segunda-feira, 15 de maio de 2023

A análise do campeão: inteligência pura

O Feyenoord começou a temporada 2022/23 pensando se as saídas afetariam. Na base da inteligência, essas saídas foram compensadas. E nada simboliza mais isso do que o título (Peter Lous/BSR Agency/Getty Images)

Domingo, 14 de maio de 2023, De Kuip, Roterdã. O Feyenoord já tinha 3 a 0 no placar contra o Go Ahead Eagles. Já começava a festa pelo 16º título do Campeonato Holandês que viria para o Stadionclub, como de fato veio. A certa altura, as imagens focaram um homem. É o dinamarquês Frank Arnesen, ex-diretor de futebol do clube de Roterdã. Arnesen deixou o clube no meio da temporada, por razões de saúde. Pois é o símbolo da inteligência que dominou todo o caminho do Feyenoord, mesmo depois de sua saída, pavimentando um título muito merecido, ganho até com mais autoridade do que o anterior, em 2016/17.

E talvez nenhum outro ponto do caminho do Feyenoord nesta Eredivisie ganha simbolize tanto a inteligência quanto o mercado de transferências, antes da temporada começar. Como sói acontecer com clubes dos Países Baixos, as saídas eram bem mais simbólicas do que as chegadas. Só que algumas eram contrabalançadas. Que o diga o Ajax, que vinha de três títulos: perdeu o técnico Erik ten Hag, perdeu vários nomes fundamentais das temporadas recentes (Noussair Mazraoui, Lisandro Martínez, Nicolás Tagliafico, Ryan Gravenberch, Antony). O arquirrival de Amsterdã estava fragilizado, como poucas vezes nos anos recentes. Mas, por outro lado, teve dinheiro à farta para remontar a equipe - só os 100 milhões de euros recebidos do Manchester United por Antony, recorde absoluto na história do futebol holandês, já eliminavam esse problema. E o Ajax comprou: Calvin Bassey, Owen Wijndal, Steven Bergwijn, Brian Brobbey (já emprestado, voltou em definitivo). O PSV, além de manter Cody Gakpo momentaneamente, ainda ostentou com uma contratação ambiciosa, Xavi Simons.

Frank Arnesen sedimentou as bases da mudança do Feyenoord, organizando o método de contratações (Pieter Stam de Jonge/ANP/Getty Images)

E o Feyenoord? Após o fim honroso da temporada passada, com o terceiro lugar na liga e o vice-campeonato na Conference League, também foi "depenado" pelo mercado. É certo que algumas saídas foram de veteranos que desejavam outras experiências - como Bryan Linssen, atacante útil, que foi passar um tempo no Japão, e de Jens Toornstra, meio-campo querido da torcida, mas que já perdia espaço e preferiu voltar ao Utrecht. Mas praticamente todos os destaques de 2021/22 deixaram o Stadionclub. O zagueiro Marcos Senesi? Partiu para o Bournemouth, em saída até esperada. Tyrell Malacia? O lateral esquerdo ia para o Lyon, mas o Manchester United o levou por mais dinheiro na última hora. Fredrik Aursnes? O meio-campo norueguês tomou o rumo do Benfica. Guus Til? Esta doeu um pouco: emprestado pelo Freiburg-ALE, o meia saiu indicando que poderia voltar após negociações... e voltou mesmo - voltou à Holanda, para o PSV. Reiss Nelson? Após meio ano em Roterdã, por empréstimo, também retornou ao Arsenal. Cyriel Dessers? O belga, goleador da Conference League, sequer pôde ser comprado do Racing Genk-BEL (mesmo com "vaquinha virtual" da torcida), e o clube belga o revendeu à Cremonese-ITA. Luis Sinisterra? O ponta colombiano rumou para o Leeds United.

Aí entrou a inteligência. Mesmo já próximo de deixar o Feyenoord, Frank Arnesen já conseguira fazer o clube assimilar seu método preferencial de contratações: baixo custo, observação alta. E assim o clube conseguiu trazer nomes de qualidade parecida àqueles que saíram (embora ninguém soubesse disso quando a temporada começava, claro). Senesi saiu? Pois bem, chegou o eslovaco Dávid Hancko, elogiado no Slavia Praga. Malacia estava fora? A lateral esquerda seria disputada por um reforço, o peruano Marcos López, e por Quilindschy Hartman, revelação da base frutífera do centro de treinamentos de Varkenoord. Aursnes e Til desfalcariam o meio-campo pesadamente? Pois o Feyenoord buscou Mats Wieffer no Excelsior, recém-promovido à Eredivisie, e ainda aproveitou a facilidade de negociação com clubes russos pela guerra contra a Ucrânia para trazer, por empréstimo, o polonês Sebastian Szymanski. No ataque, se Cyriel Dessers faltaria, o esforço a mais para "cavar" o cofre foi fundamental para trazer o mexicano Santiago "Bebote" Giménez - embora o mais badalado, àquela altura, fosse o brasileiro Danilo, vindo do arquirrival Ajax após fim de contrato. E tanto Javairô Dilrosun quanto Oussama Idrissi eram opções válidas para o lugar de Sinisterra, e vieram antes mesmo de Igor Paixão, que chegou já na reta final de agosto, mais como aposta.

A competência para remontar rapidamente o Feyenoord fez de Arne Slot um técnico definitivamente respeitado na Holanda (Dennis Bresser/Soccrates/Getty Images)

Paralelamente aos novos reforços, havia uma base já estabelecida. Com Justin Bijlow, Lutsharel Geertruida, Gernot Trauner, Orkun Kökcü. E havia Arne Slot, técnico mais e mais estabelecido e respeitado na nova geração de treinadores holandeses. Porém (ai, porém), as saídas eram em tal volume que o Feyenoord começou a temporada com uma pergunta a lhe simbolizar: seria possível uma temporada tão elogiável quanto a passada? O clube perderia tempo no começo do Campeonato Holandês? Nem perdeu tanto - foram quatro vitórias e um empate nas primeiras cinco rodadas. Mas a estreia na Liga Europa acendeu o alerta: derrota por 4 a 2 para a Lazio-ITA, com um começo péssimo da defesa. Para piorar, quase simultaneamente, no começo de setembro de 2022, Frank Arnesen, já licenciado da diretoria de futebol, anunciou a saída definitiva.

Só que algo já era notável: o Feyenoord podia até perder, mas não lhe faltaria esforço. Isso começou a ser provado nos 4 a 3 sobre o Go Ahead Eagles (5ª rodada), quando o time chegou a tomar 2 a 0 fora de casa antes de virar. O esforço foi exibido até na sua única (por ora) derrota pelo Campeonato Holandês na temporada: no 4 a 3 sofrido para o PSV no clássico - 7ª rodada -, o time de Roterdã saiu na frente, Orkun Kökcü teve ótima atuação, os anfitriões sofreram demais para vencerem o emocionante clássico em Eindhoven. Melhor ainda era a sensação de que, aos poucos, Arne Slot achava o time, achava a melhor formação. Hancko se entrosava cada vez mais com Trauner, minimizando a falta que Senesi poderia fazer na zaga; o trio Wieffer-Szymanski-Kökcü já se encaixava no meio (Wieffer comandando a saída de bola, Kökcü sendo um "motorzinho", Szymanski chegando ao ataque). E aos poucos, "Bebote" Giménez ganhava a posição de Danilo no ataque. Até fora de campo o Feyenoord superava as turbulências: o diretor esportivo, Dennis te Kloese, assumia o comando do futebol sem alterar os preceitos deixados por Frank Arnesen.

Orkun Kökcü deixou de ser apenas um bom armador: incansável na ajuda à marcação, hábil na criação, perigoso nos chutes de fora, o turco mereceu ser o líder do Feyenoord em campo (Pim Waslander/Soccrates/Getty Images)

Em outubro, duas vitórias dignas de nota no Campeonato Holandês, contra adversários difíceis (2 a 0 no Twente, na 9ª rodada, e 3 a 1 no AZ, fora de casa, na 10ª rodada). Em novembro, a primeira impressão de que o Feyenoord embalara. Primeiro na Liga Europa: num grupo equilibrado, o clube poderia ter até sido eliminado, mas se superou contra a Lazio, na última rodada do grupo F, se valendo do ambiente fervilhante de De Kuip e de um gol de Giménez para vitória emocionante (1 a 0), que rendeu a primeira posição e a classificação direta às oitavas de final. Depois, na Eredivisie: antes da pausa para a Copa, em novembro, três vitórias seguidas. Na 14ª rodada, a última de 2022, com o Ajax empatando (3 a 3 com o Emmen) e o PSV perdendo (AZ 1 a 0), o Feyenoord conseguiu a liderança ao golear o Excelsior (5 a 1). Era um bom sinal.

Santiago "Bebote" Giménez começou a temporada na reserva de Danilo. Termina, talvez, como o melhor jogador do campeonato ( NESimages/Geert van Erven/DeFodi Images/Getty Images)

A Copa passou, 2023 começou, a Eredivisie retornou (tendo um empate no Klassieker contra o Ajax - 1 a 1, na 17ª rodada, no primeiro gol de Igor Paixão pelo clube, marcando reação do atacante após dificuldades de adaptação), e a hora foi da equipe de Roterdã "maltratar" o coração da torcida. Pelo menos, quase sempre o final foi feliz. Porque a sequência de gols decisivos em minutos finais foi impressionante. Senão, veja-se. Na 20ª rodada, em 5 de fevereiro, no clássico contra o PSV, os rivais de Eindhoven abriram 2 a 0 em pleno De Kuip, mas o Stadionclub buscou o 2 a 2 no "abafa" (Alireza Jahanbakhsh fez dois gols, o último aos 90' + 6). Na 22ª rodada, contra o AZ, mesmo em casa, o time saiu atrás, empatou, e só um gol de Marcus Pedersen, aos 90', decretou o 2 a 1. Contra o Groningen, na 24ª rodada, o 1 a 0 da vitória foi feito por Idrissi aos 88'. Na rodada seguinte, contra o Volendam, outra vez o time saiu atrás - e outra vez virou só na etapa final, se bem que o gol do 2 a 1 demorou menos, vindo aos 74'. A tendência de gols "agônicos" vinha na Copa da Holanda (impressionante 4 a 4 com o NEC, com 5 a 3 nos pênaltis, nas oitavas de final) e até na Liga Europa - certo, o Shakhtar Donetsk-UCR foi despachado com 7 a 1 na volta, também nas oitavas, mas na ida fizera 1 a 0 e só um gol do argentino Ezequiel Bullaude aos 88' garantiu o empate útil.

Mas a certeza, tão serena quanto alegre, de que nesta temporada o Feyenoord estava pronto veio em 19 de março de 2023, na 26ª rodada. Era um desafio: vencer o arquirrival Ajax, na Johan Cruyff Arena, pelo Campeonato Holandês, o que não ocorria desde agosto de 2005. Naquele dia, o Feyenoord orgulhou sua torcida. Abriu o placar rapidamente com "Bebote" Giménez, tomou a virada ainda no primeiro tempo, mas não deixou de atacar. Empatou já na etapa final, com Szymanski. Se o time se impunha na frente, o goleiro Timon Wellenreuther (substituindo Justin Bijlow, novamente lesionado no pé) fazia ótimas defesas. Uma delas, num chute de Mohammed Kudus à queima-roupa, veio pouco antes do gol do desafogo. Nos minutos finais, como a torcida se acostumou: aos 86', escanteio, Hancko desviou, e Geertruida completou para o histórico 3 a 2. O Feyenoord voltava a vencer um Klassieker pela Eredivisie na casa do adversário mais detestado. E aqui, o clichê cabe: a comemoração dos Feyenoorders ao fim do jogo parecia de título. Porque não deixava de ser, um pouco: a vantagem se ampliava para seis pontos na liderança do Holandês.


Nem mesmo a queda na Liga Europa (nas quartas de final, para a Roma, algoz da Conference League, quando a classificação chegou a parecer possível antes que um gol de Paulo Dybala arruinasse tudo na reta final da volta) perturbou a alegria e a segurança que o Feyenoord ostentou na liga nacional. Na 27ª rodada, o que poderia ter sido difícil contra o Sparta Rotterdam, no clássico citadino, foi salvo por Wellenreuther, que pegou pênalti quando o jogo estava em 1 a 1, e por Giménez, que recolocou o time na frente - depois, Dávid Hancko ainda fez 3 a 1. E nem a queda para o arquirrival, na turbulenta semifinal da Copa da Holanda, abalou a firmeza ostentada na Eredivisie: desde aquele histórico 3 a 2 no Ajax, o caminho foi de vitórias. Até o consagrador 3 a 0 no Go Ahead Eagles, nesta 32ª rodada, confirmando o 16º título holandês. Conquistado na base da inteligência de tanta gente: Frank Arnesen para contratar, Arne Slot para treinar, Orkun Kökcü para capitanear, Santiago Giménez para marcar gols...

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