segunda-feira, 13 de março de 2023

Grandes laranjas: Davids

O fôlego inesgotável na marcação, o auxílio ao ataque, a imagem reconhecível de longe: Edgar Davids era um símbolo do futebol da Holanda (e europeu) de sua geração (Shaun Botterill/Allsport)
 
8 de junho de 2022. Em Cardiff, as seleções masculinas de Holanda (Países Baixos) e País de Gales se enfrentavam, pela segunda rodada da Liga das Nações. Ainda no início da transmissão do SporTV 3 para aquela partida que a Laranja venceria (2 a 1), Edgar Davids foi focado no banco, ao lado do técnico Louis van Gaal, a quem auxiliava. Comentarista da transmissão, Richarlyson reconheceu: "Confesso pra você [Odinei Ribeiro, o narrador da transmissão] que eu era um cara que me inspirava no Davids. Um dos melhores meio-campistas na época dele. Era um cara fora-de-série, com uma intensidade de jogo e uma leitura de jogo grandíssima. Extraordinário jogador. Era um cara que, às vezes, eu olhava e falava 'poxa, esse sim'."
 
Elogios tão abertos de Richarlyson, um dos volantes vitoriosos de sua geração no futebol brasileiro (destaque para os títulos em São Paulo e Atlético Mineiro), são uma relativa comprovação de que Davids foi um nome marcante da posição em sua geração. E foi mesmo, em todo o planeta: entre os anos 1990 e 2000, ele foi dos raros nomes a unir qualidade na saída de bola à combatividade na marcação, no futebol mundial. Além do mais, tinha uma imagem e um comportamento altamente carismáticos. O "Pitbull" virou, e ainda é, nome importante no futebol holandês - ainda mais nesta data, em que completa 50 anos de idade. 
 
Combatividade desde o começo
 
Mais do que ter ascendência do Suriname (como tantos jogadores holandeses, antes e depois dele), Davids nasceu no país da América do Sul - "futebolisticamente" da América Central: ele veio ao mundo em Paramaribo, a capital surinamesa, quando a nação ainda era colônia da Holanda, dois anos antes de obter sua independência. Mesmo sendo futebolisticamente "holandês", Davids mantém até hoje sólidos vínculos com o Suriname: por várias vezes, já fez parte dos amistosos beneficentes dos "Suriprofs", combinado de jogadores holandeses com ascendência no país que se reúnem de vez em quando.
 
Ainda na infância, a família migrou para Amsterdã. E nela, Davids teve uma infância de dificuldades. Não exatamente de miséria, mas de dureza. Só o futebol era uma fonte de diversão - ou nem tanto: Davids ficou conhecido por ser temperamental, desde os primeiros bate-bolas de que participava, nas redondezas de sua casa, ao lado do irmão. É possível até dizer que a necessidade de se virar naquelas partidas de rua foram fundamentais para o jogador que seria, dentro e fora de campo. Numa expressão: as peladas "formaram o caráter" de Davids. Até hoje ele as valoriza - o futebol de rua voltará a ser assunto no fim deste texto.

Davids demorou para ser aprovado no Ajax. Mas quando foi, se tornou fundamental para Louis van Gaal desde jovem (VI Images/Getty Images)
 
Não fosse assim, e talvez Davids fracassasse na primeira dificuldade que teve com a bola nos pés. Já no ASV Schellingwoude, clube amador de Amsterdã em que passou a praticar o futebol em meados da infância, o jovem tentou a sorte pela primeira vez na categoria de base do Ajax. Fracassou. Tentou de novo. Nova decepção. Só em 1985, na terceira tentativa, deu certo. A partir dali, a carreira - e a vida - de Davids mudavam. Passaria o resto da adolescência forjando seu estilo em De Toekomst ("O Futuro", em holandês). Na virada para a década de 1990, ele começou a ser acompanhado de perto pelo auxiliar técnico do Ajax na época. Era... Louis van Gaal, talvez a figura mais decisiva na carreira do jogador. Tanto que, tão logo virou técnico do Ajax, em 1991, Van Gaal levou Davids para o grupo principal da equipe de Amsterdã. 
 
E ele seria um dos primeiros nomes de uma geração altamente promissora a ter chances em campo: sua primeira partida pelo Ajax foi em 8 de setembro de 1991, como titular na goleada por 5 a 1 sobre o RKC Waalwijk, pela quarta rodada do Campeonato Holandês (por sinal, última partida do Ajax sob o comando de Leo Beenhakker). Em 30 de outubro de 1991, o primeiro gol pelo clube, marcando nos 3 a 0 sobre o Willem II, também pela Eredivisie. Edgar Davids só tinha 18 anos. Mas o jovem seria um pioneiro, não uma aposta precoce.
 
Imposição precoce. Confusões também

Davids ainda passaria a temporada 1991/92 frequentemente no banco de reservas. Nele, porém, já faria parte do grupo campeão da Copa da UEFA (em cuja campanha foi titular em três partidas). E foi na temporada 1992/93 que ele virou peça-chave para o Ajax que Louis van Gaal pensava: Davids já se tornou preferencialmente o titular no meio-campo, tanto no Campeonato Holandês, quanto na Copa da UEFA, quanto no primeiro título de sua carreira, a Copa da Holanda daquela temporada. Mais importante: seu esforço na marcação e sua velocidade para iniciar os ataques já tinham tanta qualidade, eram tão intensos, que ali Van Gaal lhe deu, numa entrevista coletiva, o apelido para sempre ligado a ele: "Pitbull" (curiosidade: antes, ainda, um técnico na base do Ajax o apelidou de "Piranha", exatamente por "morder" o jogador adversário na marcação).

A postura desafiadora e esforçada de Davids tiveram, enfim, a explosão nos dois anos seguintes. Ele começou sendo figura preponderante no título holandês do Ajax, em 1993/94. Ainda antes da Copa de 1994, em 20 de abril daquele ano, veio a primeira partida pela seleção principal da Holanda: Davids estreou pela Laranja como titular num amistoso contra a Irlanda - que o venceu: 1 a 0. Já após a Copa, Davids teve o grande reconhecimento. Cercado de vários colegas de geração (Edwin van der Sar, Michael Reiziger, Clarence Seedorf - como esquecer a parceria no meio-campo? -, Ronald de Boer), tendo a liderança de Frank Rijkaard, o jovem volante foi um dos símbolos do fulgurante Ajax campeão holandês invicto e, principalmente, campeão europeu. Por sinal, Davids quase perdeu a final da Liga dos Campeões, contra o Milan. A razão? Uma operação no olho esquerdo, já sinalizando os problemas que seriam conhecidos dali a quatro anos.

Àquela altura, sua personalidade já era notável, para alguém tão jovem. O que deu margem a algumas histórias. Uma delas: dividindo o fisioterapeuta pessoal com o tenista Richard Krajicek, também holandês, certa vez Davids encontrou Krajicek. Teria falado a ele: "Oi, eu sou Edgar Davids. Logo você vai ouvir falar de mim". Anos depois, em entrevista à revista Four Four Two, Davids minimizou sem desmentir: "[A história] não foi totalmente verdadeira, mas naquele tempo, poderia ter sido. Eu era jovem, não tinha freio".

Imponência dentro de campo, insolência fora dele: mesmo jovem, Davids já era destaque absoluto do Ajax campeão europeu em 1995 (Alain Gadoffre/Onze/Icon Sport/Getty Images)

Contudo, o brilho de 1995 foi minorado nos anos seguintes. Davids seguiu no Ajax, e teve até mais liberdade ofensiva para se destacar no tricampeonato neerlandês: fez sete gols em 28 jogos, mostrando mais uma qualidade: os chutes de fora da área. Também seguiu titular absoluto, na campanha que levou os Godenzonen novamente à final da Liga dos Campeões. Contudo, justamente na final, cometeu um erro prejudicial: após 1 a 1 contra a Juventus em 120 minutos, Davids perdeu uma das cobranças, na decisão por pênaltis em que a Juve conquistou a taça (4 a 2 nos chutes). 

Coisa pior ainda ocorreria na Euro 1996, seu primeiro grande torneio defendendo a Holanda. Até surpreendentemente, Davids começou a Euro jogando mal. Na estreia da Laranja (0 a 0 contra a Escócia), foi discreto; na vitória por 2 a 0 sobre a Suíça, só entrou nos últimos dez minutos de jogo, substituindo Ronald de Boer. Naquela partida, enquanto estava no banco, conversou aqui e ali com o colega de time e seleção Clarence Seedorf. Entre as palavras, algumas reclamações mal disfarçadas ao técnico Guus Hiddink. 
 
Se eram mal disfarçadas, ficaram abertas de vez na zona mista pós-jogo. Davids falou sem rodeios a um jornalista alemão: "Ele [Hiddink] deveria parar de lamber o saco dos jogadores brancos, para ver melhor o time". Mark van den Heuvel, da NOS (emissora holandesa de tevê), ouviu e quis mais clareza, perguntando: "A quem você se refere?". Davids confirmou: "Ao técnico". A NOS divulgou as palavras - e no dia seguinte, Davids estava cortado da Euro por Hiddink. Crise aberta na Holanda durante aquela Euro, em críticas que misturaram questões financeiras, racismo, discordâncias trazidas dos jogadores do Ajax para a seleção... e Davids foi o bode expiatório de tudo. A polêmica passou, mas ainda hoje, quase trinta anos depois daquelas turbulências na Inglaterra, ele se nega a comentar o assunto.

As críticas de Davids a Guus Hiddink abriram uma tremenda crise na Holanda durante a Euro 1996 - e viraram assunto proibido com o ex-jogador (Arquivo ANP)

A má fase seguiria para o começo da temporada 1996/97. Na seleção, ele continuaria pagando pelas palavras na Euro: Guus Hiddink deixaria Davids longe das convocações durante o resto de 1996 - e todo o ano de 1997. Em clubes, contrato expirado com o Ajax, Davids preferiu o passo maior à que já fazia jus: foi para o Milan, junto do compatriota e colega Michael Reiziger. Porém, em meio a uma péssima temporada rubro-negra milanista (11º lugar naquele Campeonato Italiano), ele teve o azar de uma fratura na perna, sofrida na derrota por 1 a 0 para o Perugia, em 11 de fevereiro de 1997. Ela praticamente pôs fim precoce a qualquer perspectiva de sucesso que o holandês pudesse ter em Milanello: quando voltou, já com a temporada 1997/98 em andamento, fez só quatro jogos. 

Tanto que o Milan nem se esforçou para mantê-lo, diante do interesse da Juventus, que o contratou ainda com a temporada em andamento: em dezembro de 1997, Davids já se foi para Turim, por seis milhões de liras italianas. Até ali, conforme falou à Four Four Two, sua passagem pela Itália só trazia experiências péssimas: "Foi uma das piores épocas que eu já tive. Você não fala bem a língua; você está sentado em casa, vendo tevê, mas não consegue entender de verdade. Nas primeiras semanas, você nem pode mexer a perna, porque tem medo da trombose. Foi duro".

Mas depois da tempestade, veio a bonança.

Volta o brilho, chegam os óculos

Ao chegar à Juventus, Davids já recebeu respaldo imediato de Marcello Lippi, técnico do clube alvinegro do Piemonte. Começou 1998 como titular juventino - e ainda teve tempo de colaborar na conquista do Campeonato Italiano da temporada 1997/98, com 20 jogos e um gol pela Juve. Naquele primeiro semestre, ainda, participou em cinco jogos da campanha do vice-campeonato bianconero na Liga dos Campeões. Novamente em forma, com ritmo de jogo, Davids retomou rapidamente as características que o fizeram badalado: esforço incansável na marcação, ajuda na origem dos ataques, um chute de longe que virava gol vez por outra. Mais uma vez, seu jeito de jogar rendeu criatividade nos apelidos: Marcello Lippi descreveu Davids como "uma casa de máquinas num homem só".

Na Juventus, recuperado da fratura na perna e respaldado pelo técnico Marcello Lippi, Davids voltou aos bons tempos (Mark Leech/Offside/Getty Images)

Retomada a boa fase no clube, o caminho na seleção também foi reaberto. Ânimos serenados após os problemas da Euro 1996, Davids e Guus Hiddink tiveram uma conversa pessoal, em fevereiro de 1998. Mesmo sem reclamar da ausência durante as eliminatórias da Copa de 1998, o volante queria defender a Holanda na França. O técnico só desejava expor que, desde os problemas no torneio continental, fora instituída uma cartilha de comportamento para quem jogasse pela Laranja. Davids leu o documento, e aceitou: "Tudo bem, na Juventus também fazem isso". O volante foi convocado para a Copa do Mundo. Em 27 de maio de 1998, quase dois anos depois, recomeçou seu caminho pela Holanda, jogando no 0 a 0 contra Camarões, em amistoso. 

Era só o começo de grandes dias: Davids esteve no seu melhor durante o Mundial. Com a conhecida e inesgotável marcação aos adversários, aliada às ajudas periódicas ao ataque, foi dos melhores meio-campistas do torneio. E foi destaque em dois momentos. Estes, simbólicos de seu talento. Na frente, foi dele o gol decisivo da vitória por 2 a 1 contra a Iugoslávia, nas oitavas de final, no último minuto do tempo normal; atrás, na semifinal contra o Brasil, foi responsável por desarmes incríveis, como numa chance que Ronaldo perdeu cara a cara com o goleiro Edwin van der Sar. Se havia alguma dúvida sobre como Edgar Davids podia ser importante para a seleção da Holanda, ela se acabou na Copa de 1998. Até porque ele foi incluído na "seleção oficial" da competição

(O gol de Edgar Davids em Holanda 2x1 Iugoslávia, oitavas de final da Copa de 1998, na transmissão da TV Bandeirantes, com a narração de Luciano do Valle)

Em 1999, a boa fase de Davids seguiu, tanto na Juventus quanto na seleção. E pela Holanda ele apresentou um símbolo disso naquele ano - e um símbolo que passou a ser inseparável de sua imagem. Com a Laranja automaticamente classificada para a Euro 2000 - afinal, os Países Baixos sediariam o torneio em parceria com a Bélgica -, ela passou os dois anos anteriores jogando amistosos. E contra os belgas, rivais históricos, um amistoso inesquecível em Roterdã: 5 a 5, com dois gols de Davids. Foi nesse jogo, em 4 de setembro de 1999, que começou a ser conhecido mundialmente o principal item ligado ao visual do volante. 
 
Pela mesma época, o volante soube que tinha um glaucoma (doença ótica). Reconheceu o medo, à Four Four Two: "Foi um duro golpe. Eu me preocupei, e realmente achei que ia precisar parar de jogar. Mas aí, soube que havia uma opção: usar óculos". E foi com um modelo especialmente pronto para esportes - usando ainda um colírio especial, permitido excepcionalmente pela FIFA (o colírio seria flagrado em exames antidoping) - que o volante passou a entrar em campo, se tornando figura ainda mais facilmente reconhecível do que já era. Porém, também teve de aguentar algumas gozações. Consta que, certa vez, gozado por Jaap Stam, Davids falou coisas impublicáveis para retrucar.

Desde 1999, os óculos passaram a ser item indissociável do visual de Edgar Davids (Marcus Brandt/Bongarts/Getty Images)
 
Com ou sem óculos, Davids começou a década consolidado como um dos melhores meio-campistas do mundo naquela época. Na Euro 2000, nem mesmo a pesada decepção da eliminação da Holanda em casa - nas semifinais, para a Itália, nos pênaltis - fez com que se esquecessem dele: mais uma "seleção do torneio" tinha a presença do homem dos dreadlocks e dos óculos. Na Juventus, se Zinedine Zidane foi a garantia da técnica (até 2001, com a histórica transferência para o Real Madrid), Davids seguia sendo nome infatigável na perseguição aos adversários, sem deixar de qualificar o toque de bola. De certa forma, era assim na seleção da Holanda também. 
 
Porém, uma punição em 2001 cortou um pouco do embalo que ele vivia. Davids foi flagrado no exame antidoping, após um jogo contra a Udinese, pelo Campeonato Italiano, em março daquele ano. A substância: nandrolona. Com a contraprova também positiva, o jogador foi suspenso pela FIFA. Azar da seleção da Holanda: a ausência de Davids foi muito sentida, na campanha turbulenta pelas eliminatórias da Copa de 2002, terminada afinal com o fracasso da ausência no torneio. Um dos símbolos daquele fracasso, aliás, foi Davids assistindo, impotente, na tribuna do estádio Lansdowne Road, à derrota decisiva da Laranja para a Irlanda, em 1º de setembro de 2001, na qualificação.
 
Pelo menos, quando retornou da punição, Davids seguiu firme na Juve e na seleção. Pelo menos no clube, teria os dividendos: foi titular no bicampeonato italiano (2001/02 e 2002/03). Além do mais, também esteve na campanha que levou os Bianconeri à final da Liga dos Campeões, em 2002/03. Só lamentou a derrota na final, nos pênaltis, para o Milan. Por sinal, uma curiosidade: nas duas finais de Champions em que esteve, Davids perdeu para uma equipe em que jogava seu velho conhecido Clarence Seedorf. Perguntado pela Four Four Two se Seedorf já havia notado isso (e se o provocava), Davids cresceu a voz, como sempre: "Se ele me conhecesse, não falaria nada sobre isso. E ele me conhece...".
 
Davids ficou pouco e jogou muito no Barcelona: nos seis meses pelo clube, foi jogador fundamental para ajudar na reação pelo Campeonato Espanhol em 2003/04 (FiroFoto/Getty Images)

Até mesmo ao perder espaço na Juve, Davids "caiu para cima". Pelo menos, no começo. Na temporada 2003/04, ele começou com apenas cinco jogos pelo time no Campeonato Italiano. Na maioria das partidas, ficou no banco - curiosamente, colocado pelo mesmo Marcello Lippi que o prestigiara tanto na chegada a Turim. Era hora de mudar de ares. Ele mudou, em janeiro de 2004, emprestado para o Barcelona - a pedidos de um velho conhecido: Frank Rijkaard, já treinando os Culés. Pois foi figura fundamental na reabilitação que o clube da Catalunha vivia, dentro e fora de campo. Se Ronaldinho Gaúcho, vindo antes da temporada, já chamava a atenção pelo nível de suas atuações, Davids auxiliou na reta final do Campeonato Espanhol, com o fôlego inesgotável de sempre. Com 18 jogos e um gol, foi absoluto na reação barcelonista, que conduziu o time ao vice-campeonato espanhol. Com isso, claro, Davids manteve firme seu lugar na seleção holandesa: foi titular na Euro 2004, justamente num torneio em que a maioria dos veteranos dos anos 1990 começaram a perder seus lugares na Laranja.

Logo aconteceria com ele.

O fim, aos poucos
 
Mesmo com o sucesso no Barcelona, Davids teve problemas com a direção do clube para negociar a transferência em definitivo. Até porque já tinha outra proposta, da Internazionale - e foi esta que ele preferiu, indo para o clube azul-e-negro de Milão em meados de 2004, logo após a Euro. Sendo um dos raros jogadores a ter atuado nos três maiores clubes italianos, ainda mantendo bom nível de atuação, o meio-campo prometia manter muito espaço. Até porque, tão logo Marco van Basten assumiu o comando da seleção da Holanda, pela mesma época, fez de Davids seu capitão. Poderia dar muito certo. Deu errado. 
 
Davids causou expectativa em sua chegada à Internazionale. Mas decaiu no clube, física e tecnicamente. Perdeu espaço em definitivo na seleção. Era o começo do fim (Paco Serinelli/AFP/Getty Images)
 
Na Inter, Davids começou a jogar menos, em quantidade e em qualidade - e teve o caminho ainda mais dificultado por discordâncias táticas com Roberto Mancini, técnico interista à época. Houve um título na temporada 2004/05, é verdade - a Copa da Itália. Porém, a passagem foi tão malograda que o holandês se dizia "separado, vivendo na mesma casa", nos últimos meses da temporada. E a Inter, que o trouxera num contrato de três anos, preferiu rescindir o contrato já em 2005. Pior: com a queda técnica, Davids perdeu não só a capitania, mas a titularidade na Holanda. Ficou até distante das convocações. Até voltou a elas em outubro, na reta final das eliminatórias da Copa de 2006. Mas já tinha perdido o espaço. Sem garantias de que seria titular, nunca mais voltou a defender a Holanda depois de 12 de outubro de 2005, num 0 a 0 contra a Macedônia, pela qualificação para o Mundial. Fim de uma era.

Pelo menos, àquela altura, Davids já encontrara um ambiente melhor para si. Logo após a rescisão com a Internazionale, acertou a transferência para o Tottenham - também a pedido de um técnico holandês, Martin Jol. Em 2005/06, novo sucesso: caiu nas graças da torcida dos Spurs, voltou a ter ritmo de jogo (31 jogos e um gol na Premier League daquela temporada), viveu o último bom momento de sua carreira. Só que, na temporada seguinte, voltou a sofrer com lesões. Fez apenas nove partidas. E só então, aceitou o retorno que já fora tentado em meados de 2006: no fim de janeiro de 2007, Davids acertou a volta ao Ajax.

Claro, no time que conhecia tão bem, Davids começou absoluto. Foi titular na reta final da Eredivisie 2006/07, e ajudou bastante na conquista da Copa da Holanda, vencida sobre o AZ, nos pênaltis. Contudo, uma fratura na perna sofrida em julho de 2007, num amistoso de pré-temporada contra o Go Ahead Eagles, atrapalhou sua segunda passagem pelo clube. Davids voltou, até foi titular na reta final da temporada 2007/08, mas seu contrato com o Ajax não foi renovado.

E a partir de então, mesmo sem anunciar o fim da carreira, Davids foi mais falado por tentativas e por ações fora de campo. Nas tentativas, chegou a negociar com o Vitesse (que não poderia pagar o que pedia), e retornou aos campos entre agosto e setembro de 2010, fazendo sete jogos pelo Crystal Palace, então, na segunda divisão inglesa. Fora de campo, envolveu-se muito em projetos com o futebol de rua - incluindo até visita ao Brasil, em 2009 (num bate-bola no Rio de Janeiro, inclusive, teve até uma rápida briga típica das peladas). Chegou a ser nomeado para o Conselho Deliberativo do Ajax, em 2011 - logo saiu, após discordâncias.
 
A última experiência jogando (e treinando), no Barnet-ING, após alguns anos inativos
 
A experiência mais falada de Davids, porém, viria depois. Em outubro de 2012, vivendo na Inglaterra, ele decidiu se juntar ao Barnet, da quarta divisão do país, reativando a carreira no papel de "jogador-treinador", com Mark Robson sendo outro técnico. Até dezembro, quando Mark foi demitido - e, aí, sim, Davids viveu a experiência como técnico único. O Barnet acabou caindo para a Conference Premier (quinta divisão), mas o holandês seguiu como técnico para a temporada 2013/14, na qual jogou com a camisa 1, esperando "iniciar uma tendência" para os meio-campistas. Na temporada, mais problemas: Davids levou cartão amarelo em todos os oito primeiro jogos da Conference Premier, foi expulso em três deles... e por fim, decidiu se demitir em janeiro de 2014. Aí, sim, foi o fim da carreira como jogador.

E demorou para Davids voltar institucionalmente ao futebol - embora sua presença fosse certa aqui e ali, em projetos de futebol de rua ou mesmo em jogos beneficentes. Isso só aconteceu em 2020, quando ele voltou a uma comissão técnica, auxiliando Andries Jonker, então técnico do Telstar (segunda divisão holandesa). No primeiro semestre de 2021, Davids voltou a treinar uma equipe: o Olhanense, de Portugal, entre janeiro e julho daquele ano. 
 
Até que Louis van Gaal, de volta à seleção masculina da Holanda para treiná-la rumo à Copa de 2022, precisou de um auxiliar bem visto pelos jogadores para suceder Henk Fräser, que fora treinar o Utrecht. Quem ele escolheu, em junho passado? Ele mesmo: Edgar Davids, antes seu pupilo, agora seu colega. Davids cumpriu bem a função: ajudou a manter o bom clima na Holanda que chegou às quartas de final do Mundial. E confirmando que não foge de uma boa briga, se envolveu ativamente nas discussões com jogadores argentinos, durante as quartas de final da eliminação da Laranja no Catar.

Foi a experiência mais recente. Virão outras. E serão comentadas. Afinal, com a imagem e o temperamento inconfundíveis, Edgar Davids não sumirá tão facilmente da memória.

(Pablo Morano/BSR Agency/Getty Images)

Edgar Steven Davids
Data de nascimento: 13 de março de 1973, em Paramaribo (Suriname)
Clubes: Ajax (1991 a 1996 e 2007 a 2008), Milan-ITA (1996 a 1997), Juventus-ITA (1997 a 2004), Barcelona-ESP (empréstimo, entre 2003 e 2004), Internazionale-ITA (2004 a 2005), Tottenham Hotspur-ING (2005 a 2007), Crystal Palace-ING (2010) e Barnet-ING (2012 a 2014)
Seleção: 74 jogos e 6 gols, entre 1994 e 2005

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