sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O dia em que a Holanda venceu o Brasil - com Pelé

O grande momento: Peet Petersen faz o gol de uma (na época) surpreendente vitória da Holanda contra o Brasil, na única vez em que Pelé enfrentou a Laranja (De Nieuwe Limburger/Arquivo)

A rigor, este é um texto que poderia (e deveria) ter sido feito em 2 de maio passado, quando a partida a ser relembrada completou 60 anos. Passou. Só que, se há um ótimo jeito de lembrarmos para sempre Edison Arantes do Nascimento (1940-2022), falecido há exatamente um ano, é lembrarmos uma partida dele com a camisa da Seleção Brasileira, da qual é o grande símbolo dos quase 110 anos de história. Mais: lembrar uma partida dele contra a seleção da Holanda, a única vez em que Pelé enfrentou a Laranja, a primeira partida oficial entre a Seleção e a Oranje. Mais ainda: uma partida em que a Laranja, na época uma seleção de terceiro escalão, ganhou da seleção que era então a bicampeã mundial.

O contexto antes do jogo: problemas aqui, defesa lá

A partida amistosa fazia parte de uma excursão que a Seleção Brasileira empreendia pela Europa. Excursão que já trazia muitos problemas à delegação, antes mesmo do desembarque em Amsterdã. Afinal de contas, os resultados eram ruins. Começando com uma derrota para Portugal (1 a 0, em Lisboa, em 21 de abril). O pior viria na segunda partida, contra a Bélgica, em Bruxelas, três dias depois. Nela, ocorreu um resultado que já traria problemas e críticas nos tempos atuais - e naquela época, 1963, com as memórias do bicampeonato mundial ainda recentes, era uma zebra inacreditável: uma goleada dos Diabos Vermelhos sobre a Seleção (5 a 1), impulsionada pelo ótimo preparo físico dos belgas (obra e graça do preparador físico Raoul Mollet). E mesmo na vitória de 28 de abril - 3 a 2 na França, em Paris -, a Seleção sofreu com tudo: sofreu com a defesa francesa, sofreu com o esforço, sofreu para vencer.

Preparo físico era justamente o grande problema daquela delegação brasileira. As constantes viagens daquelas semanas minavam a força do grupo convocado pelo técnico Aimoré Moreira (com Vicente Feola como uma espécie de "supervisor técnico"), que mesclava experiência (Gylmar, Djalma Santos, Zito, Pelé - mesmo com 23 anos, já tinha duas Copas na carreira -, Zagallo, Pepe e Mengálvio - estes dois, reservas no título na Copa de 1962) e juventude (além de Eduardo e Nei, promessas do Corinthians, e do botafoguense Rildo, lateral esquerdo na Copa de 1966, estavam naquela convocação futuros craques: o zagueiro Roberto Dias, do São Paulo, e Gérson, meio-campo que surgia no Flamengo, antes mesmo de migrar para o Botafogo e se eternizar como o "Canhotinha de Ouro"). A tal ponto de Pelé sequer ter jogado na goleada sofrida para os belgas, por causa de uma distensão muscular, que o perturbou por toda a excursão - e trazia fortes dúvidas sobre sua presença na escalação brasileira contra a Holanda. Elas só diminuíram quando o camisa 10 participou dos treinos leves em 30 de abril, no Estádio Olímpico de Amsterdã. Curiosidade: antes do treino, os jogadores brasileiros assistiram à goleada do Blauw-Wit (5 a 0) no De Graafschap, pela terceira fase da Copa da Holanda em 1963/64, no próprio estádio. Só depois da partida encerrada, eles treinaram - sob aplausos de torcedores holandeses. Durante o treino, Pelé teve fotos tiradas, para publicidade no Brasil. Chefe da delegação brasileira, João Mendonça Falcão, presidente da Federação Paulista de Futebol, apregoou - com erro involuntário: "Perdemos dos belgicanos [sic], mas vamos ganhar da Iolanda [sic]".

Mesmo em meio ao cansaço profundo, o Brasil arrumou força para treinar em Amsterdã (ANP Archief)

Falando na "Iolanda", e a Holanda, como estava? Muito, mas muito diferente de como ela apareceria de vez para o mundo do futebol, na Copa do Mundo, onze anos depois. Em primeiro lugar, porque era unânime: a Laranja jogaria defensivamente contra o Brasil. De acordo com o relato do jornalista Dácio de Almeida, que acompanhava aquela excursão pelo Jornal do Brasil, o técnico Elek Schwarz acreditava que a Holanda poderia render mais se ficasse fechada na defesa, porque era "a seu ver, o melhor [esquema] para derrotar a seleção brasileira, cujos jogadores apresentavam sempre um rendimento maior quando seu adversário os enfrenta em igualdade de condições, no 4-2-4, enquanto perdem a calma e se atrapalham quando têm que abrir um sistema defensivo compacto". Além do mais, faltava também força ofensiva, como alertava Aimoré Moreira ao Jornal do Brasil: "O ataque da Holanda dribla mal e chuta de longe, sem dar grandes preocupações. E isto eu não temo, pois Gylmar está em grande forma e tem sido o melhor da excursão".

O acúmulo de jogos também causava seus impactos aos neerlandeses. Quando nada, porque os jogadores vinham de uma rodada cheia do Campeonato Holandês, que rumava para o fim da temporada 1962/63, na qual o PSV seria o campeão. Curiosamente, o time de Eindhoven nem tinha nomes presentes na escalação de Elek Schwarz. Os destaques vinham do Feyenoord - como o experiente goleiro Eddy Pieters Graafland e o atacante Coen Moulijn, que ficou de fora da partida, exatamente por se machucar no 1 a 1 contra o ADO (futuro ADO Den Haag), pelo Campeonato Holandês, em 28 de abril, dias antes do amistoso. Ou então, do Ajax, que teria mais nomes entre os titulares: o zagueiro Tonnie Pronk, o meio-campo Bennie Muller, o atacante Henk Groot (outro destaque Ajacied, Sjaak Swart, estava machucado). Muitos deles estavam num ótimo resultado da Holanda, semanas antes: a vitória por 1 a 0 sobre a França, num amistoso. Muitos estariam num ponto baixo da história da Laranja, meses depois: a queda para Luxemburgo, nas eliminatórias da Euro 1964. Um símbolo de como eram outros tempos, e de como a Holanda era um país de terceiro escalão no futebol europeu.

O amistoso: Pelé por pouco tempo, goleiros destacados, Petersen herói na frente

Quando as duas seleções entraram em campo no Estádio Olímpico de Amsterdã, Pelé ia para o sacrifício: mesmo com o médico da delegação brasileira, Hilton Gosling, ainda tendo amplos cuidados - Coutinho estava pronto para ser titular -, o camisa 10 começaria jogando. Sorte que Djalma Santos não teria: Lima, ganhando espaço no Santos, teria chance na lateral direita, enquanto Zequinha, bom volante do Palmeiras (também presente no grupo da Copa de 1962), substituiria Zagallo, sem condições.

O Brasil que jogou contra a Holanda, em 2 de maio de 1963. Em pé: Aimoré Moreira (técnico), Lima, Zequinha, Roberto Dias, Rildo, Eduardo e Gylmar. Agachados: Marcos, Gérson, Pelé, Nei, Pepe e Mário Américo (massagista) (Alamy Stock Photos)

Contudo, a julgar pelos primeiros minutos, nem parecia que o Brasil estava esfalfado. O time de Aimoré Moreira se impôs, com trocas de passes rápidas, que renderam chances de gol. A primeira, logo aos três minutos: Pelé e Nei tabelaram, Nei entrou na área com a bola e finalizou, e Pieters Graafland defendeu bem. Só que a Holanda começou a usar de passes mais longos, e também rapidamente chegou ao ataque: aos 8', cruzamento de Peet Petersen (substituto de Coen Moulijn entre os titulares), e Henk Groot - dos melhores atacantes holandeses daquele começo de década - cabeceou, para grande defesa de Gylmar.

Pelé e Nei seguiram tabelando para tentar furar a defesa holandesa - aos 14', Nei só não chutou porque Bennie Muller bloqueou na hora exata. Só que, logo depois, Pelé voltou a sentir as dores fortes da distensão muscular. Ainda tentou seguir no jogo, mas logo aos 30', foi substituído por Mengálvio. E a Holanda começou a ficar mais ousada no ataque - já aos 15', Petersen teve boa chance. E o primeiro tempo terminou equilibrado. De um lado, Pieters Graafland salvou a Holanda aos 30', em dois chutes, de Zequinha e Nei. Do outro, aos 43', Henk Groot perdeu boa chance, ao cabecear mal.

No segundo tempo, a Holanda começou retraída. Pieters Graafland fez duas defesas: aos 47', em chute de Gérson, e aos 55', em arremate de Marcos. Só que aí, Peet Petersen impulsionou a Laranja - jogando com calções brancos e meias azuis, contra um Brasil de uniforme habitual. O atacante fez Gylmar trabalhar bastante - como aos 63', num chute dele que o goleiro brasileiro pegou. Henk Groot também apareceu de novo, aos 82', num arremate que Gylmar espalmou. Àquela altura, o Brasil já passara por uma mudança no ataque, com a entrada de Amarildo no lugar de Nei. Não dava certo: a Holanda estava melhor.

O gol da vitória viria numa falha, no minuto final do jogo. Com a posse de bola, o Brasil trocava passes na defesa. Aí... Peet Petersen, o autor do gol, descreveu ao De Telegraaf: "Foi uma falha de Eduardo. Num segundo momento, Lima também errou, quando chutou a bola em cima de Henk Groot. Henk me passou a bola, eu driblei Eduardo e chutei". Bola na rede, no ângulo direito de Gylmar. Festa, com fotógrafos e torcedores invadindo o campo do Estádio Olímpico de Amsterdã. Alegria na imprensa: "Triunfo merecido da Laranja" foi a manchete do De Telegraaf. Gozação dos jogadores holandeses - ao mesmo De Telegraaf, o zagueiro Piet Ouderland zombou: "Zequinha não foi nenhum Garrincha". Tristeza profunda na delegação do Brasil: Eduardo chorou nos vestiários, após a falha no gol. E Pelé resumiu, dias depois, numa "reportagem-diário" da Folha de S. Paulo: "A derrota para a Holanda doeu mais do que a goleada da Bélgica".


Vida que segue. No dia seguinte, o Brasil viajou a Eindhoven, para um amistoso não oficial contra o PSV (vitória por 1 a 0). Mas ficou a lembrança: na única vez em que Pelé enfrentou a seleção da Holanda (Países Baixos), foi a Laranja que ficou com a vitória.

FICHA DO JOGO

Holanda 1x0 Brasil

Data: 2 de maio de 1963
Local: Estádio Olímpico de Amsterdã
Árbitro: Johan Einar Boström (Suécia)
Gol: Peet Petersen, aos 89'

BRASIL
Gylmar; Lima, Eduardo, Roberto Dias e Rildo; Zequinha, Gérson e Marcos; Nei (Amarildo, aos 70'), Pelé (Mengálvio, aos 30') e Pepe. Técnico: Aimoré Moreira

HOLANDA
Eddy Pieters Graafland; Guus Haak (Cor Veldhoen, aos 66'), Tonnie Pronk, Piet Ouderland e Bennie Muller; Jan Klassens, Rinus Bennaars e Gerard Bergholtz; Henk Groot, Tonny van der Linden e Peet Petersen. Técnico: Elek Schwartz

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