domingo, 24 de março de 2019

Grandes laranjas: Ruud Krol

A voz de comando na defesa: assim Ruud Krol foi na Holanda (Bob Thomas/Getty Images)
Neste dia 24 de março, quem acompanha futebol na (e o futebol da) Holanda tem um motivo para lamentar: a perda de Johan Cruyff ocorreu num 24 de março, em 2016. Porém, quem conhece mais tem outro motivo para lembrar cada 24 de março. Um motivo bem mais alegre. Ainda mais neste ano de 2019. Afinal de contas, neste domingo, completa 70 anos um membro da icônica seleção da Copa de 1974. Que ganhou ainda mais importância depois dela, até - culminando no destaque tido na campanha holandesa no vice-campeonato mundial, quatro anos depois, na Argentina. Também, pudera: raras vezes a Holanda viu um defensor que soubesse tanto jogar bola quanto Ruud Krol.

Krol (no centro, sem camisa) celebra o tricampeonato europeu do Ajax em 1973 (Arquivo ANP)
Evolução precoce

Nascido e criado em Amsterdã, Krol teve suas primeiras experiências nos bate-bolas de rua, na infância. Dali para ir tentar a sorte num clube, foi um pulo - ainda que esse clube fosse amador. Era o caso do Rood-Wit A (hoje, chamado De Dijk). Lá Krol teve toda a sua formação futebolística. E chegou já relativamente preparado ao Ajax, em 1968. Mesmo com os Amsterdammers alcançando a primeira final na Copa dos Campeões no fim daquela temporada, o jovem de 19 para 20 anos passou em brancas nuvens: jogou pouco - só uma partida, no Campeonato Holandês.

Isso mudou completamente a partir da temporada 1969/70. O técnico Rinus Michels estava descontente com o lateral esquerdo Theo van Duivenbode, titular até então, por achá-lo lento. Assim, Van Duivenbode foi despachado para o arquirrival Feyenoord. E a transferência valeu para ambas as partes. Van Duivenbode comemorou os títulos europeu e mundial em 1969/70. E no Ajax, Michels teve premiada a aposta em Krol: o jovem de 20 anos tomou a lateral esquerda para não mais largar. Mostrava velocidade, técnica, ofensividade.

A ascensão de Krol foi tão vertiginosa que sua estreia pela seleção holandesa também ocorreu já em 1969: em 5 de novembro, lá estava ele como lateral esquerdo da Laranja, num amistoso contra a Inglaterra (derrota por 1 a 0). Também foi rápido seu entrosamento com os colegas de Ajax, principalmente com Wim Suurbier, o lateral do outro lado: a dupla era tão sincronizada que ganhou até apelidos carinhosos da torcida - "Snabbel" e "Babbel". E já em 1969/70, se o Feyenoord estava na crista da onda para o resto do mundo, o Ajax é que comemorou o título holandês.

E foi como titular que o novato foi se estabelecendo, tanto no clube quanto na seleção. Podia até ter sido mais proeminente antes: em 1970, Krol quebrou a perna, e por isso estava fora de campo no bicampeonato holandês e, acima de tudo, no primeiro título europeu da história do Ajax. Sem problemas: na segunda metade de 1971, o jogador estava pronto para voltar aos campos. Voltou. Retomou a posição no time de Michels. Retomou a posição na seleção - a partir de 17 de novembro, num 8 a 0 sobre Luxemburgo, nas Eliminatórias da Euro 1972. E já estava plenamente recomposto para ser fundamental na Tríplice Coroa do Ajax em 1971/72: na Copa da Holanda, no tricampeonato da Eredivisie e no bicampeonato europeu - este, ganho em atuação histórica do Ajax contra a Internazionale, considerada a grande partida do chamado "Futebol Total" em termos de clubes.

Falando em "Futebol Total", Krol já se destacava por sua inteligência em campo. Exatamente por ela é que descreveu perfeitamente um dos benefícios que aquele estilo de jogo trazia ao Ajax, num depoimento: "Nosso sistema trouxe uma solução ao velho problema de disposição física. Como jogar por 90 minutos e conservar sua energia ao mesmo tempo? Como lateral esquerdo, se eu tenho de correr 70 metros pela ponta, está longe do ideal se eu tiver de correr imediatamente a mesma distância para voltar à minha posição. Então, se o meia-esquerda pode cobrir o lugar em que eu estava, e se o ponta voltar para o meio-campo, isso diminui as distâncias. Se você tem de correr 70m por dez vezes, e voltar outras dez vezes, isso dá 1400m. Se você muda [do jeito que falei], então você só corre 1000m, estará 400m mais descansado. Essa era a filosofia".

Foi sendo guiado por esta filosofia que o Ajax alcançou ainda o título mundial interclubes, em 1972. Ainda em 1972/73, vieram o tetracampeonato holandês, o título da Supercopa da Europa e o tricampeonato holandês. A geração holandesa que impressionava o continente estava madura para surpreender o mundo na Copa de 1974. Titular absoluto nas Eliminatórias que trouxeram a Holanda de volta a uma Copa após 36 anos, Krol também jogaria todas as sete partidas da Laranja no Mundial. Cometeu um gol contra, na goleada holandesa sobre a Bulgária (4 a 1). Mas se recompôs ao marcar a favor, nos 4 a 0 sobre a Argentina, já na segunda fase. E nem a derrota na final tirou a impressão de que Krol fizera boa Copa. Sua importância tanto no Ajax quanto na seleção holandesa já era grande. Ficaria maior ainda.

Krol já se destacara na seleção da Holanda em 1974. Foi destaque ainda maior na Copa de 1978 (PA Images/Getty Images)
O grande defensor

De 1974 para frente, algumas coisas mudaram com Krol. E aumentaram sua importância em clube e seleção. No Ajax, o fim da carreira do ponta Piet Keizer fez com que a braçadeira de capitão viesse para ele. A mesma coisa ocorreria na equipe da Holanda, em que ele dividiria a braçadeira com Cruyff. Cada vez mais, Krol foi sendo deslocado da lateral esquerda para o meio da área. Foi uma mudança extremamente providencial. Sabendo usar melhor a velocidade e a técnica, ele poderia explorar mais sua grande inteligência tática no meio da área, começando a saída de bola para o ataque.

E enquanto muitos colegas de clube - Johan Neeskens, Johnny Rep, Wim Suurbier - deixavam o Ajax, Krol foi o único da geração tricampeã europeia a ficar no clube por toda a década de 1970. Claro, a importância do agora zagueiro só crescia nos Godenzonen. Tanto por seu espírito de liderança quanto pela habilidade na saída de jogo - quase um "líbero", avançando ao meio-campo. Previsivelmente, o capitão foi um dos pilares do Ajax que voltou ao título holandês, em 1976/77. Foi titular absoluto na campanha da Holanda na Euro 1976. E como Johan Cruyff já anunciara a ausência da Copa de 1978, a importância de Krol cresceria naquele Mundial, se a Holanda chegasse a ele.

Chegou. E Krol viveu seu apogeu técnico na Argentina: enquanto Robert Rensenbrink e Johnny Rep cuidavam dos gols na frente, o zagueiro era praticamente um armador, trocando constantemente de posição com Arie Haan. Após uma primeira fase turbulenta, a Holanda cresceu de produção, e chegou a mais uma final. Perdeu, de novo. Mas se havia um consolo pessoal para Krol, era a opinião quase unânime de que ele formava a zaga da "seleção da Copa" com o argentino Daniel Passarella.

Em 1979, Krol brilhou ainda mais. Foi figura de ponta na "dupla coroa" do Ajax, campeão de copa e campeonato holandeses em 1978/79. Na seleção da Holanda, em 22 de maio, num amistoso contra a Argentina, repetindo a final da Copa do ano anterior para celebrar os 75 anos da FIFA, o zagueiro superou o atacante Puck van Heel, completando 65 partidas e se tornando o atleta com mais partidas pela seleção laranja, àquela altura. Mais um mês, e em 25 de junho, lá estava Krol na seleção do Resto do Mundo, que disputava um amistoso contra a Argentina. No fim do ano, um excelente 3º lugar na votação para a "Bola de Ouro" da revista France Football. Era claro: se havia alguém que podia ser chamado de melhor zagueiro do mundo, entre tantas opções, uma das mais fortes era o holandês.

Krol cairia no ostracismo ao deixar o Ajax? Nada disso: já veterano, impôs respeito no Napoli (Reprodução/Calciopedia)
Um fim de carreira honroso

Já experiente (31 anos), Krol decidiu saber como era a vida fora do Ajax somente em 1980. Novamente foi o líder do clube, na boa temporada feita em 1979/80 (bicampeão holandês, vice-campeão da Copa da Holanda, semifinalista da Copa dos Campeões). E após 12 anos, 339 partidas e 23 gols, encerrou a passagem pelo Ajax, entronizado como um símbolo dos tempos vitoriosos do clube. De quebra, seguia absoluto na zaga da seleção holandesa: acumulou mais uma Euro no currículo em 1980.

A primeira experiência de Krol fora da Holanda foi mais para ganhar dinheiro: um contrato lucrativo com o Vancouver Whitecaps lhe fez jogar 14 partidas pela equipe, na NASL, a liga dos Estados Unidos naqueles tempos. Começava a fase caça-níquel, de menor nível técnico? Longe disso: ainda em 1980, Krol foi para o Napoli. A princípio, chegaria ao clube do sul da Itália por empréstimo, alinhavado pelo ex-jogador Antonio Juliano, diretor esportivo da agremiação napolitana. Chegava credenciado: era o primeiro estrangeiro contratado por um clube italiano após a reabertura do mercado do país para futebolistas do exterior, em 1980

Logo que viu o tamanho da utilidade que o emprestado teria, o Napoli o contratou em definitivo. Valeu bastante: em 1980/81, o time alviceleste alcançou a terceira posição no Campeonato Italiano. Como líbero, Krol foi o grande destaque da campanha. E aquilo não passou despercebido: em 1981, o holandês ganhou o prêmio Guerin D'Oro, premiação da revista Guerin Sportivo ao melhor jogador do ano na Itália. De quebra, foi um dos titulares do combinado europeu que disputou um amistoso contra a Azzurra, no mesmo 1981, para arrecadar fundos às vítimas de um terremoto na região da Irpínia. Enfim, o holandês fazia por merecer o apelido dado pelo narrador Bruno Pizzul: "Sua Majestade".

Os anos se passavam, e Krol seguia soberano, titular tanto no Napoli quanto na seleção da Holanda. Na temporada 1981/82, ainda conseguiu destaque no 4º lugar que os Partenopei obtiveram na Serie A. Porém, o tempo se passou, a partir de 1983. No clube italiano, os problemas no joelho se fizeram sentir, e ele jogou um pouco menos. Na seleção, os problemas da entressafra que já deixara a Laranja fora da Copa de 1982 sobraram para ele: após 83 partidas, Krol defendeu a Oranje pela última vez - manteria o recorde de mais participações pela seleção até 2000, quando foi superado por Aron Winter.

Finalmente, após a temporada 1983/84, Krol deixou o Napoli. Como no Ajax, saiu em alta: reconhecido como um dos melhores zagueiros (e um dos melhores jogadores) da história do clube, até hoje respeitado em Nápoles. Mas o fim chegava. Mais dois anos passados na França, jogando no Cannes, e os problemas no joelho se avolumavam, por mais que seguisse participando bastante dos jogos. E em 1986, aos 37 anos, Krol encerrou a vitoriosa carreira.

Como treinador, a África foi o destino

Krol demorou um pouco, mas voltou ao futebol a partir de 1989, começando a ser treinador no Mechelen, da Bélgica. Só que seu principal destino ao ser comandante no banco de reservas estava distante da Holanda. Claro, a sabedoria tática dele foi aproveitada no país natal: ele treinou a seleção sub-21 entre 1991 e 1993, foi auxiliar técnico da seleção principal entre 1999 e 2001 (trabalhou ao lado de Frank Rijkaard e Louis van Gaal), foi auxiliar do Ajax entre 2002 e 2005 (até teve um período como técnico interino, em 2005, após a demissão de Ronald Koeman). 

Mas Krol trabalhou mais como técnico na África e na Ásia. Clubes não faltaram. Na Ásia, o Al-Wahda (Emirados Árabes). Na África, então, o holandês encontrou seu segundo lugar. Na Líbia, o Al-Ahly. Na África do Sul, treinou o Orlando Pirates, e até chegou a trabalhar como comentarista de televisão, além de morar um tempo em Joanesburgo. No Egito, teve ainda mais espaço: treinou o Zamalek, a seleção sub-23 e, acima de tudo, foi o treinador da seleção adulta na Copa Africana de 1996, quando os "Faraós" foram às quartas de final.

Finalmente, a Tunísia: Krol passou por vários clubes - Espérance Tunis, Club Africain, Sfaxien -, e treinou a própria seleção tunisiana em 2013. Atualmente, está na segunda passagem pelo Sfaxien. Parar? Nada disso: Ruud Krol ainda tem muito a ensinar. Sabedoria, não lhe falta.

Rudolf Jozef "Ruud" Krol
Nascimento: 24 de março de 1949, em Amsterdã, Holanda
Carreira: Ajax (1968 a 1980), Vancouver Whitecaps-CAN (1980), Napoli-ITA (1980 a 1984) e Cannes-FRA (1984 a 1986)
Seleção: 83 jogos, 4 gols, entre 1968 e 1983

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