A cara de Peter Bosz mostra bem as dificuldades do Ajax na pré-temporada, para se reerguer do trauma (Soenar Chamid/VI Images) |
Mesmo que conquistasse o título do Campeonato Holandês na temporada passada, o Ajax passava a impressão de estar prestes a sofrer uma profunda reformulação. Parecia um time “manjado”, sem alternativas de jogo que não fossem o 4-3-3 tradicional com que o técnico Frank de Boer comumente escalava a equipe Ajacied, com ênfase nas pontas. Era até notável, pelas performances apagadas nas competições continentais, como faltava ao time de Amsterdã a consistência tática que, por exemplo, o PSV exibiu de sobra.
Se o cenário pedia alteração mesmo em caso de título, a traumática perda da Eredivisie na última rodada tornou-a praticamente obrigatória. Foi até patético ver como os Amsterdammers se desmancharam, mental e taticamente, após tomar o inesperado gol de empate do De Graafschap, na última rodada; enquanto o PSV cumpria a tarefa e vencia o Zwolle, a pressão do Ajax se resumia a mandar bolas cruzadas para a área, esperando por um cabeceio salvador do zagueiro Mike van der Hoorn, saído do banco exatamente para isso. Ou de um lampejo individual de Anwar El Ghazi, também vindo dos reservas.
Mas tudo fracassou, a Eredivisie terminou com o bicampeonato do PSV, e Frank de Boer demorou apenas alguns dias para anunciar sua saída do Ajax. E o traumático final rendeu críticas até de ex-comandados. Caso de Arkadiusz Milik: em junho, antes ainda de disputar a Eurocopa pela Polônia, ao diário De Telegraaf, o atacante criticou sua saída de campo contra o De Graafschap, para dar lugar a El Ghazi: "Após a alteração, eu quis ir direto para os vestiários, mas não podia deixar meus colegas na mão. Por que ele escolheu Van der Hoorn e El Ghazi? Não são atacantes de área. Eu realmente achava que podia ajudar minha equipe. Se daria certo, não sei. Mas, na minha cabeça, já me vi fazendo o gol da vitória contra o De Graafschap".
Desde então, a equipe de Amsterdã entrou num cenário misterioso. E até diferente de momentos passados. Não há muitas negociações em curso envolvendo membros do elenco, a saída dos destaques não é cogitada, nem mesmo há a expectativa real de vender revelações. Há até boatos: um interesse plantado sobre Anwar El Ghazi aqui, o fracassado interesse do Napoli em Davy Klaassen ali, havia expectativa sobre a saída de Milik acolá (o polonês ficará)... mas de real, por enquanto, nada.
O que só torna maior a curiosidade a respeito das perspectivas do trabalho que Peter Bosz terá para fazer em Amsterdã. Afinal de contas, no primeiro turno da temporada passada, Bosz fez do Vitesse um dos times mais agradáveis de se assistir no Campeonato Holandês. Partindo do 4-3-3, contava com a fluidez na troca de posições entre os jogadores para alterar constantemente o esquema (que era mais um 4-3-1-2, no fim das contas) e manter a defesa segura.
Para que se tenha uma ideia da boa fase: em matéria do site Catenaccio.nl, o Vitesse era apontado como o único time holandês da atualidade que jogava algo parecido com o Futebol Total – mais parecido, até, do que a seleção do país. Encurtar espaços? O Vitesse encurtava. Marcar por pressão? Também. Trocar posições? Sim, como escrito acima. Um homem no meio-campo como eixo da criação de jogadas? Confere. Tudo isso resultava numa boa campanha do clube de Arnhem – que desmoronou logo após a saída do técnico, ficando fora até dos play-offs por vaga na Liga Europa.
Até por esse estilo ofensivo, Bosz (ex-atacante, que esteve no elenco holandês que disputou a Euro 1992) recebeu a aposta do Maccabi Tel Aviv, que o contratou inesperadamente no início deste ano, na pausa de inverno que vivia o futebol holandês. Não houve sucesso: afinal, não só os Amarelos viram o tricampeonato israelense interrompido pelo título do Hapoel Be’er Sheva, como nem mesmo a Copa do Estado de Israel serviu de consolo – mais um vice-campeonato, com a derrota para o Maccabi Haifa.
Mesmo assim, o time ofereceu certos atrativos técnicos na rápida passagem de Bosz. Além do mais, o técnico era homem de confiança do diretor técnico do Maccabi Tel Aviv, que vem a ser um tal de Jordi Cruyff. Muito próximo ao filho de Johan (que até teve algumas conversas com Bosz e Jordi, enquanto pôde), foi fácil abrir caminhos no Ajax e reverter o peso de ter se destacado no arquirrival Feyenoord enquanto jogava. E foi ancorado na recomendação de um pesadíssimo sobrenome na história Ajacied que o treinador aproveitou a cláusula de liberação do Maccabi em caso de proposta vinda da Holanda, deixou a capital israelense e chegou à Amsterdam Arena.
E desde o começo, Bosz sabe o que precisa fazer. Aliás, falou isso em entrevista nesta semana, ao canal oficial de vídeos do Ajax: “Já me sinto em casa. Antes de mais nada, quero o título holandês, mas também o da Copa da Holanda, além de chegar o mais longe possível nas competições europeias”. Neste último ponto – em que o PSV mostrou que o futebol holandês não pode mais se conformar com eliminações na primeira fase -, Bosz ainda foi cauteloso: “Ainda dependemos do sorteio, só em 15 de julho saberemos contra quem jogaremos [na terceira fase preliminar da Liga dos Campeões]”.
O mais curioso é que, de fato, com a chegada de Bosz, há a indicação de algumas mudanças. A primeira delas: ter a bola nos pés será item de primeira necessidade. Menos correria, mais sabedoria. Quando nada, porque Thulani Serero, volante veloz na marcação, já foi liberado para procurar outro clube. Ou então, porque Van der Hoorn, zagueiro que tem no porte físico sua grande qualidade (além do jogo aéreo, fracassado na traumática última rodada da Eredivisie passada), já tomou o caminho do Swansea – enquanto o Ajax espera a chegada de Davinson Sánchez, que segue titular na zaga do Nacional de Medellín (time que joga com ênfase na... posse de bola).
Aliás, as chegadas de Sánchez e de outro colombiano - Mateo Cassierra, atacante do Deportivo Cali – indicam que, além de olhar para sua sempre frutífera base, o Ajax deseja ver além de mercados europeus para reforçar o elenco. Talvez seja seguir o exemplo do PSV, de vitoriosas experiências em mercados alternativos. E talvez também se torne um hábito da nova fase no organograma do futebol do clube.
Após três anos “ganhando experiência” na direção de marketing, Edwin van der Sar chegou onde se pretendia que ele chegasse após a reestruturação interna, no início desta década: na direção geral do clube. Junto do colega de geração Marc Overmars (que segue como diretor de futebol, de contrato renovado após ser cogitado pelo Everton), caberá ao ex-goleiro conter as críticas que recebeu vez por outra, sobre um comportamento omisso e incompetente. E ambos terão um importante aliado em Dennis Bergkamp, que assumiu de vez seu caráter mais “intelectual” no futebol do clube: embora siga como auxiliar do treinador, deixará de ficar no banco de reservas (até porque não quer ser treinador) para trabalhar mais no planejamento da equipe.
E a equipe? Por enquanto, seguirá muito semelhante ao que foi em 2015/16. Klaassen segue como capitão, e deverá ter Nemanja Gudelj e Riechedly Bazoer novamente como parceiros. Levemente cogitado pelo Everton num certo momento, Jasper Cillessen segue indiscutível como goleiro titular. Voltando da Eurocopa, Milik até teve boas atuações defendendo a Polônia, mas não a ponto de ser cobiçado fervorosamente continente afora, e anunciou que ficará no Ajax. E definitivamente recuperados de suas lesões, Kenny Tete e Jaïro Riedewald são nomes certos na zaga titular.
Sem contar as promessas da base, sempre frutífera em se tratando de De Toekomst, a escola do clube. As apostas da vez são o zagueiro Matthijs de Ligt, capitão da seleção holandesa que disputou o Europeu sub-17, e dois jogadores já vistos na temporada passada, o meio-campista Donny van de Beek e o atacante Vaclav Cerny (Van de Beek sequer foi liberado para disputar o Europeu sub-19 pela seleção holandesa). Há ainda jovens que vieram de fora, como o atacante Kasper Dolberg, experimentado como titular por Bosz enquanto Milik jogava a Euro. E gente que receberá a enésima aposta, como Richairo Zivkovic, cujo comportamento o levou a ter vida curta no empréstimo ao Willem II.
Com os trabalhos de pré-temporada já transcorrendo na cidade austríaca de Mayrhofen, Bosz pede atenção total. A ponto de ter segurado Amin Younes, barrando a convocação do atacante alemão para o torneio olímpico de futebol masculino. Pelos resultados nos amistosos, ainda é necessário muito trabalho: uma derrota (4 a 3 para o Liefering, da segunda divisão austríaca, sábado passado) e um empate (2 a 2 com o AFC, clube amador de Amsterdã, na terceira divisão holandesa). E há a ansiedade sobre qual será o adversário reservado pelo sorteio da terceira fase preliminar da Liga dos Campeões. E a obrigação de tentar se recompor rapidamente a ponto de desafiar o PSV. Será curioso ver como o Ajax começará a temporada, em meio às desconfianças de sua capacidade.
(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 8 de julho de 2016)
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