sábado, 30 de dezembro de 2023

Está ruim, mas está bom

Nathan Aké, talvez o melhor jogador holandês de 2023, manteve a constância que o país não teve em campo, com metades diferentes (Icon Sport/Getty Images)

É possível dizer, como em poucos anos recentes, que o futebol no Reino dos Países Baixos - para sempre chamado de Holanda - viveu um 2023 com duas metades diferentes. Em todos os setores. Por exemplo: na primeira parte do ano, a seleção masculina se mostrou bem preocupante em campo, correndo riscos de muitos sustos. Na segunda, se a Laranja não melhorou bastante, pelo menos restabeleceu firmeza suficiente para manter o seu status atual - uma equipe mediana e razoável, que não brilha, mas dificilmente passa vergonha. 

De certa forma, foi semelhante ao que viveu a seleção feminina da Holanda, em ano de Copa das mulheres: se a desconfiança era fortíssima antes dos jogos em Austrália/Nova Zelândia, bastou o Mundial começar para as Leoas Laranjas recuperarem grande parte do respeito perdido após o vice-campeonato em 2019 - e a reta final do ano restabeleceu isso plenamente. Entre clubes, a gangorra foi diferente: se os primeiros seis meses do ano indicaram esperança de que a Eredivisie virasse a "melhor do resto", com mais uma boa campanha europeia (AZ semifinalista na Conference League 2022/23) e a ultrapassagem sobre Portugal no ranqueamento europeu, o segundo semestre - primeira metade de 2023/24 mostrou oscilações maiores. Bons exemplos são o AZ, já eliminado na Conference League, e o Ajax, também abatido na Liga Europa - e ainda atraindo desconfianças sobre o que fará na segunda fase na Conference.

Por outro lado, a esperança está posta, com o avanço do PSV na Liga dos Campeões. E mesmo o Feyenoord merece um voto de confiança. É bom explicar tudo isso nos tópicos que vêm, nesta retrospectiva que já é tradicional por aqui. De um ano que teve coisas ruins, mas que poderia ter sido pior. Em suma: para a Holanda, no futebol, está ruim, mas está bom.

Na seleção masculina, Ronald Koeman quis trazer o "velho estilo" de volta. A realidade o forçou a retomar jeito antigo. E a Holanda se retomou como uma seleção, pelo menos, razoável (Pro Shots/Getty Images)

Seleção masculina: dias (um pouco) melhores virão

Já se sabia desde abril de 2022, e começou a partir de 1º de janeiro: Ronald Koeman vinha para sua segunda passagem no comando da Laranja. E vinha prometendo, até apregoando, que a seleção masculina da Holanda (Países Baixos) voltaria a ser ofensiva, voltaria a ostentar sua escola tática, em suma, que a Oranje não seria tão pragmática quanto fora na Copa do Mundo passada. Tinha todo o direito, desde que isso se visse em campo. Pelo menos no primeiro semestre, passou longe disso. É certo que a estreia nas eliminatórias da Euro 2024 seria ingrata - contra a França, talvez a melhor seleção de toda a Europa. É mais certo ainda que um polêmico (até engraçado) problema estomacal vitimou boa parte do grupo de jogadores naquelas datas FIFA de março. Porém, mesmo com todos esses atenuantes, começar 2023 sofrendo uma goleada por 4 a 0 sem resistência não era a coisa mais promissora. Até mesmo na segunda partida, com vitória, houve razões para preocupação. Razões justas. Afinal de contas, pegando Gibraltar (talvez a mais fraca equipe nacional europeia), chutando a gol por 52 vezes, fazer só 3 a 0 no placar era, no mínimo, sinal de ineficiência. No mínimo.

O sinal amarelo estava aceso. A Holanda seguia, no futebol masculino, como uma seleção de defesa boa e ataque ruim. Tinha um meio-campo oscilante. E o sinal amarelo ficou "laranja" (como se sabe, mistura de amarelo e vermelho) justamente quando menos poderia ficar assim: na fase final da Liga das Nações. Mesmo sendo torneio de menor importância, as semifinais e a final seriam nos Países Baixos. E um título é um título, para uma seleção com sala de troféus tão pequena como é a holandesa. Havia esperanças. Fortemente desmanchadas na semifinal: em pleno De Kuip de Roterdã, a Croácia impôs a qualidade de seu meio-campo até com facilidade. Mesmo repetindo o que fizera na Copa - buscando o empate em 2 a 2 no fim do tempo normal -, a desorganizada Holanda foi presa fácil para a vitória croata. Pior ainda seria na (já desimportante) decisão do terceiro lugar: lenta, com espaços amplos na defesa, a Laranja foi superada sem problemas pela Itália, que conquistou a posição ao vencer por 3 a 2. Até ali - junho -, a seleção masculina da Holanda jogava no seu velho estilo. E estava completamente desorganizada. Na defesa, mesmo com bons jogadores, muitos espaços; no meio-campo, ninguém que preenchesse a falta que Frenkie de Jong fazia, quando fazia; no ataque, as lesões tirando o espaço de Memphis Depay à força na equipe. As preocupações eram gigantes. Ou a Holanda se aprumava logo, ou a vaga na Euro corria riscos. Sérios riscos.

Se ainda se acostumava na primeira metade do ano, Xavi Simons terminou 2023 como titular absoluto da Holanda. E indicando: a Laranja melhora no meio-campo (Seb Daly/Sportsfile via Getty Images)

Só restou a Ronald Koeman reconhecer, implicitamente: o jeito de jogar na Copa de 2022 podia ser pragmático, podia ser sem graça, mas Louis van Gaal (seu desafeto) tinha razão. Com o grupo atual de jogadores, ou a Holanda jogava com três zagueiros, ou ficaria abaixo até de seleções tão medianas quanto ela. A péssima fase final da Liga das Nações fez Koeman aprender à força: na volta das eliminatórias da Euro, em setembro, a Holanda já jogou com três zagueiros. Ganhou facilmente da Grécia (3 a 0), virou bem para cima da Irlanda (2 a 1 em Dublin), viu novamente Denzel Dumfries aparecer bem, viu Wout Weghorst crescer de importância. Dali por diante, só houve derrota para a França (2 a 1, em Amsterdã). Mesmo com alguns momentos difíceis, alguns jovens começaram a aparecer: Xavi Simons cresceu de importância, Tijjani Reijnders aproveitou para virar titular no meio-campo, Brian Brobbey já se faz notar no ataque. A Holanda ganhou os três jogos que precisava ganhar - dois contra a Grécia, um contra a Irlanda, com uma goleada mais digna sobre Gibraltar no último jogo (6 a 0). Garantiu lugar na Euro sem muitos problemas. E restabeleceu o que é, hoje em dia: uma seleção mediana, mas que não compromete. É plenamente capaz de fazer na Euro o que fez na Copa: uma campanha decente - não de título, mas decente. E com o surgimento de alguns jogadores que, se não são craques, podem qualificar a equipe. Indicando que dias (um pouco) melhores virão.

Phillip Cocu, demitido: o técnico pagou pela crise profunda que o Vitesse, clube da "classe média" da Holanda, vive (Rene Nijhuis/BSR Agency/Getty Images)

Clubes: a crise da classe média - e do mais rico

Há os três grandes clubes da Holanda (Ajax, Feyenoord e PSV). E há, como sempre houve, uma "classe média" no Campeonato Holandês. AZ, Twente, Vitesse, Groningen, Heerenveen: todos clubes que nem sonham com título - embora ele possa acontecer em ocasiões especiais -, mas que fazem boas campanhas, aparecem de vez em quando em competições europeias, podem até surpreender como o AZ surpreendeu na Conference League. Porém, quando se vê o sexto colocado atual do Campeonato Holandês... é o Go Ahead Eagles, que sofria com ameaças de rebaixamento há não muito tempo. O sétimo colocado é... o Sparta Rotterdam, que quase foi rebaixado na temporada 2021/22. E o rebaixamento do Groningen foi o primeiro sinal: essa "classe média" do futebol holandês vive crise.

Não se sabe se a crise vem das limitações naturais de clubes médios, que têm "tetos" e não conseguem ter os mesmos sonhos que o Trio de Ferro tem. Ou mesmo se elas decorrem de dificuldades internas. Tome-se por exemplo o Vitesse: em 2022, o ucraniano Valeriy Oyf vendeu o clube de Arnhem tão logo a guerra Rússia-Ucrânia começou. Meses depois, o norte-americano Coley Parry comprou o clube. Mas não mexeu com ele ainda: sim, há mais de um ano a federação holandesa não deu o "sinal verde" para Parry poder assumir o clube de vez. Logo, o Vitesse tem poucas condições de investir em contratações. Logo, está em péssima fase: é o lanterna do Campeonato Holandês. Outro exemplo: o Utrecht. Que mantém investimentos e investimentos (por obra e graça do empresário Frans van Seumeren, mecenas do clube), mas também está em dificuldades na tabela - 13º lugar, teve três técnicos na temporada.

Demissões, problemas, má fase: a crise do Ajax foi (e ainda é, de certa forma) histórica (Olaf Kraak/ANP/Getty Images)

Se fosse só a "classe média", até se compreendia. Porém, a crise mais assustadora do ano ocorreu com o clube mais rico (e mais famoso) da Holanda. O Ajax ainda se segurou na primeira metade do ano. Porém, na segunda, tudo desandou: o diretor geral Edwin van der Sar preferiu sair, o técnico Maurice Steijn chegou sem respaldo pleno, e o diretor de futebol Sven Mislintat chegou com caminho livre para decidir o que fazer. Resultado: más contratações, alcançar um ponto baixo em sua história ao ficar na lanterna da Eredivisie, eliminação na Liga Europa, demissão de Steijn e Mislintat... só a vinda de nomes conhecidos e conhecedores do clube (Van Gaal como conselheiro, John van't Schip como técnico) estabilizou as coisas. Um pouco, só um pouco, como indicou o histórico vexame da eliminação da Copa da Holanda para o Hercules, clube amador da 4ª divisão.

Mas se houve crise, houve ganhadores. O ganhador do primeiro semestre foi o Feyenoord, campeão após seis anos, coroando excelente trabalho que Arne Slot fez - e continua fazendo. Só não continua ponteando porque há o esplendoroso segundo semestre do PSV, começando a colher os frutos de investimento correto: 16 vitórias nos 16 jogos da Eredivisie 2023/24 até agora, classificado para as oitavas de final da Liga dos Campeões, vários destaques. Sempre há quem passe incólume pelas crises.

Andries Jonker falou e pôs ideias em prática. As jogadoras compraram. E a seleção feminina da Holanda retomou o respeito que havia perdido (Jeroen van den Berg/Soccrates/Getty Images)

Seleção feminina: o respeito voltou

"Podemos ganhar de qualquer um." É uma frase que o técnico Andries Jonker repete às jogadoras da seleção feminina da Holanda (Países Baixos) desde que assumiu o comando das Leoas Laranjas, em setembro de 2022. Era necessário, após a passagem curta e turbulenta de Mark Parsons, na qual se via uma equipe cautelosa até demais em campo, até hesitante, embora com o mérito de começar a abrir espaço para jogadoras mais novas. Era o desejo claro das "líderes" do grupo (Sherida Spitse, Daniëlle van de Donk, Jill Roord, Vivianne Miedema) - que, se não brigaram com Parsons, discordavam às escondidas do seu estilo de jogo. Mas de nada adiantaria Jonker falar isso sem medidas práticas. Aí, Jonker decidiu escalar a seleção com um trio de zagueiras. Fez mais: decidiu improvisar meio-campistas avançadas nas laterais - Victoria Pelova na direita, Esmee Brugts na esquerda -, rejuvenescendo o grupo. Antes da Copa do Mundo feminina, a primeira metade de 2023 foi feita de testes. Que não tiraram as desconfianças gigantes de quem acompanhasse, ainda mais depois do rompimento de ligamento cruzado anterior no joelho esquerdo que tirou as chances de Miedema estar na Copa. Antes dela começar, algumas opiniões até apostavam que Portugal, seleção aguerrida, faria as Leoas Laranjas serem eliminadas na fase de grupos. Até porque, no mesmo grupo de ambas, estavam os Estados Unidos.

A Copa começou e... a Holanda mostrou que não era para tanto. Nem tanto na estreia, magro 1 a 0 contra Portugal. Mas sim no segundo jogo, contra as norte-americanas: abriu o placar, mostrou valentia ofensiva, e se segurou quando os EUA empataram. O 1 a 1 deixou claro: sim, a seleção feminina da Holanda recuperara a firmeza. Provou isso ao se tornar a líder de seu grupo na Copa, goleando o Vietnã por 7 a 0 enquanto as norte-americanas se assustavam com as portuguesas. Mais do que isso: o talento das jogadoras aparecia. As veteranas se destacavam (Stefanie van der Gragt, firme na zaga em suas últimas partidas na carreira; Jackie Groenen e Lieke Martens, redivivas; Jill Roord, boa no ataque), e as jovens despontavam. Que o diga Daphne van Domselaar, que se afirmou como goleira de ponta nas oitavas de final da Copa, ao fazer várias defesas contra a África do Sul, enquanto a Holanda fez 2 a 0. Que o diga também Esmee Brugts, talentosa na ala esquerda. A Holanda caiu nas quartas de final da Copa com justiça: a Espanha tinha jogadoras melhores e mais decisivas, e foi melhor na partida. Todavia, a impressão da saída foi bem melhor do que a entrada. Poderia ser confirmada na Liga das Nações de mulheres, embora fosse difícil: afinal, na fase de grupos, vinha a vice-campeã mundial Inglaterra, treinada por Sarina Wiegman, conhecedora da seleção pelo avesso. E até a Bélgica se mostrou capaz de surpresas - como na estreia, ao vencer as holandesas (2 a 1).

Na Copa do Mundo de mulheres, a Holanda mostrou que as desconfianças não tinham razão de ser: jogou bem, e só foi eliminada porque é inferior à campeã Espanha (Buda Mendes/Getty Images)

E não é que a Holanda conseguiu? O talento continuou. Miedema voltou a campo - sem tanta presença jogando, mantendo a liderança técnica fora dele. O esforço foi inegável, como na Copa. Já teve grande mostra na vitória contra a Inglaterra, na segunda rodada (2 a 1, em casa). E teve a prova definitiva na comovente última rodada do grupo na Liga das Nações: as inglesas até tiraram diferença em saldo de gols ao golearem a Escócia, mas as holandesas fizeram dois gols nos acréscimos. Golearam a Bélgica (4 a 0). E estão nas semifinais, contra a Espanha algoz da Copa. O grupo atual buscará seu objetivo maior: ir ao torneio nos Jogos Olímpicos. Mesmo sem ser favorita, a Holanda aprendeu muito bem o que Andries Jonker indica desde o começo: ela pode ganhar de qualquer um. O respeito voltou.

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