quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Grandes laranjas: Van Hanegem

Quando fez 70 anos, em 2014, Van Hanegem viu o Feyenoord dar seu nome a uma tribuna do estádio, além de organizar uma festa. Cinco anos depois, segue vendo homenagens (ANP)
Certo, Johan Cruyff sempre foi e sempre será o símbolo maior da seleção holandesa que impressionou o mundo na Copa de 1974. Entretanto, também é verdade que Cruyff viveu uma relação de amor e ódio com seu país natal, enquanto viveu: cada passo dele era visto sob uma lupa, cada opinião sua era aplaudida por afetos e achincalhada por desafetos. E JC fazia questão de deixar claro: não estava ali para agradar a Holanda só por ser holandês. Tanto que fez de Barcelona sua morada definitiva.

Caso diferente de outro destaque da Laranja de 1974. Um meio-campista extremamente técnico (naquela equipe, talvez só Cruyff o superasse). Que tinha seus períodos de temperamento forte, é verdade. Mas que sempre pareceu mais acessível do que o grande símbolo daquela seleção. Sempre teve um vínculo mais forte com a Holanda. E que nesta quarta-feira, pode testemunhar as homenagens pelo seu aniversário de 75 anos: Willem van Hanegem.

Van Hanegem começou no Velox. E nem com a carreira desenvolvida esqueceria o trauma familiar (Wikipedia)
Um começo vitimado pela guerra

Antes mesmo de entrar no futebol, Van Hanegem já tinha algo a ligá-lo fortemente à Holanda. Aliás, antes mesmo de ser adulto. Filho de Lo van Hanegem, pescador, e de Anna van Grol, uma holandesa nascida em Nova Iorque (a família migrara para lá antes de retornar), ele nasceu em 20 de fevereiro de 1944, na cidade de Breskens. A Segunda Guerra Mundial já se encaminhava para a reta final, mas muitas coisas aconteceriam até o ano seguinte. E uma dessas coisas teve impacto inegável na família Van Hanegem: em 11 de setembro de 1944, um bombardeio aéreo sobre Breskens, feito pela parte alemã das tropas do Eixo, matou o patriarca Lo e três irmãos de Willem, mesmo escondidos num abrigo.

Ele podia até ser um bebê de colo quando tudo aconteceu, mas mesmo na fase adulta, ainda transpareciam as mágoas que Willem tinha da Alemanha - e dos alemães. Em 1974, quando mais brilhou em campo, comentou o que se passou logo após a Holanda fazer 1 a 0 na final da Copa do Mundo, quando a Laranja trocava passes infrutíferos ainda no primeiro tempo, só para colocar a Alemanha na roda: "Enquanto nós os humilhássemos, eu não ligava. Eles mataram meu pai, minha irmã e dois irmãos. Estou cheio de raiva. Eu os odeio". Tal mágoa se via tanto nas partidas contra a seleção alemã, quanto contra clubes alemães: onde houvesse um adversário do vizinho poderoso, Van Hanegem tinha a raiva como "doping pessoal". O tempo passou, e os sentimentos negativos diminuíram de intensidade. Mas quando jogador, Van Hanegem pegou pesado, conforme reconheceu em 2000, ao seminal livro "Brilliant Orange", do jornalista inglês David Winner: "Toda vez que eu jogava contra alemães, eu tinha um problema, por causa da guerra".

Mas é melhor voltar ao começo. Em 1946, a matriarca Anna e os filhos sobreviventes se mudaram de Breskens para Utrecht, tentando recomeçar a vida num país que também tentava recomeçar. E foi em Utrecht que Van Hanegem cresceu, tendo o futebol como diversão principal. Nas ruas da cidade apurou suas principais qualidades: a técnica impressionante, o chute forte e, acima de todas elas, os lançamentos sinuosos. Era seu destino, e o jovem Willem foi atrás dele logo que virou adolescente. Assim que entrou nas categorias inferiores do Velox (um dos clubes da cidade, que participou da fusão que gerou o atual Utrecht), Van Hanegem já se fez notar. Em 1962, vendo o alto aproveitamento daquele jovem relativamente dentuço nos chutes a gol, o técnico Daan van Beek pediu que ele voltasse ao clube no dia seguinte. Voltou. Em meio ano, estava promovido ao time adulto do Velox. E assim começava sua carreira.

Van Hanegem chegou novo ao Feyenoord. Mas logo virou ídolo eterno (ANP)
Van Hanegem foi ser "kromme" no Feyenoord

O meio-campista se desenvolveu até bem no Velox: ficou quatro anos em Utrecht, entre 1962 e 1966, com 109 partidas e 39 gols marcados. Mas sua carreira tomou rumo ascendente mesmo quando ele se transferiu para o Xerxes, clube de Roterdã que se mantinha, a duras penas, no profissionalismo, e jogaria sua primeira temporada no Campeonato Holandês. Lá, além de titular absoluto, Van Hanegem foi o grande responsável por campanhas honrosas em campo: 10º lugar em 1966/67 e 7º lugar em 1967/68. As atuações eram tão elogiáveis que o passo seguinte foi natural: a estreia na seleção holandesa, acontecida num empate sem gols com a Escócia, em 30 de maio de 1968. Mas já era a reta final do Xerxes: o clube jogou aquela Eredivisie já em fusão com outro clube amador, o DHC'66. E ao final de 1967/68, completamente sem dinheiro, a falência foi inevitável.

Pelo menos para Van Hanegem, os problemas passaram longe. Já havia outro clube de Roterdã que o via com carinho. Aliás, o mais conhecido da cidade - e um dos mais conhecidos do país: claro, o Feyenoord. E o meio-campista tomou o caminho do Stadionclub a partir da segunda metade de 1968. Começava ali uma das mais bonitas histórias de amor entre um jogador e um clube que a Holanda já viu. Não que Van Hanegem tenha passado o resto da vida em De Kuip. Mas a torcida se apaixonou rapidamente por aquele meio-campista cada vez mais notável na técnica e mais ousado nos lançamentos. Aliás, foi por causa dos caminhos sinuosos que a bola fazia ao vir de seu pé esquerdo ("Só uso o pé direito para entrar no carro", dizia) que Van Hanegem ganhou o apelido que sempre estará junto dele: "De Kromme" - em holandês, "o torto".

O Feyenoord já tinha nomes marcantes em seu time da época: o goleiro Eddy Pieters Graafland, os zagueiros Rinus Israël e Theo Laseroms, os atacantes Coen Moulijn e Ove Kindvall. Mas o que Van Hanegem jogou tão logo vestiu aquela camisa já serviu para transformá-lo no destaque supremo daquele time. Talvez fosse o jogador que faltava para iniciar a fase mais vitoriosa da história do clube de Roterdã. Já começou em 1968/69, com a conquista da dupla coroa holandesa (campeonato e copa nacionais). E na temporada seguinte, atingiu o ápice: em 1969/70, o Feyenoord foi o primeiro clube do país a se tornar campeão europeu - e depois, campeão mundial. Em 1970/71, mais um título holandês. O Ajax podia até estar tomando a Europa de assalto, mas na Holanda tinha no Feyenoord um arquirrival em fase respeitável. E Van Hanegem simbolizava aquele Feyenoord vencedor.

Van Hanegem esteve perto de apagar o trauma familiar na Copa de 1974. Faltou pouco

A vingança frustrada

Se era destaque no Feyenoord, claro que Van Hanegem era destaque na seleção. Por mais que Johan Cruyff fosse o primus inter pares, o craque entre craques, ambos coexistiam pacificamente naquela seleção, por mais diferentes que os temperamentos fossem. Não eram tanto, mas Van Hanegem sabia tourear mais as coisas do que o sempre indômito Cruyff - e seu espírito de liderança era semelhante (chegou a ser capitão da seleção, duas vezes). E nessa coexistência pacífica, ambos foram os pilares de uma Holanda que já dava sinais do que logo faria. Demorou um pouco: as campanhas nas eliminatórias da Copa de 1970 e da Euro 1972 foram medianas, ainda. Mas a partir de 1972, a Holanda estava pronta. Conseguiu superar o duelo com a Bélgica na qualificação, e chegou à Copa de 1974.

Se Cruyff, aos 27 anos, estava no auge da forma, no auge do brilho, pronto para explodir intensamente na Alemanha, o que dizer de Van Hanegem? Aos 30 anos, era o líder do Feyenoord. De quebra, justamente em 1973/74, temporada anterior à Copa do Mundo, tinha ganho mais dois títulos: a Eredivisie e a Copa da UEFA. E se lhe faltava a velocidade de outros colegas de seleção (a lentidão era seu ponto fraco em campo), a precisão nos lançamentos o fez inquestionável nos sete jogos que tornaram aquela Laranja eterna. Agora dá para lembrar o começo do texto: a final, contra a Alemanha, era a chance de uma vitória dupla de Van Hanegem, no futebol e na vida. E ele sabia disso: nos vestiários do Estádio Olímpico de Munique, pedia para que os alemães fossem "transformados em coisinhas". Estava tão pilhado que até cartão amarelo levou.

Não deu, pela enorme qualidade do time alemão que virou aquela final para 2 a 1. E Van Hanegem foi o jogador que mais sentiu aquela derrota. Todos os holandeses saíram tristes do gramado. Mas ele foi o único a sair chorando. Talvez por saber o que tinha perdido: a chance de uma vingança pessoal.

A "Laranja Mecânica" de 1974 se vestiu de azul na festa para encerrar a carreira de Van Hanegem, em 1983
Outros caminhos

Van Hanegem seguiu no Feyenoord por mais dois anos. A partir de 1976, porém, começaram os sinais de queda. Na Euro daquele ano, já era reserva - mas entrou ainda no primeiro tempo da semifinal, contra a Tchecoslováquia. Porém, na prorrogação disputada após 1 a 1 nos 90 minutos, após os tchecos fazerem 2 a 1 com Zdenek Nehoda aos 114', ele se mostrou algo irascível: negava-se a voltar ao campo de defesa, para que o jogo pudesse recomeçar. O árbitro galês Clive Thomas o ameaçou duas vezes. Na terceira, sem chances: cartão vermelho. E a Tchecoslováquia ainda fez 3 a 1.

Naquele ano, ainda, finalmente veio a mudança de ares em clubes. Não foi para fora da Holanda, como vários colegas de geração. Houve chances: em 1972, ele viajou à praia para avaliar uma proposta do Olympique de Marselha, junto do amigo e colega de Feyenoord Wim Jansen, mais as respectivas esposas. Sem que nenhum dos quatro chegasse a uma conclusão, o meio-campista olhou para seu cachorro e disse que, se ele latisse, iria para a França. Não latiu, e ele ficou. Só em 1976 vestiria camisa diferente: Van Hanegem se transferiu para o AZ, após 247 jogos e 88 gols como Feyenoorder. Ficou em Alkmaar até 1979, e até ganhou um troféu: a Copa da Holanda, em 1976/77. 

Todavia, seu fim na seleção logo veio, e ele foi traumático. Mesmo após participação periférica nas Eliminatórias da Copa de 1978, ele foi um dos 22 convocados. Porém, pedia garantias de que seria titular ao técnico Ernst Happel, que chegou só para treinar a equipe na Argentina. Não as teve. Resultado: a duas semanas do início da Copa, Van Hanegem desistiu da convocação. Não quis retornar nem mesmo após a lesão que impedia Hugo Hovenkamp de ser escalado naquele torneio. Ainda houve mais uma única partida - amistoso contra a Bélgica -, mas na prática se terminou assim, melancolicamente, após 52 jogos e seis gols, a participação de Van Hanegem na seleção da Holanda.

Também em 1979, enfim o "Torto" seguiu o exemplo de colegas de Holanda: foi mais um a ter a experiência lucrativa na NASL, a liga norte-americana de futebol, passando alguns meses no Chicago Sting. 27 jogos e 6 gols depois, ele voltou à Holanda, ainda em 1979. E de certa forma, deu o fecho adequado para a história: passou dois anos no Utrecht - clube surgido a partir de uma fusão que incluiu o Velox em que começara. Mas o melhor era terminar no grande amor: em 1981, aos 37 anos, Van Hanegem voltou ao Feyenoord. Acumulando os papéis de jogador e membro da comissão técnica, ficou lá até 1983, quando encerrou a carreira. E a encerrou em estilo engraçado: numa festa em De Kuip, com amistoso entre o Feyenoord e a seleção holandesa de 1974, o jogo terminou com um cartão vermelho dado a Van Hanegem, justamente por Clive Thomas, o juiz da expulsão na Euro 1976. Era a senha para as homenagens começarem: erguê-lo nos ombros, volta olímpica, essas coisas.

Van Hanegem já era campeão holandês pelo Feyenoord como jogador. Pois foi como técnico também. Como se precisasse disso para a torcida o idolatrar mais... (Arquivo ANP)
A carreira terminou. A idolatria no Feyenoord, não

Van Hanegem continuou firme no futebol, fora de campo. Em 1984, de mero membro da comissão técnica, virou auxiliar técnico do Feyenoord. Ficou assim até 1990, quando iniciou a carreira de treinador, no amador USV Holland. No ano seguinte, mais uma vez foi auxiliar, no hoje extinto Wageningen. Pareciam apenas preparativos para sua grande chance: em 1992, ele voltou ao Feyenoord, para ser treinador. E se já sobravam motivos para a fanática torcida o idolatrar dentro de campo, ele os deu fora também: em sua primeira temporada no comando do time, 1992/93, Van Hanegem comandou um Feyenoord campeão holandês após nove anos de jejum, com destaques como Ed de Goey, John de Wolf e Gaston Taument. Ainda veio o bicampeonato da Copa da Holanda (1993/94 e 1994/95).

Van Hanegem só deixou o Feyenoord em 1995. Passou pouco tempo no Al-Hilal saudita e logo voltou à Holanda. Treinando o AZ entre 1997 e 1999, teve o último título na carreira: a segunda divisão holandesa, em 1997/98. Desde então, aos poucos foi diminuindo a intensidade de seu papel. Voltou a ser auxiliar - no caso, da seleção holandesa, sendo o braço-direito de Dick Advocaat na segunda passagem deste pela Laranja, entre 2002 e 2004, culminada na Euro disputada em Portugal. Teve ainda uma derradeira passagem pelo Utrecht, entre 2007 e 2008.

Mas depois disso, preferiu ficar como o observador ácido que é, colunista do jornal Algemeen Dagblad e comentarista esporádico da emissora de tevê a cabo Ziggo Sport. Às vezes, Van Hanegem dá mostras de sua irritação sem rodeios - em 2015, quando a Holanda ficou fora da Euro, criticou duramente o comportamento de Memphis Depay, para ele mais preocupado com vestuário do que com o futebol.

Tudo bem: a torcida não se importa. Continua o amando. Principalmente a do Feyenoord, que transformou De Kuip num salão de festas para seus 70 anos, em 2014, dando de presente o seu nome a uma das tribunas do estádio. Houve um susto de saúde - um tumor testicular, no ano retrasado, já superado. E a Holanda comemora, neste 20 de fevereiro de 2019, o fato de ainda ter o segundo ídolo da "geração 1974" vivo para poder ver como os torcedores o respeitam. Mesmo que ele brinque com esses festejos todos: "Tudo besteira. Agora, devem achar que eu não tenho mais nada para fazer...".

Willem van Hanegem
Nascimento: 20 de fevereiro de 1944, em Breskens, Holanda
Carreira: Velox (1962 a 1966), Xerxes/Xerxes-DHC (1966 a 1968), Feyenoord (1968 a 1976 e 1981 a 1983), AZ (1976 a 1979), Chicago Sting-EUA (1979) e Utrecht (1979 a 1981)
Seleção: 52 jogos, 6 gols

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