Como qualquer leitor deste blog (ou acompanhante mediano do futebol europeu) sabe, o Feyenoord está às portas do título holandês, após 18 anos de jejum. Sendo assim, o Espreme a Laranja começa uma pequena série de textos sobre o Stadionclub, preparando o "ambiente" para a conquista cada vez mais provável. Começando nesta quinta, com um texto publicado na Trivela, em 2010, para lembrar simultaneamente do ponto mais baixo da história do clube de Roterdã (os 10 a 0 sofridos para o PSV, na Eredivisie 2010/11) e dos pontos mais altos (os títulos europeu e mundial, primeiros de um clube holandês na história, em 1969/70). Amanhã, a coluna sobre como está o ambiente em Roterdã. E no sábado, um texto comentando o último título nacional do Feyenoord, em 1998/99.
O ano de 2010 terminará amargamente para o Feyenoord. É certo que a primeira metade do ano foi até honrosa: o Stadionclub terminou o Campeonato Holandês em quarto lugar. Porém, sem dúvida, a maior lembrança será a tão falada goleada de 10 a 0 sofrida para o PSV, na temporada 2010/11 da Eredivisie. A maior derrota que já atingiu o clube de Roterdã em sua história no torneio nacional.
Sem dúvida, é um dos pontos mais baixos da história do Feyenoord, que já vai por 102 anos. E, talvez, a goleada sofrida em Eindhoven, no dia 24 de outubro, tenha impressionado exatamente porque, apesar dos pesares, o clube continua tendo tradição. Continua sendo um dos integrantes do Trio de Ferro holandês. E, principalmente, porque foi o primeiro clube a despontar na aparição do futebol holandês no cenário mundial, na década de 1970.
Muito se fala do Ajax tricampeão europeu, mas, se a Holanda começou a aparecer, foi porque, em 1970, o Feyenoord tornou-se o primeiro holandês a conquistar um título continental. Mais do que isto: o primeiro holandês a conquistar um título mundial. O time a ter conseguido a maior goleada da história da Liga dos Campeões em todos os tempos. E é desta época dourada que esta matéria falará.
Van Hanegem: chegando do Xerxes para ser o maior ídolo da história Feyenoorder (Arquivo ANP) |
A construção do time
Como em várias equipes que conseguiram sucesso, a construção do Feyenoord que ganharia o mundo levaria tempo. A começar pelo nome: ainda sem frequência em competições europeias, o time ainda se chamava Feijenoord – o “y” seria incluído somente em 1974.
Não se pode dizer, no entanto, que a base já não estivesse lá. A começar pelo experiente goleiro Eddy Pieters Graafland, que defendeu a seleção holandesa por uma década – parando em 1967, quando já tinha 33 anos -, e estava no De Kuip desde 1958.
Também já vestiam a camisa dividida verticalmente em branco e vermelho dois futuros integrantes do time de Rinus Michels na Copa de 1974: o zagueiro e capitão Rinus Israël (reserva no Mundial), também conhecido como “Ijzeren Rinus” (Rinus de ferro), por sua disposição meio exagerada nas jogadas e divididas, e o meio-campista Wim Jansen (titular), surgido nas categorias de base do clube. Já havia o lateral-direito Piet Romeijn. E no ataque, dois importantes atletas: o sueco Ove Kindvall, um bom finalizador, e o já veterano Coen Moulijn, considerado um dos melhores pontas da história da Holanda.
E ainda chegariam mais jogadores, antes da temporada 1968/69. Outro zagueiro vigoroso, Theo Laseroms, que faria uma dupla histórica do Feyenoord com Israël, e o atacante Henk Wery. Porém, o mais importante reforço viria de um clube falido: o Xerxes, nascido em Roterdã (mas, então, na cidade de Delft), havia abandonado o futebol profissional. E o meio-campista Willem van Hanegem chegou ao Feyenoord, junto do goleiro Eddy Treytel.
O primeiro sucesso
E o clube começou a disputar o campeonato holandês, tendo como principais rivais na disputa do título o Ajax (que, ao final daquela temporada, seria finalista da Copa dos Campeões) e o Twente de Jan Jeuring, Theo Pahlplatz e Dick van Dijk, treinado por Kees Rijvers. Entretanto, comandado por Ben Peeters, o Feyenoord teve um ótimo começo de temporada, vencendo seus 13 primeiros jogos – só tropeçou na 14ª rodada, ao empatar sem gols com o Telstar.
Haveria ainda outros tropeços do Stadionclub, que permitiam a Ajax e Twente sonharem com o título. Como os dois empates por 1 a 1 com AZ e ADO, na 20ª e 21ª rodada, e a derrota para o NAC Breda, na 22ª. A maior chance para os adversários, então, veio com a derrota para o Holland Sport, por 1 a 0, na 31ª rodada. Porém, Ajax e Twente também perderam, então. E o Feyenoord terminou vencendo Twente (1 a 0, fora de casa) e NEC (também 1 a 0, no De Kuip). Era o nono título nacional do clube, com direito a artilheiro – Kindvall fez 30 gols, junto de Van Dijk, do Twente. Para melhorar, viria ainda a dupla coroa, com o título da Copa da Holanda: após empate por 1 a 1 com o PSV, 2 a 0 numa partida extra.
Mudanças para a história
E, para a temporada 1969/70, a mudança mais importante viria no banco. Ben Peeters deixou o cargo de técnico vago, e este seria ocupado pelo austríaco Ernst Happel, que já estava havia sete anos no ADO Den Haag, pelo qual vencera a Copa da Holanda, em 1967/68. Entre os jogadores, viriam o lateral-esquerdo Theo van Duivenbode, que surgiu no arquirrival Ajax, e mais um meio-campista, o austríaco Franz Hasil. No gol, Treytel (mais um Feyenoorder a estar na Copa de 1974) tomaria o lugar de Pieters Graafland.
E, na primeira fase da Copa dos Campeões da Europa, o Feyenoord já conseguiu uma façanha histórica: enfrentando o KR, da Islândia, a equipe de Happel aplicou 12 a 2. Simplesmente a maior goleada da história da Copa dos Campeões – e um recorde que resiste até hoje, já na era de Liga dos Campeões.
Na segunda fase, todavia, o desafio era grande: enfrentar o Milan, justamente o campeão da competição na temporada anterior. E, na primeira partida, em 12 de novembro de 1969, no Giuseppe Meazza, Nestor Combin deu a vitória aos Rossoneri. No entanto, o meio-campo do time holandês estava em estado de graça. E seria justamente a principal dupla dos Feyenoorders que definiria a vitória e a classificação no De Kuip, em 26 de novembro: Jansen marcaria, aos seis minutos do primeiro tempo, e Van Hanegem faria o gol do 2 a 0, aos 37 da segunda etapa.
Paralelamente à superação de tamanho desafio, o time que Happel armara não decepcionava na Holanda: continuava disputando o título da Eredivisie com o Ajax. No entanto, um resultado ruim no De Klassieker acabaria desanimando o Feyenoord: em casa, a equipe vencia por 3 a 1, mas permitiu o empate, por duas falhas de Treytel. O Ajax se animaria, então, para vencer o título holandês – e goleiro perderia a posição para veterano Pieters Graafland.
Na Copa dos Campeões, porém, o time de Roterdã prosseguia firme na disputa do título. Nas quartas de final, o adversário seria o Vorwärts Berlin, da Alemanha Oriental. E o mesmo cenário da vitória sobre o Milan se repetiu: derrota por 1 a 0 fora de casa, mas triunfo por 2 a 0 na volta. Classificação garantida nas semifinais, onde o adversário seria o Legia Varsóvia, da Polônia.
E, enfim, a classificação para a decisão: empate sem gols em Varsóvia, e vitória por 2 a 0 em Roterdã. Chegava, enfim, a decisão esperada, no dia 6 de maio. No mesmo San Siro em que a equipe jogara contra o Milan. E com um adversário nada desprezível: o Celtic, que havia sido campeão europeu, havia duas temporadas.
O capitão Israël (esquerda) e o veterano Pieters Graafland erguem a taça da Copa dos Campeões (Arquivo ANP) |
Suado e inesquecível
No jogo, a primeira chance foi do Feyenoord, com Hasil, chutando de longe para a defesa de Evan Williams. Porém, aos 29 minutos do primeiro tempo, os Bhoys abriram o placar: após falta na meia-lua, uma cobrança ensaiada terminou no chute de Tommy Gemmell, no canto esquerdo de Pieters Graafland, que teve a visão tapada.
Mas não duraria mais do que dois minutos a vantagem escocesa. Aos 31, pela direita, o árbitro italiano Concetto Lo Bello apitou falta. Hasil cobrou, e a bola foi disputada de cabeça, até que Israël completou, também testando, sobre Williams. Era o gol de empate.
Sem mais gols, a partida foi para a prorrogação. E nela continuaria empatada, até os 12 minutos da segunda parte do tempo extra. No meio-campo, Lo Bello apitou falta. A bola foi lançada para a área. Billy McNeill, capitão do Celtic, tocou com a mão. Porém, o árbitro deu a lei da vantagem, o artilheiro Kindvall dominou pela esquerda e tocou na saída de Willians. Era o gol do título. Do primeiro título europeu de um clube holandês. E Israël levantou a taça.
"Ijzeren Rinus" Israël já erguera o troféu da Copa dos Campeões. E ergueu o do Mundial Interclubes (Arquivo ANP) |
Desafio ainda mais difícil
A disputa do Mundial Interclubes, porém, seria ainda mais desafiadora. Afinal de contas, o time de Ernst Happel (com Treytel de volta ao gol, já que Pieters Graafland encerrou a carreira depois do título europeu) teria pela frente o lendário Estudiantes. O time de Osvaldo Zubeldía, tricampeão sul-americano, campeão mundial em 1968, que contava com Oscar Malbernat, Carlos Pachamé, Carlos Bilardo, Juan Ramón Verón… temido tanto pela habilidade quanto pelos ameaçadores expedientes extracampo que usava costumeiramente.
E o primeiro jogo para o Feyenoord seria fora de casa, em La Bombonera, no dia 26 de agosto de 1970. E parecia que o Estudiantes iria fazer mais uma vítima: rapidamente, Juan Miguel Echecopar fez 1 a 0, e Verón ampliou a vantagem dos Pinchas. Todavia, o time holandês teria uma importante reação: ainda no primeiro tempo, Van Hanegem diminuiu. E, no segundo, Kindvall apareceu mais uma vez, empatando o jogo. Um placar ótimo para a volta, em Roterdã.
Porém, no dia 9 de setembro, o time de La Plata fazia jogo duríssimo, impedindo que o clube da Het Legioen marcasse e mantendo o empate sem gols, que forçaria um jogo extra para a decisão do título. Até que, no intervalo, Ernst Happel trocou Coen Moulijn por um defensor, Joop van Daele – que jogava de óculos (curiosidade importante para daqui a pouco). E Van Daele seria o autor do gol que faria a Het Legioen, a fanática torcida, explodir. O gol que fazia do Feyenoord o primeiro holandês campeão mundial.
Daí, mais uma história se somaria ao incrível anedotário daquele Estudiantes. Irritados e inconformados com os óculos de Van Daele, os jogadores da equipe argentina foram protestar após o gol. Malbernat resolveu o problema a seu modo: chegou a Van Daele, tirou seus óculos e começou a pisar em cima deles, dizendo: “Você não pode jogar de óculos. Não na América do Sul.” Hoje, o óculos quebrado de Van Daele está no museu do clube. Como um bálsamo que, diante dos difíceis tempos atuais, é a principal lembrança do tempo mais feliz da história do Feyenoord.
(Texto originalmente publicado na Trivela, em 8 de novembro de 2010)
Ótimo texto...
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