu o problema com um dos melhores e mais apropriados nomes para isso: antes da temporada 1993/94, chegava Frank Rijkaard, 31 anos. Seis anos após sair do Ajax, Rijkaard voltava a De Meer (era o estádio do Ajax, então) com ampla experiência, graças à vitoriosa passagem pelo Milan, que fizera dele um dos melhores jogadores do mundo em sua posição - algo entre o volante, o zagueiro e o líbero. De quebra, mais dois novatos vinham para o Ajax, diretamente da Nigéria para uma carreira de sucesso: os atacantes Finidi George, 22 anos, e Nwankwo Kanu, 17 anos. Vinha ainda o atacante Peter van Vossen, após uma temporada no Anderlecht.

O Ajax precisava de mais um veterano para guiar os caminhos daquele time que nascia. Rijkaard era o nome perfeito, voltando após seis anos. (Cor Mulder/ANP)


Com tantas promessas de talento somadas a Danny Blind (um estandarte do clube, titular havia sete anos, capitão do time) e a Frank Rijkaard, o Ajax já estava mais consolidado na temporada 1993/94. E comprovou isso voltando a vencer o Campeonato Holandês, após quatro anos, superando uma disputa equilibrada com o arquirrival Feyenoord - foram 54 pontos dos Ajacieden, contra 51 do Stadionclub. De quebra, o artilheiro daquela Eredivisie ainda jogava em Amsterdã: Litmanen, 26 gols. E boa parte daquele Ajax já teria importante experiência com a Copa de 1994. Pela Holanda, nela estiveram Rijkaard, Frank de Boer, Ronald de Boer, Van Vossen e Overmars (Van der Sar e Blind foram convocados mas não saíram do banco); pela Nigéria, Finidi também esteve nos Estados Unidos.

Todos eles voltaram ainda mais fortalecidos. Antes da temporada 1994/95 começar, mais dois nomes (ambos de ascendência surinamesa) vieram para o time já entrosado que Van Gaal comandava. Um deles retornou para ser titular imediato, após empréstimos a Volendam e Groningen para ganhar experiência e espaço: o lateral direito Michael Reiziger, 21 anos em 1994. Do Sparta Rotterdam, veio um nome útil quando necessário - e muitas vezes foi: o zagueiro Winston Bogarde, 24 anos.

O Ajax estava pronto. Ninguém sabia, mas estava pronto para impressionar a Europa.

Frank de Boer segura Savicevic: se impondo contra o Milan já na estreia, o Ajax mostrou na fase de grupos que podia sonhar na Champions 1994/95 (Paul Vreeker/ANP)

Começando com tudo


Time pronto, era necessário mostrar serviço em 1994/95, tanto na Eredivisie quanto na Liga dos Campeões. Com 16 clubes na Champions League (quatro grupos de quatro), o Ajax estava no grupo D, com AEK Atenas, Casino Salzburg-AUT - o atual Red Bull Salzburg - e um adversário temível: o Milan, finalista da Champions por dois anos seguidos, o campeão europeu da temporada anterior. Sem problemas. Já na primeira rodada da fase de grupos da Liga dos Campeões, o Ajax já deu seu cartão de visitas: em 14 de setembro de 1994, no Estádio Olímpico de Amsterdã, fez um categórico 2 a 0 no Milan. Quando aquele título europeu completou 20 anos, em 2015, Litmanen comentou ao site oficial do Ajax: “Quem ganhava daquele Milan, ganharia de qualquer outro time”.

Foi daqueles placares que ficam baratos. Superar já na estreia o time campeão europeu deu um tremendo ânimo à equipe. Que, de tão jovem, parecia sem consciência de que representava a tradição gigante do Ajax: após aquela vitória em Amsterdã, vários jogadores da equipe simplesmente esperaram o Milan nos vestiários, para trocarem camisas e pedirem autógrafos a nomes como Franco Baresi, Paolo Maldini, Ruud Gullit, Dejan Savicevic... Louis van Gaal se irritou com aquilo - e muito tempo depois, ainda se irritava. Na biografia de Van der Sar, lançada em 2011, o treinador lembrou: "Incompreensível. Você pode pedir autógrafos quando tem 13, 14 anos, mas não quando joga na equipe principal do Ajax. Eu balancei a cabeça, e quando eles viram minha cara, notaram que eu achei aquilo ridículo".


Na segunda rodada da fase de grupos da Liga dos Campeões, o Ajax encararia um AEK com nomes que haviam estado pela Grécia na Copa de 1994, como o goleiro Elias Atmasidis e o zagueiro Stelios Manolas. E em 28 de setembro daquele ano, em Atenas, com a torcida lotando o estádio, o macedônio Toni Savevski abriu o placar logo aos 30' para o time grego. Mas Litmanen provou o tamanho de sua importância naquele time: empatou, três minutos depois. E no segundo tempo, aos 63', um novato que aparecia naquela temporada, surgido na base do Ajax, fez seu primeiro gol naquela competição: Patrick Kluivert, outro nome de ascendência surinamesa, 18 anos. Mais uma vitória para o Ajax: 2 a 1.

Por incrível que pareça, o Casino Salzburg é que ofereceu maiores dificuldades àquele Ajax, na fase de grupos. Na terceira rodada, em Viena, 0 a 0 em 19 de outubro de 1994; na quarta rodada, no Estádio Olímpico de Amsterdã, 1 a 1 em 2 de novembro - sendo que o Casino Salzburg saiu na frente, e Litmanen só empatou a cinco minutos do fim. Mas qualquer dúvida sobre as capacidades do Ajax naquela Champions League se dissipou nas duas últimas rodadas do grupo D. Pegando o Milan na quinta rodada - em outra cidade italiana, Trieste (a UEFA tirara dois pontos dos Rossoneri e barrara San Siro para a Champions, após objeto atirado contra o goleiro Otto Konrad, do Casino Salzburg) -, o Ajax fez outro 2 a 0 nos milanistas, em 23 de novembro de 1994E na rodada final da fase de grupos, o destaque dos 2 a 0 no AEK em Amsterdã (7 de dezembro de 1994) foi um reserva que acabou perdendo espaço ao longo daquela temporada: o atacante Tarik Oulida, mais um vindo da base, autor dos dois gols.

O Ajax terminava aquele grupo D na liderança. Já era um grande desempenho. Mas 1995 seria ainda melhor.

Mata-mata tenso: brilho, só na semifinal


1994 acabou, 1995 começou, e aquele time do Ajax já começava a chamar atenção fora das fronteiras da Europa. No Campeonato Holandês, caminhava para o bicampeonato de forma avassaladora: uma campanha que não tinha (e nem teria) derrotas - na conquista daquela Eredivisie, seriam 27 vitórias e sete empates. No estilo de jogo, sob Van Gaal, o Ajax dava um passo à frente do Futebol Total visto na equipe tricampeã europeia dos anos 1970: pressionava a saída de bola do adversário quando precisasse, mas também era conservador e tocava a bola pacientemente, se necessário. Até por isso, muitos dos jogadores do Ajax anterior desgostavam do novo Ajax - a começar por Johan Cruyff, desafeto assumido e militante de Van Gaal. Era possível dizer: o clube de Amsterdã brilhava intensamente, estava ditando moda. Mas, ora bolas, como o Ajax chegara a tal domínio?

Principalmente, pela qualidade da geração preparada nos anos anteriores. Embora já procurasse isso desde os tempos do Futebol Total, nunca a Holanda vira um goleiro tão seguro com as mãos e os pés quanto Van der Sar. Na zaga, Frank de Boer exibia calma e habilidade pouco vista em zagueiros holandeses, enquanto Reiziger cumpria seu papel na direita. De quebra, Danny Blind e Rijkaard: davam o toque de experiência necessário àquele time, com muita qualidade na saída de bola (ainda mais em relação a Rijkaard, se alternando entre o meio e a zaga, com Blind cobrindo suas saídas). O meio-campo? Davids e Seedorf eram completos na posição, dos melhores de sua geração, defendendo como cães de guarda e iniciando a jogada com maestria. Litmanen - um dos mais idolatrados daquele time pela torcida do Ajax - mostrava classe e rapidez na armação das jogadas, e ainda chegava à frente para finalizar bem. No ataque, Overmars era o azougue pela esquerda, e Finidi George impunha respeito pelo porte físico na direita. Somente o meio da área era motivo para inconstâncias: poderia ser Ronald de Boer, Kluivert ou Kanu. Tudo sob o comando férreo de Van Gaal.

Mas havia um mata-mata de Liga dos Campeões para ser jogado. E mesmo que o Ajax já fosse favorito, todo cuidado era pouco contra o Hajduk Split, da Croácia, o adversário das quartas de final. A partir dali, os Amsterdammers mostraram resultados curiosamente coincidentes para superarem a tensão de um mata-mata: eficiência máxima e risco mínimo fora de casa, para tentarem decidir a vaga no Estádio Olímpico de Amsterdã. Na cidade croata de Split, na ida das quartas, um 0 a 0 para o gasto, em 1º de março de 1995, atacando mais nos contra-ataques - neles, contando com mais um reserva útil: o atacante Peter van Vossen, que ajudava a manter a bola no campo de ataque ao vir do banco. Duas semanas depois, com a casa lotada, o Ajax jogou como melhor sabia: pressionando incansavelmente a defesa do Hajduk Split, até o 3 a 0 que lhe tornou semifinalista daquela Liga dos Campeões: Kanu abriu o placar, e Frank de Boer marcou mais dois.

Tudo bem, o Hajduk Split era de fato inferior. Mas o Ajax já não poderia ser considerado favorito destacado contra o adversário das semifinais, igual em qualidade técnica e em tradição: o Bayern de Munique. Certo, o poderoso alemão também estava em reformulação, com um time cheio de jovens: Samuel Kuffour, Christian Ziege, Mehmet Scholl, Alexander Zickler... Além do mais, o treinador dos bávaros, Giovanni Trappatoni, era bem mais experiente do que Van Gaal. A princípio, era um duelo a ser definido nos detalhes. Foi o que se viu no jogo de ida, no Estádio Olímpico de Munique, em 5 de abril de 1995: outro 0 a 0 equilibradíssimo, com poucas chances. Imaginava-se um jogo de volta igualmente tenso no Estádio Olímpico de Amsterdã.

E então, naquele 19 de abril de 1995, o Ajax deu a segunda mostra de que, mesmo tão jovem, estava pronto para o título. É unânime: nos 5 a 2 sobre o Bayern que levaram os Godenzonen à final, o time jogou melhor do que faria na decisão da Champions, até. Mesmo ofensivos em casa, como sempre, os Ajacieden tiveram uma sorte melhor naquela partida: Litmanen voltou a estar inspirado. O finlandês, que andava devendo no mata-mata, criou jogadas, chegou ao ataque, abriu o placar aos 11'. O polonês Marcel Witeczek ainda empatou para o Bayern aos 36', mas ainda antes do intervalo os anfitriões dispararam para a primeira final do Ajax no principal torneio europeu após 22 anos: Finidi George fez 2 a 1 aos 41', e Litmanen marcou o terceiro aos 45'. De quebra, tão logo o segundo tempo começou, Ronald de Boer marcou o quarto. Mehmet Scholl ainda diminuiu aos 75', mas no penúltimo minuto, Marc Overmars premiou a ofensividade vista com o último gol. Fecho perfeito para uma atuação tão gigante que fez Van der Sar se recordar com saudades, em 2015: “Algo como aquilo é para se levar por toda a vida”.

De fato. Um time que sabia ser ofensivo como o dos anos 1970. Mas também sabia diminuir o ritmo quando o jogo exigia.


A final: temor no primeiro tempo, a eternidade no segundo


Na decisão de 24 de maio de 1995, no estádio Ernst Happel, em Viena, caberia ao Ajax enfrentar um velho conhecido da fase de grupos: o Milan, na terceira final seguida de Liga dos Campeões, após superar o Paris Saint-Germain na semifinal. Se servia de consolo, um símbolo máximo do ataque milanista estava fora da final: Dejan Savicevic, autor dos dois gols na volta contra o PSG nas semifinais, com lesão na perna esquerda. Mas ainda sobravam Roberto Donadoni, Zvonimir Boban, Daniele Massaro - e mais atrás, Paolo Maldini, Franco Baresi e Marcel Desailly. Ruud Gullit já era passado, vendido à Sampdoria. No Ajax, o principal temor era Litmanen: o finlandês estava gripado. E o principal nome para a decisão era Rijkaard: já tendo anunciado o fim da carreira quando a temporada acabasse, o zagueiro/volante teria à frente no penúltimo jogo de sua carreira justamente o clube em que viveu os melhores momentos dela.

O Milan era considerado levemente favorito, pela maior experiência. Até mesmo por um outro cidadão que tinha histórico nos dois finalistas: Marco van Basten, já rumando para o fim da carreira, com um tornozelo que não o deixava jogar havia dois anos. Ouvido antes da final, no pré-jogo da emissora holandesa NOS, Van Basten até torcia: "Claro que acharei bacana se o Ajax vencer. Mas torcerei pelo Milan. Ainda sou jogador do clube". Mas o Ajax foi para aquela final, com Litmanen, uma média de idade de 24,1 anos e o uniforme reserva, azul escuro - os uniformes titulares poderiam ter sido usados, mas o Milan preferiu usar a roupa branca, similar à usada na final de 1994.

O juiz romeno Ion Craciunescu apitou o começo. Exibida na televisão brasileira pela TV Globo e pela TVA Esportes (futura ESPN Brasil), a decisão demorou para ter lances de emoção. O Ajax até chegou perto aos 19': Finidi cobrou escanteio, e Ronald de Boer cabeceou por cima do gol de Sebastiano Rossi. Mas o Milan foi saindo para o ataque: Baresi e Desailly se alternavam à perfeição no papel de líbero, Christian Panucci dava muito trabalho pela direita, e Marco Simone (substituto de Savicevic) coroou a melhor chance de gol da etapa inicial: aos 45', Albertini inverteu o jogo, Donadoni cruzou da direita, e Simone bateu de voleio. Van der Sar salvou, espalmando para escanteio. Pouco antes, um lance ficou marcado na memória da torcida do Ajax: aos 43', Desailly tirou a bola da área do Milan dividindo a bola com o pé, contra a cabeça de Litmanen, que escapou por pouco. Van Gaal ficou irado no banco: queria o pé alto marcado. E mostrou, ele mesmo, como havia sido a dividida de Litmanen, dando um golpe no ar. De terno e tudo. Era o "karatetrap", o golpe de caratê, que virou um momento engraçado daquela final.

Van Gaal só queria reclamar do pé alto de Desailly numa dividida. Protagonizou um momento marcante daquela final (EMPICS/Sports Photo Agency)

Golpe de caratê de Van Gaal à parte, o Ajax tinha dificuldades na final. Precisava melhorar. E no intervalo em Viena, o treinador reconheceu: seu comentário foi calmo demais para o que aquele time jovem precisava. Foi hora de Rijkaard, o capitão sem braçadeira (Blind a tinha), erguer a voz: falou grosso com a garotada, criticou a atuação tímida e truncada do primeiro tempo. E definiu, antes da volta a campo: "Eu não vou me perdoar se vocês não jogarem o que sempre jogamos nessa temporada. Eu não vou me perdoar se ficarmos sem o título. Vamos voltar e vamos jogar". Ali o Ajax começou a ganhar.

O Ajax "continuou" ganhando no segundo tempo. Van Gaal fez alterações que melhoraram o time. Seedorf deu lugar a Kanu, logo aos 53' - e se irritou ao sair -, mas o nigeriano que entrou ajudou os Ajacieden a manterem a bola no ataque. E desgastado pela gripe, Litmanen saiu para um certo Patrick Kluivert entrar, aos 70'. O Ajax trocava mais passes, Ronald de Boer crescera ao recuar para o meio, Rijkaard era decisivo nos avanços.

E aí, aos 80', veio o golpe certo, na hora certa. Overmars pegou bola perdida na esquerda, devolveu a Davids, este deu a Rijkaard, e na meia-lua, o veterano ajeitou para Kluivert. Rijkaard ainda se preparou para tabelar na área. Não precisou: antes que Baresi tentasse o desarme, Kluivert bateu. Chute fraco, mas que passou por Rossi. Entrou lentamente no canto esquerdo. E colocou o jovem time do Ajax na eternidade - Kluivert, chorando na comemoração, parecia antever isso. No documentário "1995, we are the champions", o autor do gol do título reconheceu: "Eu mal conseguia respirar".


Leve pelo gol feito, o Ajax até teve chance para mais um gol: já nos acréscimos, Blind avançou em contragolpe, completou cruzamento de Kanu, mas Rossi evitou, com grande defesa. Tudo bem: segundos depois, Ion Craciunescu apitou o fim da decisão. Rijkaard correu gritando e foi abraçado: tinha conseguido outro título, coroando o fim de sua carreira (ainda jogaria contra o Twente, na última rodada da Eredivisie, dali a quatro dias). Os jovens pulavam, festejavam, se emocionavam: era o Ajax, campeão europeu pela quarta vez.

Blind ergueu o troféu. O reserva Bogarde também o levantou, com a bandeira do Suriname que tanto influenciara aquela geração. O campeão Van Gaal achou tempo para dar passos de balé em Viena, comemorando o título - e para ainda criticar, na entrevista coletiva: "Viemos e vencemos, mas não da maneira habitual". Os jogadores só queriam comemorar - na festa da vitória no hotel, Van der Sar até se arriscou a tocar bateria.

Vieram mais momentos inesquecíveis. A recepção em Amsterdã, no aeroporto Schiphol, com a mãe de Kluivert recebendo-o na escada do avião, às lágrimas. 80 mil pessoas na praça Museumplein, gritando “Milan, Milan, who the f*** is Milan?”. Van Gaal repetindo o "golpe de caratê" da decisão na hora de subir ao palco para a festa.



Quis o destino que a Lei Bosman virasse jurisprudência na Corte europeia meses após aquela final. E o time de garotos guiado por Van Gaal foi se desfazendo: já no meio de 1995, Seedorf transferiu-se para a Sampdoria. Tudo bem: os "Godenzonen" já estavam eternizados na memória. Como seguem há 20 anos. E seguirão por muito tempo mais.

(Ah, sim: em novembro se fala sobre o Ajax x Grêmio do Mundial Interclubes...)

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Grandes laranjas: os De Boer

Para deixar claro qual De Boer é qual: o da esquerda é Ronald, o da direita é Frank (ANP)

Irmãos jogando juntos na seleção da Holanda nem era nada tão inédito assim: basta lembrar os Koeman, Ronald e Erwin, nos anos 1980/90 - Erwin dois anos mais velho do que Ronald. Irmãos gêmeos? Também havia um caso na Laranja: René e Willy van de Kerkhof, nos anos 1970/80, ambos juntos nos vice-campeonatos mundiais de 1974 e 1978, ambos juntos no PSV por dez anos - mas Willy terminou a carreira em Eindhoven, enquanto René correu mundo na reta final da trajetória.

Entretanto, nos anos 1990 (e nos 2000 também), Ronald e Frank de Boer levaram a relação fraterna a outro patamar. Começaram a jogar no mesmo clube amador. Despontaram (quase) juntos no Ajax. Jogaram juntos na Laranja. Também vestiram camisas semelhantes em Barcelona, Rangers, no futebol do Catar. Tanta semelhança os fez virar até estátuas de cera na filial do célebre Madame Tusseau em Amsterdã. E marcou quem acompanhasse futebol naquela década.

Por isso, nesta sexta, 15 de maio, por mais que ambos estejam em rumos diferentes agora, é inevitável que ambos dividam as felicitações pelos 50 anos de aniversário que fazem. Uma boa chance para descrevermos as carreiras deles num mesmo texto. Mostrando que, embora com expressões faciais quase iguais, ambos tiveram muitas diferenças na carreira. A começar pela posição: Frank mais ligado à defesa, Ronald mais habituado ao ataque... enfim, o que fazia dos gêmeos (ainda mais) iguais e o que os diferenciava?

O começo: ainda cabeludos e praticamente indistinguíveis, no Ajax de 1988 (ANP)

Iguais: o mesmo surgimento

Nascidos em Hoorn, em 15 de maio de 1970 (Ronald, alguns minutos mais velho do que Frank), os irmãos De Boer começaram a jogar futebol no mesmo clube amador: o VV Zouaven, de Grootebroek, cidade vizinha a Hoorn. Lá, por volta de 1984, ambos foram vistos por um tal de Johan Cruyff, já então consultor técnico do Ajax, um ano antes de virar treinador Ajacied. Foram aprovados. E tomaram o caminho do clube com o qual seguem ligados, até hoje, entre idas e vindas.

Frank foi o primeiro De Boer a ganhar espaço na seleção: já era titular na Euro 1992 (Getty Images)


Diferentes: posição e desenvolvimento

No Ajax, tanto Ronald quanto Frank de Boer começaram a despontar no fim da década de 1980, na mesma geração que revelaria Dennis Bergkamp, Bryan Roy e outros dois irmãos, Rob e Richard Witschge. Porém, aí começaram as diferenças. Ronald estreou mais cedo no time principal do Ajax - já fez gol no 3 a 1 contra o Zwolle, em 22 de novembro de 1987, pelo Campeonato Holandês. De quebra, dois dias depois, o novato jogou 22 minutos na partida de ida da Supercopa da Europa, contra o Porto. Já Frank demorou quase um ano para aparecer na equipe de cima: só em 21 de setembro de 1988, também contra o Zwolle, mas com derrota Ajacied (4 a 1).

A princípio, Ronald (já definido em campo como atacante) também teve mais frequência do que Frank nos primeiros anos de Ajax. Jogou quase metade das temporadas da Eredivisie em 1988/89 e 1989/90, começando a fazer alguns gols - 5 naquela, 7 nesta temporada. De quebra, em 1989/90, o Ajax enfim quebrou a sequência de títulos do PSV na Eredivisie, sendo campeão. Porém, Ronald foi menos produtivo em 1990/91 - 14 jogos, 1 gol. E deixou o Ajax ao fim daquela temporada, indo para o Twente.

Uma figurinha traz o registro: Ronald de Boer no Twente, entre 1991 e 1992 (Old School Panini(


Se demorou mais para despontar do que o irmão, Frank de Boer teve um surgimento mais fulgurante. Mostrando segurança e habilidade na lateral esquerda (sua primeira posição), tomou a posição para não largar mais já na temporada 1988/89. Em 1990, o gêmeo mais novo já era apontado como um dos mais promissores nomes do futebol dos Países Baixos naquela época. Tanto que aos 20 anos, estreou na seleção, em 26 de setembro daquele ano, num amistoso contra a Itália.

Auxiliando bem Ronald Koeman e Frank Rijkaard, os titulares indiscutíveis da zaga holandesa de então, Frank de Boer mostrava capacidade cada vez maior para se alternar entre a lateral esquerda e o miolo da defesa. No Ajax, também fazia isso - assim foi já nome certo na campanha do título da Copa da UEFA, em 1991/92. Foi por causa dessa capacidade técnica que Frank foi o primeiro dos irmãos numa grande competição de seleções: na Euro 1992, foi titular da Holanda contra a Alemanha (fase de grupos) e contra a Dinamarca (semifinal). Mesmo com a eliminação, ficou claro naquela Euro: o veterano Adri van Tiggelen já tinha um substituto bem definido na lateral esquerda, e o nome dele era Franciscus de Boer, que se tornaria titular absoluto da Holanda por muito tempo.

Glória dos irmãos De Boer: no Ajax, com o título europeu em 1995... (Pics United)


Iguais: juntos na glória e na polêmica

Se Frank já era indiscutível no Ajax e na seleção, Ronald ainda precisava mostrar algo da capacidade inicial. Mostrou a partir da temporada 1992/93: titular no Twente, o atacante fez 11 gols em 16 jogos, na primeira metade do Campeonato Holandês. Bastou para o Ajax trazê-lo de volta já no princípio de 1993, para o returno. Naquele momento, o De Boer do ataque começou a despontar como o irmão da defesa fizera: Ronald de Boer virou titular absoluto do Ajax na reta final da Eredivisie (foram mais cinco gols pelos Amsterdammers naquela temporada). De quebra, em 24 de março de 1993, Ronald estreou pela seleção - já deixando o dele, de pênalti, nos 6 a 0 sobre San Marino, pelas Eliminatórias da Copa de 1994.

Em 1994, a parceria fraterna começou a viver o seu auge. Frank atrás, Ronald na frente, ambos eram titulares do Ajax campeão holandês - com Ronald eleito o melhor jogador daquela temporada 1993/94. Foram convocados para a Copa de 1994: Frank foi titular em quatro jogos (só ficou na reserva contra o Brasil, nas quartas de final), enquanto Ronald foi ligeiramente inferior - começou como titular na fase de grupos, mas decepcionou e foi tirado no intervalo da derrota para a Bélgica, ainda no grupo F, só voltando a campo exatamente na eliminação para os futuros (tetra)campeões, entrando no meio do segundo tempo.

A boa fase da dupla de irmãos seguiu: ambos foram e são nomes frequentes nas lembranças do que o Ajax fez entre 1995 e 1996: tricampeão holandês - invicto na temporada 1994/95 -, campeão europeu em 1995 (e vice-campeão em 1996), campeão mundial em 1995, campeão da Supercopa da Europa em 1995... na seleção, a presença dos De Boer também era certa. Mesmo se um não pudesse (Frank ficou de fora da Euro 1996, por uma fratura), o outro garantia o sobrenome (Ronald foi titular na mesma Euro - e em clubes, novamente eleito o melhor da Eredivisie em 1995/96).

Copa de 1998: o grande momento da parceria (Matthew Ashton/EMPICS/Getty Images)

E na Copa de 1998, talvez, cada um viveu seu grande momento. Formando dupla de zaga elogiável com Jaap Stam, Frank consolidou ali sua transição para a zaga: já era o capitão da Holanda, já era um dos grandes defensores do futebol mundial naquele tempo. E Ronald, naquele Mundial, também foi bem: titular em seis dos sete jogos daquela campanha, ainda marcou dois gols (na goleada sobre a Coreia do Sul e no empate com o México, ambos na fase de grupos). A única mancha foi a cobrança perdida por Ronald na disputa da semifinal contra o Brasil, representando ali mais uma eliminação da Laranja na reta final. Mas ambos voltaram da França amados pela torcida - ainda mais a do Ajax, já que seguiam no clube mesmo após o começo das saídas (Clarence Seedorf, Edgar Davids, Marc Overmars, Louis van Gaal...).

Só que esse amor entre os Ajacieden e os De Boer foi perigosamente trincado na reta final de 1998. Pouco depois da Copa, ambos receberam uma proposta generosa do Barcelona, que lhes pagaria salário cinco vezes maior do que o ganho no Ajax. Ficaram propensos a sair - ainda mais pelo trato  verbal que se tinha com o clube em que começaram: se um dos gêmeos recebesse proposta lucrativa, poderia deixar o Ajax, desde que o outro ficasse. Porém, a transferência era impedida por uma renovação: tanto Frank quanto Ronald haviam prolongado o compromisso com o Ajax por seis temporadas. Pior: começando na Bolsa de Valores, o Ajax prometia a quem comprasse as ações que os irmãos não sairiam.

Briga judicial à vista: querendo ir para o Barcelona, ambos entraram na Justiça contra o Ajax, pedindo a anulação do contrato. A Justiça deu ganho de causa ao clube de Amsterdã. Mas àquela altura, a relação Frank/Ronald-Ajax estava quase arruinada: na primeira metade da temporada 1998/99, ambos se negavam constantemente a entrar em campo, criticavam o técnico Morten Olsen, queriam porque queriam jogar juntos na Catalunha e não na Holanda. Sem ambiente no clube e com a torcida, só restou ao Ajax liberá-los para os Blaugranas, no começo de 1999. Só o tempo curaria a mágoa.

A chegada da dupla ao Barcelona só foi possível magoando o Ajax - e na Catalunha, só Frank se deu bem (ANP)

Diferentes: um virou ícone, o outro nem tanto

No Camp Nou, Frank e Ronald chegavam para simbolizarem o "BarçAjax", nome para a vinculação (até excessiva) que se configurou pelo tanto de jogadores holandeses treinados por Louis van Gaal. Mas a partir de 1999, os caminhos deles em campo voltaram a ficar diferentes. Ronald decepcionou demais no Barcelona: sem muito espaço nem técnica para fazer frente aos outros atacantes (Patrick Kluivert, Luis Enrique, Rivaldo), Ronald só fez 33 jogos e um gol entre 1999 e 2000. Até fez parte da campanha do título espanhol em 1998/99, mas de modo periférico. 

Já no fim da temporada 1999/2000, com a saída de Van Gaal, considerado um holandês dispensável no "BarçAjax", Ronald de Boer tomou o caminho do Rangers. O clube escocês era outro com uma "comunidade holandesa forte" (Bert Konterman, Fernando Ricksen, Giovanni van Bronckhorst, treinados por Dick Advocaat), mas Ronald só teve destaque real no título escocês dos Gers em 2002/03 - 16 gols em 33 jogos. Na seleção, o atacante perdeu espaço naquele começo de década: foi à Euro 2000, mas só jogou as três partidas da fase de grupos (ainda fez um gol, nos 3 a 0 sobre a Dinamarca). Com o surgimento de nomes como Ruud van Nistelrooy, Ronald perdeu cada vez mais espaço... até a última partida pela seleção neerlandesa, em 2003.

Já Frank de Boer seguiu muito bem no Barcelona. Com a habilidade na zaga, se tornou um dos holandeses realmente importantes no clube catalão, ao lado de Kluivert, Phillip Cocu e Boudewijn Zenden. Tornou-se titular absoluto dos Culés em dois tempos, e foi nome certo na campanha do título espanhol em 1998/99. Na seleção, foi novamente capitão e zagueiro principal na Euro 2000 em casa - que, no entanto, lhe rendeu uma lembrança dolorosa até hoje: Frank perdeu dois pênaltis na traumática semifinal contra a Itália (um no tempo normal, outro na disputa de cobranças). Para piorar, em 2001, pego no exame antidoping por uso de nandrolona, o zagueiro chegou a ser suspenso - mesmo liberado depois, viu de fora a Holanda fracassar nas Eliminatórias da Copa de 2002, bem como a crise gigante que o Barcelona vivia.

Ainda assim, Frank de Boer deixou o Barcelona por cima: na última temporada, 2002/03, foi titular absoluto (35 jogos) mesmo em meio ao caos que o clube vivia. Já se tornara sinônimo de seleção: em 15 de novembro de 2000 (amistoso contra a Espanha - vitória holandesa, 2 a 1), o zagueiro se tornou o nome com mais partidas pela seleção - 85, superando os 84 jogos de Aron Winter na Laranja. Já no Galatasaray, Frank era um dos veteranos a guiar a geração que começava com Rafael van der Vaart, Arjen Robben e Wesley Sneijder. Em março de 2003, foi o primeiro holandês a chegar aos 100 jogos pela seleção (no 1 a 1 com a República Tcheca, pelas Eliminatórias da Euro 2004). 

No começo de 2004, ainda houve tempo para Frank se unir de novo ao irmão Ronald: em janeiro, se transferiu para o Rangers. Jogou pouco (17 partidas), mas o suficiente para manter ritmo de jogo e ganhar a convocação para a Euro daquele ano. Naquele torneio em Portugal, Frank terminou sua trajetória pela Holanda - de modo acidentado: jogara contra a Letônia, na fase de grupos, e começara como titular contra a Suécia, nas quartas de final... mas numa dividida com Fredrik Ljungberg, ainda no primeiro tempo, quebrou a tíbia. E não jogou mais na Euro. Nem pela seleção: seu ciclo estava encerrado, após 112 jogos - o recordista da época, até Edwin van der Sar lhe tomar a marca em 2006.

O capítulo final em campo: no Al-Rayyan, entre 2004 e 2005. Frank parou, Ronald ainda seguiu (AFP/Getty Images)

Com alguma coisa (eternamente) em comum

Terminada a Euro 2004, Frank de Boer partiu para a reta final da carreira. Ronald, claro, foi junto: ambos rumaram para o Al-Rayyan, do Catar. Porém, no país do Oriente Médio as carreiras se separaram. Frank só jogou mais dois anos, encerrando a carreira em 2006 no Al-Rayyan; Ronald se foi para o Al-Shamal em 2005 e seguiu por mais um tempo, mas uma hérnia o tirou dos campos por boa parte de 2007, e mesmo recuperado e podendo voltar a jogar em 2008, o atacante preferiu terminar a trajetória por ali.

Com ambos de volta à Holanda, as trajetórias tiveram ritmos diferentes. Ronald se estabilizou pelo país natal, trabalhando como auxiliar do time de juniores do Ajax - e se notabilizando no papel de comentarista de futebol na televisão, como queria (atualmente, está na FOX Sports holandesa). Já Frank preferiu seguir sob pressão: fez o curso para se tornar técnico, já ganhou "estágio" na comissão técnica da Holanda na Copa de 2010 (foi auxiliar de Bert van Marwijk junto ao contemporâneo Phillip Cocu).
Foto de ambos em 2017: Ronald é quem está sério, mas Frank teve mais problemas no futebol de lá para cá (Pics United)

Naquele mesmo 2010, em dezembro, com o Ajax em crise à procura de um rumo dentro e fora do campo, Frank foi escolhido para treinar o clube - primeiramente, como interino, após a demissão de Martin Jol. Deu muito certo: quatro títulos holandeses sob seu comando, sendo peça decisiva para ajudar o Ajax a voltar a dar as cartas no futebol da Holanda.

Seis anos depois, o desgaste natural - e a traumática perda do título holandês na última rodada... - fizeram Frank de Boer sair. Para jogar fora boa parte do status de técnico promissor que tinha então:  sem muito hábito ou jogo de cintura fora do "estilo Ajax", uma passagem terrível de três meses pela Internazionale e outra pior ainda pelo Crystal Palace (só dez semanas!) fizeram o nome do ex-zagueiro cair em desgraça como técnico. Pelo menos, no fim de 2018, o Atlanta United deu a Frank uma chance de começar a reconstruir a carreira em termos mais adequados, na MLS - chance aproveitada, com o título da US Open Cup em 2019.

Ronald mais calmo, Frank ainda na ribalta. Ronald usando óculos, Frank já com menos cabelo. Hoje em dia, ambos são diferentes, está claro. Mas se até mesmo dividiram uma conta de Twitter - por muito tempo respondiam no @FrankRonald1970 (agora cada um tem seu perfil)...  os gêmeos sempre terão alguma coisa em comum.

Franciscus "Frank" de Boer
Data de nascimento: 15 de maio de 1970, em Hoorn
Clubes: Ajax (1988 a 1999), Barcelona-ESP (1999 a 2003), Galatasaray-TUR (2003), Rangers-ESC (2004) e Al Rayyan-CAT (2004 a 2006)
Seleção: 112 jogos e 13 gols, entre 1990 e 2004

Ronaldus "Ronald" de Boer
Data de nascimento: 15 de maio de 1970, em Hoorn
Clubes: Ajax (1987 a 1991 e 1993 a 1999), Twente (1991 e 1992), Barcelona-ESP (1999 e 2000), Rangers-ESC (2000 a 2004), Al Rayyan-CAT (2004 e 2005) e Al Shamal-CAT (2005 a 2008)
Seleção: 67 jogos e 13 gols, entre 1993 e 2003

quarta-feira, 6 de maio de 2020

O primeiro

Kindvall e Israël, os autores dos gols da final, erguem a taça da Copa dos Campeões em frente à torcida, na chegada a Roterdã: o Feyenoord foi o primeiro (Hans Grootenhuijs)

O clima de festa já estava montado desde o começo do ano: livros, entrevistas, celebrações. A pandemia arruinou um pouco disso. Entretanto, nem mesmo ela impede que, neste 6 de maio de 2020, o coração de cada torcedor do Feyenoord se encha de alegria com as lembranças. Porque está lá, na história: há 50 anos, o Stadionclub era o primeiro clube holandês campeão de um torneio europeu - e logo o mais importante, a então Copa (hoje Liga) dos Campeões, na temporada 1969/70.

Um time já preparado

De certa forma, é possível dizer que a base do time de Roterdã que partiria para o título europeu já estava bem fortalecida e entrosada, pelas temporadas anteriores. No gol, após onze anos como titular absoluto, Eddy Pieters Graafland (1934-2020) cedeu a titularidade a Eddy Treijtel, que chegou a De Kuip justamente naquela temporada 1969/70. No miolo de zaga, uma das duplas de defensores mais conhecidas da história Feyenoorder: o capitão Rinus Israël, também conhecido como “Ijzeren Rinus” (Rinus de ferro), por sua disposição meio exagerada nas jogadas e divididas, e Theo Laseroms (1940-1991). Tanto Israël como Laseroms eram firmes. Até além da conta, diga-se de passagem.

Já estavam no Feijenoord (sim, a grafia da época era essa - o "y" veio para facilitar a pronúncia fora da Holanda) também o meio-campista Wim Jansen (titular), surgido nas categorias de base do clube. Também fardava a camiseta alvirrubra dividida ao lateral-direito Piet Romeijn. E no ataque, dois importantes atletas: o sueco Ove Kindvall, um bom finalizador, e o já veterano Coen "Coentje" Moulijn (1937-2011), considerado um dos melhores pontas da história da Holanda. E desde a temporada 1968/69, o time ficara definitivamente preparado com o atacante Henk Wery e, acima de todos, um dos grandes símbolos da conquista europeia, um dos grandes ídolos da história do Feyenoord: o meio-campista Willem van Hanegem, vindo do Xerxes, um clube desativado após a fusão que resultaria no Utrecht.

O elenco do Feyenoord campeão europeu em 1970. Em pé: Guus Haak, Manus Vrauwdeunt, Henk Wery, Eddy Treytel, Theo Laseroms, Eddy Pieters Graafland, Theo van Duivenbode, Ruud Geels e Willem van Hanegem. Agachados: Cor Veldhoen, Piet Romeijn, Franz Hasil, Ernst Happel (técnico), Rinus Israël, Coen Moulijn, Guus Brox (diretor), Wim Jansen, Ove Kindvall e Mever (massagista) (Arquivo Kicker)

Já foi um time forte a ponto de suplantar os concorrentes Ajax e Twente para levar o título holandês em 1968/69 - com direito ao artilheiro da temporada: Kindvall, com 30 gols, ao lado de Dick van Dijk, do Twente. Não só isso: o Feyenoord abiscoitou a dupla coroa do futebol nos Países Baixos, ganhando também a Copa da Holanda (na final, após 1 a 1 em 120 minutos com o PSV, 2 a 0 numa partida extra). E mais forte ainda ficaria com algumas mudanças para 1969/70: além da supracitada chegada de Eddy Treytel para o gol, vieram o lateral esquerdo Theo van Duivenbode, justamente do arquirrival Ajax (após a goleada sofrida pelos Ajacieden na final da Copa dos Campeões 1969/70, Van Duivenbode caiu em desgraça para o técnico Rinus Michels, e foi dispensado), e o meio-campista austríaco Franz Hasil.

Só que a alteração mais importante - talvez, a mais decisiva - seria no banco do Feyenoord. E seria em relação ao técnico: Ben Peeters deixou o clube, e para seu lugar, chegou o austríaco Ernst Happel (1925-1992). Despontado ao comandar o ADO Den Haag campeão da Copa da Holanda em 1967/68, Happel traria seu comando autoritário e seu estilo tático firme, sem firulas, querendo a vitória como fosse. Uma das frases típicas do austríaco aos jogadores virou mantra da torcida do Feyenoord - e do próprio jeito do clube jogar: "Kein keloel, maar fussball" (em livre tradução, "sem mimimi, joguem bola"). Enquanto o adversário Ajax já aprontava as bases do Futebol Total e prezava a técnica, no Feyenoord o pedido seria por raça, por esforço, por busca incansável da vitória.

Foi com este foco que o Feyenoord começou a temporada 1969/70 E logo no jogo de ida da primeira fase da Copa dos Campeões, conseguiu uma façanha histórica: enfrentando o KR, da Islândia, a equipe de Happel aplicou 12 a 2 em De Kuip. No dia 17 de setembro de 1969, o Stadionclub proporcionara simplesmente a maior goleada da história do torneio – recorde que resiste até hoje, já na era de Liga dos Campeões. A superioridade foi tamanha que um jornal disse que o Feyenoord ganhou "um jogo que não foi jogo". Engraçado notar que o destaque na goleada foi para um atacante periférico do time: Ruud Geels, autor de quatro dos doze gols. Só para constar, no jogo de volta, em 30 de setembro, na capital da Islândia, mais uma goleada do Feyenoord. Mais discreta: "só" 4 a 0.


A vitória que embalou

Todavia, na segunda fase da Copa dos Campeões, o desafio era o mais difícil possível: o adversário do Feyenoord seria o Milan, justamente o campeão europeu naquele momento. E os milanistas possuíam um time poderoso e experiente: Fabio Cudicini no gol, Karl-Heinz Schnellinger na zaga, Giovanni Trappatoni como volante, Gianni Rivera como principal destaque. E a primeira partida, em 12 de novembro de 1969, no Giuseppe Meazza, a vantagem dos Rossoneri foi até curta: o atacante francês Néstor Combin fez 1 a 0, e o placar ficou nisso. A imprensa holandesa até celebrou.

E celebrou porque o meio-campo do time holandês estava em estado de graça. Jansen, Van Hanegem e Hasil já estavam entrosados à perfeição. E seria justamente deste setor do time Feyenoorder que sairia a vitória e a classificação no De Kuip, no jogo de volta, em 26 de novembro de 1969: Jansen marcaria, aos 6', e já no fim, aos 82', Van Hanegem faria o gol do 2 a 0 e da classificação. O Feyenoord conseguira: eliminara o campeão europeu de 1968/69. Autor de um livro sobre aquela campanha, o jornalista Robert van Brandwijk é definitivo: "Talvez tenha sido a maior vitória da história do Feyenoord". Não era para menos.


De Kuip garante a vaga na final

1969 acabou, 1970 começou, e a Copa dos Campeões começou a virar prioridade do Feyenoord. Ainda mais após um revés duro na Eredivisie: no Klassieker contra o Ajax, uma vantagem de 3 a 1 em casa virou um empate em 3 a 3, por duas falhas de Treytel. Dali os Amsterdammers partiram para o título holandês naquela temporada. Mas no torneio continental, a caminhada do Feyenoord seguiu firme. Nas quartas de final, a barreira seria o Vorwärts Berlin, da Alemanha Oriental. No jogo de ida, em Berlim Oriental, em 4 de março de 1970, Jürgen Piepenburg fez o gol da vitória do Vorwärts: 1 a 0. Mas se conseguira se valer da raça, da eficiência e do calor da torcida para eliminar um Milan mais forte, o Feyenoord podia fazer o mesmo contra o campeão alemão oriental. Fez: em 18 de março, em De Kuip, no jogo de volta, Kindvall voltou a ser garantia de bola nas redes, fazendo 1 a 0 logo no começo do segundo tempo. Henk Wery fez 2 a 0. E o Feyenoord era semifinalista.

O Feyenoord chegava à reta final da temporada mostrando equilíbrio entre a dureza que a torcida pedia, com Israël e Laseroms na zaga, e a capacidade técnica de Jansen, Coen Moulijn e Van Hanegem, coroada pelos gols de Kindvall. Na semifinal, teria de superar o Legia Varsóvia, campeão polonês. Na ida, em 1º de abril de 1970, o Stadionclub segurou um time que possuía o bom Kazimierz Deyna no ataque, saindo de Varsóvia com o 0 a 0 no bolso. Na volta em De Kuip, em 15 de abril, o de sempre: 2 a 0, com Van Hanegem e Hasil encaminhando a vitória ainda no primeiro tempo. Foi fácil a ponto do Feyenoord poder até fazer mais gols. Mas bastava a garantia da classificação para a decisão da Copa dos Campeões. Pela segunda temporada seguida, um clube holandês chegava à final. Mas não era o Ajax. Era o Feyenoord. 

Final dura e inesquecível

6 de maio de 1970. Neste dia, no mesmo San Siro em que a equipe jogara contra o Milan, o Feyenoord decidiria o principal torneio europeu contra um adversário duro. E mais experiente: o Celtic, já com o título europeu de 1967/68 na sala de troféus, ainda contando com boa parte dos "Leões de Lisboa" que haviam vencido a Internazionale na decisão de três anos antes: o zagueiro Billy McNeill, o volante Tommy Gemmell, o meio-campo Jimmy Johnstone, o atacante Willie Wallace, o técnico Jock Stein.

Era parada dura, que precisava de nomes experientes. Por isso, Ernst Happel decidiu: mudaria o goleiro. E pediu a Eddy Pieters Graafland, 36 anos, que substituísse Treytel no gol, naquela final. Já prestes a parar de jogar, sem muita motivação, Eddy PG pensou bem, e decidiu aceitar o pedido do técnico. De resto, o time já conhecido: Piet Romeijn, Rinus Israël, Theo Laseroms, Theo van Duivenbode, Wim Jansen, Franz Hasil, Willem van Hanegem, Henk Wery, Ove Kindvall e Coen Moulijn. A torcida fez a parte dela: foram 25 mil adeptos de Het Legioen ("A Legião", como é conhecida a torcida do Feyenoord) viajando a Milão, de ônibus, trem ou avião.

No jogo, a primeira chance foi do Feyenoord, com Hasil, chutando de longe para a defesa de Evan Williams. Porém, aos 29 minutos do primeiro tempo, os Bhoys abriram o placar: após falta na meia-lua, uma cobrança ensaiada terminou no chute de Tommy Gemmell, no canto esquerdo de Pieters Graafland, que teve a visão tapada.

Mas não duraria mais do que dois minutos a vantagem escocesa. Aos 31, pela direita, o árbitro italiano Concetto Lo Bello apitou falta. Hasil cobrou, e a bola foi disputada de cabeça, até que Israël completou, também testando, sobre Williams. Era o gol de empate.

O capitão Israël (esquerda) e o veterano Pieters Graafland erguem a taça da Copa dos Campeões (Arquivo ANP)
Sem mais gols, a partida foi para a prorrogação. E nela continuaria empatada, até os 12 minutos da segunda parte do tempo extra. No meio-campo, Lo Bello apitou falta. A bola foi lançada para a área. Billy McNeill, capitão do Celtic, tocou com a mão. Porém, o árbitro deu a lei da vantagem, o artilheiro Kindvall dominou pela esquerda e tocou na saída de Willians.

Era o gol do título. O gol do primeiro clube holandês campeão europeu de clubes. O gol que premiou a decisão de Pieters Graafland, na última partida de sua carreira. O gol que premiou o modo firme de Ernst Happel treinar aquela equipe. O gol que colocou Ove Kindvall, Wim Jansen, Willem van Hanegem, Rinus Israël... todos eles, na galeria de heróis eternos do Feyenoord.

Depois, viria o Ajax para consolidar o domínio dos Países Baixos no futebol europeu de clubes, naquele começo de década de 1970. Mas o Feyenoord foi o primeiro. Isso ninguém lhe tirará.

sábado, 2 de maio de 2020

Os dez anos do Twente campeão holandês: foi aquela vez

Há 10 anos, o Twente vivia o auge de sua reestruturação: a torcida celebrava o primeiro título holandês dos Tukkers (Koen van Weel/ANP)

"Eenmaal zullen we de kampioen zijn/FC Twente, FC Twente/Eenmaal zullen we de kampioen zijn/En dan kan niemand in de wereld iets aan doen" ("Alguma vez seremos campeões/FC Twente, FC Twente/Alguma vez seremos campeões/E ninguém poderá evitar isso"). Lançada pelo ex-jogador Eddy Achterberg em 1974 - ele mesmo, Achterberg, um símbolo do Twente vice-campeão da Copa da UEFA em 1974/75 -, essa canção virou uma das mais queridas da torcida do clube de Enschede. Até que em 2 de maio de 2010, enfim, a torcida dos Tukkers conseguiu concretizar o sonho cantado: há dez anos, o clube vermelho conquistava um título histórico na Eredivisie. Certo, o tempo revelou que aquele sonho estava sob bases muito frágeis e um tanto quanto ilusórias, e tudo foi punido com sanções financeiras - e o rebaixamento, em 2017/18. Mas, há dez anos, a alegria do Twente encantou o Campeonato Holandês.

E a alegria já andava próxima, havia pelo menos duas temporadas. Desde que assumira o comando do clube, em 2003, em meio a grave crise financeira, o empresário Joop Munsterman tentava estruturar o Twente para que o clube ostentasse certa grandeza, como fizera no meio dos anos 1970. Na temporada 2006/07, o primeiro sinal: ir à fase de grupos da Copa da UEFA. No fim da temporada 2007/08, o projeto de reestruturação deu seu primeiro grande fruto: disputando os play-offs por vaga na Liga dos Campeões, o time ganhou o lugar na terceira fase preliminar, eliminando o Ajax na decisão (2 a 1 em Enschede, 0 a 0 seguro em plena Amsterdam Arena). Caiu na Champions da temporada 2008/09, eliminado previsivelmente pelo Arsenal, mas o sinal do ressurgimento estava firmado. E ficou ainda mais forte com outro grande resultado: o vice-campeonato holandês, ao final da mesma temporada 2008/09, garantindo outra vez vaga na terceira fase preliminar da Liga dos Campeões 2009/10. Tudo isso, sem contar a (re)inauguração do antigo estádio Arke, ainda em 2008, renomeado como De Grolsch Veste em razão da cervejaria que comprara os direitos do nome.

Nisso tudo, jogadores se faziam presentes temporada após temporada, configurando uma base sólida em campo. No gol, o veterano Sander Boschker já se transformara num estandarte do Twente: o arqueiro de 39 anos surgira no clube, nele jogava desde 1989 (com uma pausa na temporada 2003/04, quando foi reserva no Ajax), era o mais querido da torcida. No miolo de zaga, o brasileiro Douglas Franco - vindo do Joinville catarinense, para se acostumar na Holanda a tal ponto de se naturalizar e até ser cogitado como opção para a seleção de lá, em 2012 (nunca foi chamado) - e Peter Wisgerhof também estavam plenamente entrosados. No meio de campo, a prioridade ia para a dupla Theo Janssen-Wout Brama: aquele, um trator a carregar a bola para o ataque, enquanto Brama era outro ídolo dos adeptos, nascido e criado futebolisticamente em Enschede. Finalmente, no ataque, mais um nome caminhando para a história: o suíço Blaise Nkufo, o símbolo daquela evolução do Twente, vindo em 2003 para se tornar o maior goleador da história do clube (114 gols em 223 jogos, entre 2003 e 2010).

Nkufo teria mais nomes para dividir os gols, mas era o grande ídolo do Twente, ao lado de Boschker (ANP)

E o projeto do Twente já ganhava atenção e respaldo a ponto de merecer vindas notáveis e de atrair reforços. No primeiro quesito, estava Steve McClaren: em baixa abissal após ser o técnico da Inglaterra que ficou fora da Euro 2008, o treinador britânico precisava reabilitar seu nome, e teve em Enschede o cenário para isso, desde 2008.  No segundo, estavam nomes baratos, que chegavam para fortalecer a espinha dorsal Boschker-Douglas-Wisgerhof-Brama-Janssen-Nkufo. Nomes como um jovem atacante vindo do De Graafschap, a fazer 20 anos em 2010, chamado Luuk de Jong. Como outro jovem atacante, o eslovaco Miroslav Stoch, emprestado pelo Chelsea. Como o costarriquenho Bryan Ruiz, que já tinha bom desempenho no Gent, da Bélgica, de onde veio. Como o experiente Kenneth Perez, dispensado pelo PSV e contratado imediatamente. Como o jovem zagueiro Slobodan Rajkovic, mais um cedido pelo Chelsea. Como o lateral direito Dwight Tiendalli, que deixou a grave crise vivida pelo Feyenoord naqueles tempos para ser mais um reforço do Twente para a temporada 2009/10.  E como outros nomes periféricos, tendo como exemplo o atacante sul-africano Bernard Parker e o volante iraquiano Nashat Akram.

O Twente caiu na terceira fase preliminar da Liga dos Campeões, para o Sporting-POR. Ficou na fase de grupos da Liga Europa. Mas bastou o Campeonato Holandês começar para que o Twente se mostrasse um time incrivelmente regular. Fosse uma máquina, e "azeitado" seria o melhor adjetivo a descrevê-la: a dupla Nkufo-Ruiz se entrosava às maravilhas no ataque (com o auxílio de Stoch, muito rápido), Brama e Janssen seguravam as pontas no meio, Kenneth Perez armava bem as jogadas, Douglas e Wisgerhof formavam a melhor dupla de zaga da Eredivisie... e os bons resultados se avolumavam. A tal ponto que os Tukkers passaram o primeiro turno invicto naquela temporada: 15 vitórias e dois empates, ambos contra PSV (1 a 1, na 2ª rodada) e Feyenoord (também 1 a 1, na 5ª rodada). De quebra, Nkufo se tornou o maior goleador da história do Twente na 3ª rodada, fazendo o gol da vitória sobre o ADO Den Haag, fora de casa - 1 a 0. Na 10ª rodada, o então campeão - e fragilizado - AZ foi superado: 3 a 2, com gol de Nkufo no último minuto. Na 13ª rodada, o Ajax sucumbiu em De Grolsch Veste: 1 a 0.

A rigor, o Twente só tomou o primeiro solavanco no returno. Na 18ª rodada, empatar por 0 a 0 com o Groningen deixou o PSV na liderança; na 21ª rodada, o Ajax fez 3 a 0 em Amsterdã, a primeira derrota dos Tukkers na temporada da Eredivisie. As vitórias passaram a ser mais dramáticas - em 13 de fevereiro de 2010, na 22ª rodada, o time fez 2 a 1 em cima do Vitesse com dois gols nos últimos dez minutos. A grande arrancada começou a partir da 27ª rodada: em 12 de março de 2010, o time de Enschede reassumiu a liderança ao fazer 3 a 1 no ADO Den Haag, enquanto o PSV sucumbiu ao Ajax (4 a 1 em Amsterdã) e caiu para o segundo lugar. Na rodada seguinte, o duelo direto entre líder e vice-líder, em Eindhoven. E o Twente saiu com um empate valioso: 1 a 1. Tirava um concorrente do páreo: ali o PSV perdia também a vice-liderança para o Ajax, que perseguiria o Twente até o fim, carregado pela esplendorosa temporada que Luis Suárez fazia.

Mas o clube vermelho de Enschede já atingira o sonhado "embalo". Boschker, Douglas, Wisgerhof, Theo Janssen, Brama, Nkufo, Bryan Ruiz, Stoch, os reservas Luuk de Jong e Parker... eles não fraquejariam. E o Twente seguiu vencendo. Houve um susto, é verdade: na 32ª rodada, houve a segunda derrota da temporada (1 a 0 para o AZ), o Ajax venceu (2 a 0 no Willem II), e a vantagem caiu a apenas um ponto. Qualquer tropeço nas duas rodadas finais seria o fim do sonho. Mas o Twente não deixou. Em casa, na penúltima rodada, fez 2 a 0 no Feyenoord. E finalmente, na rodada derradeira do Holandês, naquele 2 de maio de 2010, Ruiz e Stoch tiveram a rapidez premiada - no caso de Ruiz, o faro de gol: o costarriquenho marcou pela 24ª vez no campeonato, o eslovaco fez outro, e o Twente fez 2 a 0 no NAC Breda, fora de casa.

A torcida podia celebrar: daquela vez, o Twente era campeão. Mais do que isso: jogadores como Boschker, Nkufo e Parker iriam à Copa do Mundo disputada pouco depois, aumentando o orgulho. Está certo que a derrocada começou a partir dali: ambicionando manter o clube brigando na parte de cima, Joop Munsterman tomou decisões que dilapidaram os cofres e diminuíram a respeitabilidade do clube, dali a alguns anos. A queda doeu. E agora, num cenário de pandemia, o Twente volta a duvidar de seu futuro. 

Mas, para consolo dos torcedores, sempre haverá a lembrança do 2 de maio de 2010. Alguma vez, o Twente seria campeão. Foi naquela.