domingo, 12 de julho de 2020

Suurbier: jogando bola (e curtindo a vida) adoidado

Suurbier: um lateral direito marcante na Holanda, dentro e fora de campo (Getty Images)

No Reino Unido (mais precisamente, na Irlanda do Norte), George Best. No Brasil, tantos: de Paulo Cezar Caju a Neymar, passando por Renato Gaúcho e Vampeta. Na Alemanha, Bernd Schuster. Enfim, sobram exemplos no futebol de jogadores que mostraram grande talento em campo, ao mesmo tempo em que aproveitaram o lado intenso da vida: fizeram piadas, conheceram pessoas, beberam e comeram do bom e do melhor (e do ruim e do pior também), viveram. Na célebre geração da Holanda que jogou a Copa de 1974 e colocou o país no mapa do futebol mundial, no início daquela década, havia muita gente irreverente. Mas o maior deles nesse lado não era Johan Cruyff: era o lateral direito Wim Suurbier, falecido neste domingo, aos 75 anos, pelas complicações de um acidente vascular cerebral sofrido em abril - que o mantinha internado em Amsterdã, desde então.

O abre-alas da geração

Como tantos jogadores holandeses, antes e depois, Wilhelmus Lourens Johannes Suurbier começou a bater sua bola nas ruas de Amsterdã - mais precisamente, no bairro de Oosterpark, e também na escola, em que tinha como constante colega de bate-bola um futuro colega de Ajax, Piet Keizer. Porém, o mais velho de dois filhos teve de começar a aliar trabalho e lazer logo, já que os pais Willem e Nelly faleceram precocemente. 

Pelo menos, houve como aliar rapidamente os dois: após uma passagem rápida pelo DWS, clube então profissional de Amsterdã, Suurbier estava atuando por um time de jovens nascidos na capital dos Países Baixos, por volta de 1961. Até que... bem, o próprio descreveu à revista Voetbal International, em 1985,: "Depois de um jogo em que eu marquei três gols, um enviado do Ajax veio até mim. E eu fui para lá. Por um par de chuteiras, uma camisa, um calção e algumas meias".

Suurbier entrou no time do Ajax em 1964, caiu nas graças de Rinus Michels... e ficou como símbolo do momento em que o clube ganhou o conhecimento do mundo (VI Images)

Três anos depois, Suurbier estreava pelo time principal dos Amsterdammers - em 5 de janeiro de 1964, substituiu Kees Ruiter contra o ADO Den Haag, pelo Campeonato Holandês. Demorou pouco para entrar na lateral direita e não sair mais. Demorou menos ainda para que, em 1965, quando um ex-atacante do Ajax chamado Rinus Michels assumiu o comando técnico da equipe, visse naquele novato de 20 anos capacidade técnica para ser um sustentáculo do estilo tático que tomou conta da equipe Ajacied nos anos que vieram.

Forte fisicamente, sem medo de divididas e ainda veloz, Suurbier se convertia num protótipo do lateral direito desejado pelo que seria o Futebol Total: capaz de defender, capaz de atacar. Por isso, virou um dos nomes certos na escalação do time de Amsterdã, por anos e anos. E também se tornou um abre-alas da geração que apareceria pela Europa no fim dos anos 1960, tendo o ápice em 1974: em 1966, Suurbier estreou pela seleção holandesa, num amistoso contra a Tchecoslováquia, em 6 de novembro, tendo os colegas Johan Cruyff e Keizer ao lado.

Já nos primeiros tempos de seleção holandesa, Suurbier tinha o ar de quem estava pronto para as piadas (G. V.d.Werff/Arquivo ANP)

Bem com todos, dentro e fora de campo

No fim da década de 1960, o Ajax foi evoluindo, chegou à final da então Copa dos Campeões da Europa em 1968/69, foi goleado pelo Milan, Rinus Michels ia mudando a escalação e dispensando jogadores. Mas Suurbier já seguia como dono da lateral direita nos Amsterdammers. Mais importante: a partir das Eliminatórias da Copa de 1970, já era o titular da posição também na seleção, sendo um dos símbolos da transição entre a geração anterior e a que chegava.

Paralelamente, na juventude, também tinha de prestar o serviço militar no país, como sargento, mesmo já com a carreira no Ajax correndo. E ali dava vazão ao lado piadista, até pelo descontentamento: "Como sargento, você tem de cumprir obrigações. Eu não queria isso, queria era ser jogador. Aí, fiz as coisas mais malucas: por exemplo, entrei pelado no pelotão com minha arma no ombro. (...) Fui mandado para Huis ter Heide [reserva natural holandesa, protegida pelo exército], e eu tinha meu quarto na igreja onde se faziam os atos religiosos ali. E sempre que o padre dava um sinal, eu ia procurar a música que o organista ia tocar, mas às vezes trocava por uma música do meu gosto: aí, o cidadão ia tocar o 'Salmo 95' e tocava Rolling Stones...".

Livre das obrigações cívico-militares, o lateral direito acabou simbolizando tudo o que o Ajax e a seleção holandesa simbolizaram no futebol, entre 1971 e 1974. Em campo, veloz, era capaz de defender e atacar, sendo constante desafogo nos ataques, um precursor do que seria conhecido como ala - portanto, nome útil e certo no tricampeonato europeu dos Ajacieden entre 1971 e 1973, e também em toda a trajetória da Laranja até a Copa de 1974, da qualificação às partidas na Alemanha. E mesmo jogando bem, se necessário fosse, não fugia de uma boa briga no Mundial. Contra o Brasil, quando o equilíbrio se deu na bola e também no pau, Suurbier dava e devolvia os golpes que recebia. Marinho Chagas que o diga...

Veloz na lateral direita, Suurbier foi dono da posição na seleção da Holanda (Países Baixos) por 12 anos, sabendo jogar - e sabendo bater também (Cor Mulder/Arquivo ANP)

E se Suurbier exemplificava as qualidades e controvérsias do time dentro de campo - velocidade, capacidade de alterar posições, inteligência tática -, também exemplificava como a geração era irreverente fora de campo. Tratava-se daquele tipo de jogador que perdia o amigo mas não perdia a piada. Na entrevista à Voetbal International em 1988, ele se lembrou de uma ocasião em que deixou sem graça o treinador da Laranja nas Eliminatórias para 1974, o tcheco Frantisek Fadrhonc: "Fadrhonc adorava camisas e calças. Assim que teve a chance, ele rapidamente colocava uma camisa ou um calção em sua bolsa, coisa assim. Ele deve ter recolhido roupa suficiente para encher um armário. Ruud Krol e eu ficamos de olho nele, então ele correu pelo vestiário e quando ninguém estava olhando, ele rapidamente pegou as calças e pôs na mala. Foi então que Krol e eu começamos a aplaudir e a gritar 'pega ladrão, lá vai ele'". Não à toa, a dupla de gozadores ganhou até um apelido: "Snabbel & Babbel".

Sim, havia o lado do aborrecimento. Ficou clássica a história: Suurbier havia aprontado durante uma noite, e chegara ao Ajax no exato momento em que Rinus Michels dava a preleção antes de uma partida. Michels nada falou: apenas pegou um apagador e tirou da lousa o nome do lateral, que estava entre os titulares, colocando-o fora dos relacionados para a partida. No entanto, Suurbier acabava sendo perdoado. Afinal, ausências de treinamentos como essa eram raras, segundo ele: "Na manhã seguinte, eu estava no treino. O futebol sempre foi uma profissão para mim. Era o meu trabalho, e eu tinha de levar a sério. Não importava jogar pelo Ajax ou pela Oranje, eu sempre cumpria minha parte". E mesmo com os dois treinadores mais famosos da era de ouro do Ajax, o lateral direito se deu bem: "Trabalhei normalmente com Rinus Michels, e Stefan Kovacs era um homem bem esperto".

Treinado por Rinus Michels, jogando com Cruyff (último sentado, da esquerda para a direita), Suurbier (segundo sentado, da esquerda para a direita) começou sua experiência norte-americana badalado, no Los Angeles Aztecs (Arthur Bastiaanse/Arquivo ANP)

A carreira acaba, a vida continua - e continua intensa

Na seleção, mantendo-se a uma distância segura dos problemas sérios de relacionamento que havia naquela geração, Suurbier seguia nome titular habitual: foi à Euro 1976, torneio em que o clima do grupo estava péssimo, e foi um dos raros titulares absolutos na Iugoslávia, jogando as duas partidas e saindo relativamente ileso. Porém, àquela altura, já entrado nos 30 anos, era bem provável que aconteceria com ele o que ocorrera com vários colegas do "Gloria Ajax". Ruud Krol, Johan Neeskens, Johan Cruyff, Arie Haan, Johnny Rep... todos eles haviam saído de Amsterdã nos anos anteriores. Em 1977, foi a vez de Suurbier começar a correr mundo, se transferindo para o Schalke 04.

Nada que influísse na seleção. Nela, seguiu absoluto na lateral direita, durante a campanha de qualificação para a Copa de 1978. Como um dos nomes mais experientes da Oranje, foi convocado por Ernst Happel, e começou o torneio como titular. Porém, nas atuações inconstantes e preocupantes da seleção no Mundial da Argentina, Suurbier foi uma das vítimas: já um pouco mais lento, apenas se valendo da força física, acabou perdendo a posição para Jan Poortvliet logo que a segunda fase começou na Copa. Pelo menos, fez o último de seus 60 jogos pela Laranja em um grande cenário: na tensa final daquela Copa de 1978, substituiu Wim Jansen aos 75', ficando até o fim da prorrogação, mais fixo na zaga, mas sempre ajudando à frente - e batendo, se necessário (chegou a dar uma cotovelada em Daniel Bertoni).

Copa encerrada, carreira na seleção também - parou como o segundo nome com mais partidas pela Oranje na época -, Suurbier foi atrás de mais experiências. No futebol e na vida. Depois do Mundial, ainda passou um ano no Metz, da França. Porém, já em 1979, de novo seguiu o exemplo de vários contemporâneos: transferiu-se para a NASL, a liga de então nos Estados Unidos. Suurbier começou acompanhando o colega Cruyff no Los Angeles Aztecs. Dali partiu para experiências intensas, no futebol e na vida - sem contar saídas temporárias (como um retorno à Holanda, emprestado para o Sparta Rotterdam, em 1981, e até passagem pelo futebol de Hong Kong, em 1982).

Mas foi nos Estados Unidos que Suurbier terminou a carreira e curtiu o sobe-desce da vida. Não só na NASL (pela qual ainda defendeu o San Jose Earthquakes, em 1982), mas também em times de futebol indoor, que lhe valeram vivências fortes. Vale transcrever suas palavras à Voetbal International sobre uma delas - em 1984, quando foi treinar o Tulsa Roughnecks: "Eu fui treinar o time, após jogar e treinar no San Jose Earthquakes. (...) O Tulsa Roughnecks me ofereceu contrato de três anos, ótimo, mais uma casa e um carro de graça. E o dono me disse que ia tentar uma vaga no torneio de futebol indoor, porque o clube não podia ser só futebol de campo. Isso foi negado: as emissoras de televisao só queriam negócio com as grandes cidades, Nova Iorque, Dallas, Los Angeles e Chicago. Foi o fim para o Tulsa Roughnecks. Do nada, eu estava na rua: num dia, tinha um ótimo contrato, no outro, estava sem fonte de renda alguma, e tinha problemas em casa - minha esposa na época estava na Califórnia, eu ainda gostava dela, queria salvar o casamento e dei todo o dinheiro que eu tinha, mas ela seguiu gastando, então as dívidas cresceram".

O fim da carreira de Suurbier teve lances nada próximos da Calçada da Fama (VI Images)

A roda-viva norte-americana de Suurbier seguiu, entre aquele ano e 1985: "Nos Estados Unidos, quando se está sem dinheiro, você precisa se virar. Voltei a San Jose, conheci um alemão que importava cerveja e champanhe, e ele me aconselhou a voltar a jogar em San Francisco, como semiprofissional, e aí eu podia trabalhar para ele também, como homem de relações públicas. Só que o campeonato semiprofissional só durava três meses. Precisei procurar emprego de novo, e por um conhecido, achei emprego em jardinagem. Era trabalho muito duro, mas eu precisava sobreviver. Toda manhã, levantava às 4h30, para às 5h sair com o caminhão. Às vezes eu tinha sorte e só precisava aparar um gramado, às vezes eu tinha azar e precisava cortar árvores. Só parava às duas da tarde. Eu chegava à minha casa quebrado (...) Às vezes até me perguntava como, depois de uma ótima carreira no futebol, precisava ralar para trabalhar por 50 dólares por dia. Pouco depois, a empresa faliu, e voltei à rua, sem um centavo no bolso".

Nas idas e vindas entre o futebol e outras profissões, como jogador-treinador, Suurbier ainda jogou/treinou o Houston Dynamos, em 1985, e o Tampa Bay Rowdies, entre 1986 e 1987, quando enfim encerrou a carreira que ainda tinha nos campos. Fora deles, a coisa só se estabilizou um pouco quando o ex-jogador norte-americano Bobby McLinden, ex-colega dos tempos de Los Angeles Aztecs, indicou a Suurbier um curso para trabalhar como garçom. A então namorada o pagou, ele conseguiu bons resultados, um emprego... e aí ele começou a recolocar a vida em ordem. 

Pouco depois, voltou à Holanda. Ainda teve algumas passagens em comissões técnicas, principalmente em equipes amadoras dos Estados Unidos. Mas no retorno ao país natal, pôde ficar mais sossegado, sendo sempre consultado pela imprensa e convidado para eventos no Ajax que tanto defendeu. Seguiu aberto a experiências curiosas - como ser auxiliar técnico do Kerala Blasters, da Índia, em 2017. E seguiu rememorando a vida intensa que teve, até este domingo. E uma frase dita em 1985 à Voetbal International simboliza bem a postura que Wim Suurbier teve: "Pelo senso de humor que tenho, não ligo por ter problemas. A vida pode estar uma porcaria, mas eu posso olhar nos olhos de qualquer um, de cabeça erguida". Pelo que jogou em campo e viveu fora dele, sem dúvida.

Wilhelmus "Wim" Lourens Johannes Suurbier
Data de nascimento: 16 de janeiro de 1945, em Eindhoven
Data de morte: 12 de julho de 2020, em Amsterdã
Clubes: Ajax (1964 a 1977), Schalke 04-ALE  (1977 e 1978), Metz-FRA (1978 e 1979), Los Angeles Aztecs-EUA (1979 a 1981), Sparta Rotterdam (1981), Tung Sing-HKG (1982), San Jose Earthquakes-EUA (1982), Golden Bay Earthquakes-EUA (1982 e 1983), Tulsa Roughnecks (1984), Houston Dynamos-EUA (1985), Tampa Bay Rowdies-EUA (1986-1987)
Seleção: 60 jogos e 3 gols, entre 1966 e 1978

Nenhum comentário:

Postar um comentário