sexta-feira, 24 de junho de 2016

República das bananas (ou bananenrepubliek)

O ambiente do Twente já não é mais nebuloso: na última hora, o clube se salvou do rebaixamento (Gerrit van Keulen/VI Images)
Sempre que se quer reclamar da péssima mania de ver tudo no Brasil ser empurrado para debaixo do tapete, sem investigações aprofundadas (e não só no futebol), costuma-se dizer que esta é a “república das bananas”. Pois bem, na sexta-feira passada, muitos jornalistas holandeses dedicados ao futebol traduziram a expressão: “bananenrepubliek”. 

Tudo como referência ao final surpreendente – pelo menos, por enquanto – da polêmica que levara à recomendação do rebaixamento do Twente à segunda divisão. Como tal parecer viera da comissão de licenças da KNVB, a federação holandesa, tudo levava a crer que o clube de Enschede fracassaria no recurso impetrado à própria federação. Pois aconteceu o contrário: na instância final, a comissão jurídica da mesma entidade decidiu que os Tukkers estavam salvos, e disputarão normalmente o Campeonato Holandês da próxima temporada. Sem perda de pontos ou coisa parecida

Em nota divulgada por meio de seu site, a decisão foi explicada com este início: “Em dezembro de 2015, a comissão de licenças decidiu que o FC Twente só poderia manter a licença caso estivesse completamente quitado com os problemas do passado”. Mas foi a continuação da nota que irritou imprensa e torcidas adversárias: “Nos meses posteriores, seguiram-se mais informações sobre esse passado. A conclusão da comissão jurídica é que, após a decisão de dezembro, o FC Twente já conseguiu limpar completamente seu nome, e que as informações descobertas desde então são uma consequência disso. Por essas razões, a comissão não as incluirá na decisão sobre a manutenção ou não da licença do FC Twente”. Aí, vinha o golpe fatal: “Mesmo assim, a comissão punirá quatro erros cometidos entre dezembro de 2015 e maio de 2016 com uma multa. Dada a gravidade, e o caráter repetido dos erros, a comissão decidiu dar para cada erro a multa mais alta possível, de 45.250 euros, resultando numa multa total de 181 mil euros”. Obviamente, a nota também confirmava o rebaixamento do De Graafschap – que já caíra dentro de campo, derrotado na fase final da repescagem para o Go Ahead Eagles.

Bastou a divulgação da nota, às 14h do horário holandês de sexta passada (9h no horário de Brasília), para a torrente de protestos ter início. Principalmente de jornalistas. Repórter do diário De Volkskrant, Willem Vissers foi claro, em reportagem: “O Twente usou dinheiro, e sabia que esse dinheiro provavelmente não lhe pertencia. Agora, não terão propriamente uma punição. Tudo bem, tem a multa de 181 mil euros. Mas não será uma punição propriamente dita. E não acho isso certo”.

Freek Jansen, da revista Voetbal International, foi lacônico em seu perfil no Twitter: “Que teatrinho...”. Em conversa com este blogueiro no Twitter, Joost de Jong, correspondente do jornal Algemeen Dagblad no Rio de Janeiro, descreveu a razão da irritação: “É dizer: podem fraudar o que quiserem, que a multa será só de 180 mil euros. Não tem como entender”. Repórter e colunista do Algemeen Dagblad, Sjoerd Mossou foi irônico no Twitter com os torcedores do Twente, obviamente comemorando a decisão: “De coração, Tukkers; não me encham o saco nunca mais, agora. A quadrilha trapaceou por tanto tempo, e vai escapar assim. Foi a melhor atuação desde o título da Eredivisie em 2010”.

Ao diretor técnico do De Graafschap, Peter Hofstede, só restou a surpresa diante da decisão inesperada pela manutenção do Twente: “Primeiro, há uma decisão da comissão de licenças. E eu entendi que ali havia gente que sabia do assunto e havia se aprofundado na questão. Mais tarde, isso é ressaltado pela justiça comum. Aí, vem a comissão jurídica da federação, onde eu achei que também havia pessoas inteligentes. Muito me surpreende quando dizem que a comissão de licenças fez tudo errado. Ficamos 27 dias reféns [da decisão]. Não havia definição se jogaríamos na Eredivisie ou na Eerste Divisie (segunda divisão). Nós não esperávamos, acho que ninguém esperava”.

Quando este blog comentou a decisão da federação sobre o rebaixamento, há um mês e quatro dias, expressou com hesitação e falta de clareza seu posicionamento em relação ao assunto. E a reação unanimemente contrária à decisão da federação me dá subsídio para esclarecer: a KNVB errou duplamente. Primeiro, ao decidir punir o Twente com o campeonato já encerrado, e os play-offs contra o rebaixamento já em disputa. Depois, ao não impor a punição mais dura prevista em regulamento ao Twente (a perda da licença profissional, forçando o clube a recomeçar, na quarta divisão, amadora). Afinal de contas, regra é – ou era – regra. Tentando uma terceira via (manter a licença, mas rebaixar o clube à segunda divisão), a entidade quis evitar as consequências pesadas que viriam, como a alteração do resultado final: com a licença cassada, o Twente teria cancelados os resultados da temporada 2015/16, e isso daria ao Ajax um título que já é do PSV.

Só que ao fazer isso, a federação apenas causou mais dores de cabeça. Primeiro, porque o Twente exagerou em sua reclamação: na apelação, alegou-se até que o clube da cidade de Enschede “iria à falência” caso tivesse de disputar a segunda divisão, já que não teria dinheiro para continuar saneando as finanças. Claro, a torcida - aliás, a cidade de Enschede em geral - encampou o discurso da diretoria: em março, após a perda de três pontos imposta pela federação, vários torcedores carregavam para os jogos a faixa "Twente leeft" (em holandês, "o Twente vive"). Nas partidas jogadas em casa, chegavam a levar a faixa em verdadeiras caravanas. De quebra, após a recomendação pelo rebaixamento, o clube iniciou a campanha "Wij staan achter Twente" (em holandês, "nós apoiamos o Twente"), em que pedia-se confiança da federação na recuperação do clube, com a assinatura não só de ídolos do clube, como o ex-goleiro Sander Boschker e o ex-atacante Jan Jeuring, mas também de jogadores conhecidos do futebol holandês, como Patrick Kluivert e Ronald de Boer.

A torcida encampou o apoio à diretoria no Twente: também tem sua parte na confusão (Joost Dijkgraaf/Tubantia.nl)

Outra dor de cabeça virá porque, agora, o De Graafschap é que entrará com recurso contra a federação – mesmo sem direito de fazer isso, rebaixado que foi no campo. Finalmente, a KNVB trouxe dor de cabeça para si pela decisão desastrada de minimizar a punição ao Twente: mesmo que o resultado dentro de campo tenha sido mantido (bem ou mal, a equipe garantiu a permanência jogando), toda a fraude nos balanços será repreendida com uma reles multa de 181 mil euros. Pronto. Coisa leniente demais, para os padrões do futebol europeu.

Enfim, o diretor esportivo do Twente, Onno Jacobs, pode se aliviar: “Agora, podemos encerrar esse capítulo feio e colocar uma pedra em cima dele”. Esportivamente, porém, o clube sabe que esta será uma temporada de reconstrução, como reconheceu o técnico René Hake na volta aos treinos, quarta passada: “A meta será permanecer na Eredivisie”. E os Tukkers assumem a nova realidade já no uniforme, com um fabricante mais modesto de material esportivo (a inglesa Sondico, no lugar da Nike) e um novo patrocinador (Pure Energie). Outro símbolo da redução de perspectivas é o fato de que o destaque Hakim Ziyech nem mesmo esteve com o resto do elenco: afinal, sabe-se que sua saída será uma possível salvação da lavoura. 

Todavia, a impressão ainda é que só o Twente tem algo a comemorar. Impressão descrita perfeitamente nas palavras do ex-jogador (do próprio clube, aliás) Youri Mulder, hoje comentarista: “É uma novela enorme, e a KNVB pode assumir a culpa”. Mais do que isso, Joost de Jong sintetizou perfeitamente: “Se algo com o Twente acontecesse aqui no Brasil, diríamos que é a república das bananas. Escapar com uma dívida desse tamanho é absurdo”.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 24 de junho de 2016)

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