sábado, 25 de abril de 2020

O fim triste e a desordem

O diretor geral Mark Rutte mostrou ar triste desde antes da reunião com os clubes. Simbolizou bem as trapalhadas que encerraram a temporada 2019/20 do futebol nos Países Baixos (ANP)

Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, após o então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain assinar o Pacto de Munique com Adolf Hitler, um acordo de não-agressão mútua, Winston Churchill cunhou as célebres palavras que se tornariam verdade: "Entre a desonra e a guerra, você escolheu a desonra, e terá a guerra". Claro que definir os destinos de um campeonato de futebol é algo muito menos grave (embora em meio a um cenário, sim, grave, como o cenário em que a pandemia do novo coronavírus colocou o planeta). Entretanto, o modo como a federação holandesa resolveu as coisas para a primeira e a segunda divisão na temporada 2019/20 faz crer: entre um fim triste, arrastado, e a desordem, ela escolheu a desordem - e terá um fim triste, o que é bem pior.

E a postura da federação holandesa já era negativa, antes mesmo da reunião desta sexta, em videoconferência com os 36 clubes (18 da Eredivisie, 18 da Eerste Divisie - a segunda divisão). Num pronunciamento na terça passada, o premiê Mark Rutte anunciou que a Holanda ficaria sem eventos públicos, no mínimo, até 1º de setembro. Depois, na quinta, a UEFA flexibilizou sua postura aos países filiados na quinta - quem quisesse, poderia cancelar sua liga sem prejuízo das vagas nas competições continentais ou mesmo ameaças de sanções. E a KNVB partiu para o encontro cibernético já sabendo: viria chumbo grosso. O diretor esportivo Mark Rutte reconheceu, falando à imprensa nesta sexta: "É um dia muito negativo, nunca aconteceu na história do futebol profissional. Não temos regulamentos ou jurisprudências a nos ajudar. Uma coisa é certa: não há solução que vá agradar a todos. Aqui e ali teremos de evitar tristezas e situações dolorosas". 

De fato: num cenário de exceção como o atual, jamais haveria solução que contentasse completamente a todos. Porém, até pelo estatuto da entidade - que prevê a decisão final apenas e tão somente para o Departamento de Futebol Profissional -, esperava-se mais peso da federação. Que, no entanto, preferiu dividir a responsabilidade com os clubes: deixou a eles a opção de votos para as duas decisões necessárias. Nem tanto para a parte de cima na tabela: com a recomendação da UEFA, já se imaginava que as vagas em competições europeias seriam distribuídas em função da posição na tabela quando o campeonato parou. Mas, sim, para a parte de baixo: haveria rebaixamento/promoção?

Era a senha para o desastre: clubes como o Ajax já haviam se colocado a favor do encerramento simples do campeonato (houve até conversa dizendo que o Ajax pensava em deixar a Eredivisie caso ela seguisse). Heerenveen e PSV, pela vez deles, nem queriam muita discussão - Cees Roozemond, diretor geral do clube da Frísia, disse que "não podia definir o destino de um co-irmão", enquanto Toon Gerbrands, diretor-geral dos Eindhovenaren, disse que "sequer votou". Já os diretamente interessados - Utrecht, Willem II em cima; Fortuna Sittard, ADO Den Haag e RKC Waalwijk abaixo - queriam saber quais seus destinos.

Numa votação já desorganizada (a caixa de mensagens de um dirigente estava lotada, atrasando o processo), o resultado foi: 16 clubes querendo o rebaixamento/acesso, 9 em neutralidade e 9 contrários às quedas/promoções. Aí veio a pior decisão: arbitrariamente, a federação holandesa colocou neutros e contrários no mesmo balaio. 18 a 16: nada de rebaixamento, nada de acesso, nada de campeões na Eredivisie e na segunda divisão da temporada 2019/20.

Sim, torcedores do Willem II foram às ruas para festejarem a vaga na Liga Europa (Jan van Eijndhoven)

Claro, bastou para o começo das revoltas. Principalmente do Utrecht, o grande prejudicado: estava perto de uma disputa por vaga na Liga Europa (fosse pela final da Copa da Holanda em que enfrentaria o Feyenoord, fosse pelos play-offs), e viu as duas vagas caírem no colo de Feyenoord e Willem II. Torcedores dos Utregs queimaram camisas da seleção, em represália contra a KNVB; o presidente Frans van Seumeren anunciou em nota que o clube vai à Justiça e à UEFA querendo mudar o rumo das coisas (e segundo advogados, com certa chance de sucesso). O AZ, mesmo na Liga dos Campeões - segundo colocado que era -, também se disse desapontado com uma resolução que, indiretamente, privilegiou o Ajax. Mesmo o Feyenoord, na Liga Europa, sequer comemorou: "Ainda é cedo demais, e nada está decidido", se acautelou o diretor Mark Koevermans. Só o Willem II comemorou a vaga na Liga Europa: alguns torcedores até ousaram ir às ruas em Tilburg, dentro dos carros, para festejarem a reaparição dos Tricolores num torneio europeu, a primeira desde 2005/06.

Na parte de baixo da tabela, a mesma coisa: alívio nos "salvos" ADO Den Haag e RKC Waalwijk, ira no Cambuur, líder da segunda divisão - o técnico Henk de Jong falou na "maior vergonha da história do esporte holandês". E o Ajax, que "terminou" líder pelo saldo de gols, saiu pela tangente: o diretor geral Edwin van der Sar mordeu e assoprou com um "é chato terminar assim, mas é compreensível".

Talvez, o melhor resumo de tudo que se viu tenha vindo da boca de Adriaan Visser, o presidente do Zwolle - 15º colocado, o primeiro salvo na Eredivisie, com ou sem interrupção: "Ainda bem que nosso clube estava fora do circo". Um circo montado pela incompetência da KNVB, a federação holandesa. Que escolheu a desordem, sem considerar possibilidades de encerramento em campo (ainda que fragilizadas pela incerteza da pandemia) - e teve um fim triste e forçado para a temporada 2019/20.

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