segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

O Brasil x Ajax de 1979: uma goleada, dois destaques

O Brasil goleou o Ajax em junho de 1979. E foi com dois gols e entrosamento com Zico que Sócrates, aniversariante deste 19 de fevereiro, começou a exibir seu talento nacionalmente (Gazeta Press)

Este é um texto que poderia ser publicado no dia 3 de março, quando Zico completará 71 anos de idade. Mas também pode - e será - publicado neste 19 de fevereiro, em que Sócrates (1954-2011) completaria 70 anos. Em primeiro lugar, porque qualquer coletânea de imagens retrospectivas da carreira do "Doutor" dentro de campo sempre destaca o gol com que ele abriu o placar, na goleada da Seleção Brasileira sobre o Ajax, num amistoso em 21 de junho de 1979 - aqui, o jogo na íntegra. Em segundo lugar, porque o gol foi só o começo: esta foi uma das primeiras partidas em que o meio-campista que se tornaria ícone na história do Corinthians chamou a atenção pela Seleção. Dividindo o espaço com Zico (que superou até um boicote). Embora ninguém soubesse, a dupla mostraria boa parte da técnica que impressionaria na Copa do Mundo, três anos depois. Aliás, é possível dizer que ninguém sabia, mas aquele momento de 1979 marcava o nascimento da equipe que faria papel elogiável na Copa de 1982, após idas e vindas. 

Antes do jogo: um Brasil que começava, um Ajax que iria mudar

Ainda técnico da Seleção no ano de 1979 - dividia-a com o comando do Flamengo -, Cláudio Coutinho (1939-1981) já pensava e adotava um tipo de jogo mais ofensivo do que as atuações cautelosas, até em excesso, na campanha da Copa de 1978. Tanto que muitos dos escalados para enfrentar o Ajax estariam na Espanha, três anos depois. Na zaga, Oscar e Edinho - este, reserva na Copa de 1982; no meio-campo, Falcão (a ausência mais criticada no Mundial do ano anterior), Toninho Cerezo e Zico; e Sócrates sendo experimentado como atacante. Além deles, havia outras experiências com nomes de frente. Jogariam o ponta direita Nilton Batata, um dos destaques do Santos campeão paulista de 1978 havia algumas semanas (sim, a decisão do título estadual de 1978 foi em junho de 1979); o ponta esquerda Joãozinho, causando furor no Cruzeiro com seus dribles; e tanto o meio-campo Zenon como o atacante Renato, ambos símbolos do Guarani campeão brasileiro do ano anterior. Isso, sem contar mais nomes da Copa de 1978, como o lateral direito Toninho, e o goleiro Leão, já considerado um símbolo de sua posição no país, naquela época. Em suma, o amistoso contra o Ajax era um teste importante para o Brasil. Até porque, no mês seguinte, viria a Copa América.

No Ajax, o clima era de férias, já que a temporada 1978/79 estava terminada. E ela estava bem terminada, até porque o clube comemorava mais um título holandês. De quebra, o nível técnico era elogiável, tanto que o time de Amsterdã seria semifinalista da Copa dos Campeões (o formato antigo da Liga dos Campeões) na temporada seguinte. Ainda assim, se sabia: era uma equipe muito, muito diferente do "Gloria Ajax" que impressionara o mundo no começo daquela década de 1970, com Johan Cruyff à frente. O único remanescente daqueles tempos era Ruud Krol. Ainda assim, o próprio Krol, já experiente (30 anos em 1979), já declarara que pensava em correr mundo, após tanto tempo em Amsterdã. Em 5 de junho daquele ano, ao diário Het Vrije Volk, Krol reconhecia: "Não consigo mais ter a vontade exigida para jogar por este clube. Uma mudança de ares faria bem. Já tive de jogar o suficiente neste mundinho".

Após o título holandês na temporada 1978/79, o Ajax partiria para uma excursão pela América do Sul antes das férias. Mas mudanças viriam (Voetbal International)

Mas Krol só deixaria o Ajax no ano seguinte, 1980, rumando para o Napoli-ITA. Em 1979, ele ainda capitanearia o clube, que ganhou o título holandês com goleada na última rodada - 8 a 1 no Twente, em 10 de junho - e rumou quase imediatamente para uma excursão sul-americana. Antes, a imprensa informou que ela começaria na Argentina, passaria pelo Uruguai, e terminaria no Brasil (o diário Algemeen Dagblad ainda disse que o jogo contra a Seleção estava indefinido, mas ele foi confirmado). E a delegação do Ajax veio à América do Sul pensando numa escalação quase titular. Os destaques jogariam: além de Krol, os mais falados eram os pontas Simon Tahamata (esquerda - considerado o grande talento técnico do Ajax, Tahamata começava sua passagem rápida pela seleção da Holanda) e Tscheu La Ling (direita). No meio-campo, estavam dois nomes dinamarqueses que se tornariam mais conhecidos nos anos 1980: Soren Lerby e Frank Arnesen. Porém, um dos principais destaques Ajacieden da época, o atacante inglês Ray Clarke, seria poupado da viagem. E entre os goleiros, o reserva Peter Jager teria preferência sobre o experiente Piet Schrijvers, que ficara em Amsterdã, machucado.

Com a passagem pelo Uruguai cancelada, o Ajax acabou ficando mais tempo do que esperava na Argentina. Fez três amistosos, com duas derrotas por 3 a 2, para River Plate (em 12 de junho - ao diário De Telegraaf, Ruud Krol se queixou: "O River Plate nos recebeu com dureza, foi um jogo tipicamente sul-americano") e Racing (em 14 de junho, no estádio do Vélez Sarsfield - o Racing se sagrara campeão argentino). Só haveria uma vitória do Ajax em campos argentinos, igualmente por 3 a 2, contra o Talleres, em 16 de junho de 1979. 

E depois, a delegação do Ajax já veio para o Brasil. A curiosidade era mútua, como Ruud Krol deixou claro ao De Telegraaf: "Na Argentina, só conhecem os jogadores do Ajax que também estão na seleção. O Ajax é mais famoso no Brasil, mas acho que as pessoas esperam uma equipe tão forte como a que tínhamos há seis anos. Também estamos muito curiosos com o nível técnico do Brasil". Do lado brasileiro, a curiosidade maior ia para um jogador: Simon Tahamata. Em relato para a revista Placar sobre o amistoso contra o River Plate, o jornalista argentino Pedro Urquiza alertou: "[Tahamata é] miúdo, de notável habilidade. Craque, irá dar muito trabalho a Toninho. Sabe lançar com precisão e fazer tabelas". Ao De Telegraaf, Cláudio Coutinho era até simpático ao atacante descendente de indonésios: "Gosto de ver Tahamata jogar. Ele devia vir jogar aqui [no Brasil], iria se dar bem".

Tahamata causava boa impressão, em seu surgimento no Ajax, naqueles idos (ANP)

Enfim, por mais que o favoritismo fosse do Brasil, havia respeito pelo Ajax, como a revista Placar resumiu: "O Ajax versão 1979 nada tem a ver com o time histórico da era Cruyff. Mas continua perigoso".

O jogo: Sócrates brilha no 1º tempo, Zico vence o boicote na etapa final

Contudo, bastou o jogo começar no estádio do Morumbi para que se visse: o Ajax estava em marcha lenta demais para aguentar o ritmo ofensivo que a Seleção Brasileira impôs desde que a bola rolou - só criou uma chance, aos 45', num voleio de La Ling para fora. Krol e seu companheiro de zaga, Piet Wijnberg, até tentaram sair com a bola para alguns ataques. E tanto o falado Tahamata quanto La Ling tentaram criar jogadas pelas pontas. Mas Oscar e Edinho, a dupla de zaga brasileira, nem sofreu muito para contê-los. No meio-campo, Falcão começava a se destacar, com passes longos, e Cerezo mostrou velocidade.

Só que, também desde os primeiros minutos, Sócrates deixou claro: o teste com ele como atacante (não se usava essa gíria, mas era um "falso 9") daria muito certo. Voltando para buscar a bola, o "Doutor" acelerava jogadas com seus habituais toques de calcanhar. E coroou essa ótima atuação já no primeiro gol, aos 9'. Foi o gol citado no começo deste texto. E será sempre evocado em qualquer coletânea de imagens que mostre a inteligência do "Magrão", como os mais próximos o chamavam. Falcão lançou a bola do meio-campo. Sócrates a dominou. Com um giro de corpo, se livrou da marcação de Krol e Wijnberg. E chutou colocado, no canto esquerdo de Jager, para fazer o golaço do 1 a 0.

(O primeiro gol de Brasil 5x0 Ajax, marcado por Sócrates, na transmissão da TV Cultura de São Paulo, com a narração de Luis Noriega. Exibido em 1992, no programa "Grandes Momentos do Esporte")

Sócrates não parou por aí na partida. Era sempre opção de jogo, principalmente com Nílton Batata: isso se veria aos 10', quando ele passou para Nílton chutar por cima do gol de Jager. Pouco depois, aos 14', e um chute do camisa 9 (sem usar a 8 que o tornou conhecido, principalmente, no Corinthians) atingiu o travessão. Os outros destaques do Brasil apareceram ao longo dos 45 minutos iniciais: Falcão tentou aos 21', Zico cobrou bem falta aos 34', e Jager apareceu com duas defesas. Mas Sócrates terminou o primeiro tempo ressaltando o "cartão de visitas" que dava em seu segundo jogo pela Seleção. Aos 44', após troca de passes, Toninho lançou pela direita, Nílton Batata cruzou, e o paraense fez 2 a 0 completando para o gol vazio. Já fazia por merecer a manchete que o diário De Volkskrant estampou, em 23 de junho de 1979, na notícia sobre o amistoso: "De uitblinker Socrates leest Ajax de les" (em holandês, "O destaque Sócrates dá lição ao Ajax").

Com a vantagem no placar, Cláudio Coutinho já começou o segundo tempo fazendo mais alterações. No gol, Carlos substituiu Leão; no meio-campo, Zenon estreava pela Seleção, substituindo Toninho Cerezo. E se viram dois méritos brasileiros. Em primeiro lugar, Zico e Sócrates começaram a trocar mais de posição no ataque, complicando ainda mais o Ajax. Em segundo lugar, Toninho, lateral bastante ofensivo (já jogara assim na Copa de 1978), teve o prêmio de seu gol, aos 54', após passe em profundidade de Joãozinho. E aí, foi a vez de Zico ser o destaque, superando um boicote que andava popular por aqueles tempos. Mesmo que já tivesse destaque desde o seu primeiro jogo pela Seleção Brasileira (em 25 de fevereiro de 1976, fez os dois gols da vitória por 2 a 1 sobre o Uruguai, em Montevidéu, na Taça do Atlântico, triangular amistoso que tinha ainda a Argentina), o "Galinho de Quintino" ainda era visto fora do Rio de Janeiro como alguém que tinha fama demais e bola de menos. Fora dos domínios fluminenses, era chamado pejorativamente de "craque de Maracanã".

Mesmo já a passos firmes no caminho de se tornar o maior jogador da história do Flamengo, mesmo já nome fundamental na Seleção, muitos paulistas duvidavam de Zico. Em matéria no programa Esporte Espetacular, da TV Globo, em 2021, o ex-jogador comentou que apenas dois jornalistas de rádio lhe enalteciam em São Paulo: Fausto Silva, então repórter esportivo da Rádio Globo paulista, e Wanderley Nogueira, já ativo então na Rádio Jovem Pan em que ainda está. Nos treinos antes do amistoso, já no Morumbi, ele chegou a ser vaiado ao perder um pênalti. E o boicote teve um capítulo negativo no segundo tempo. Zico fez o quarto gol (aos 70', tocando na saída do goleiro após Renato ajeitar lançamento) e o quinto (aos 75', após jogada individual de Joãozinho). Obviamente, o placar estava em 5 a 0 para o Brasil. Entretanto, por pura birra, o placar do Morumbi ficou fixo em 3 a 0, como se omitisse os gols de Zico, como se não servissem de nada. Na reportagem citada, Zico diz que só notou o boicote quando Zenon veio festejar um dos gols com ele e lhe falou que não ligasse, que ignorasse a deselegância.

Naquela época, Zico sofria com o boicote de parte - até grande - de quem acompanhava futebol em São Paulo. Começou a vencer isso com dois gols contra o Ajax, mesmo sem o registro no placar do Morumbi (Gazeta Press)

Houve outros bons momentos do Brasil, como aos 67', num chute de Nílton Batata que Jager rebateu. O Ajax só chegou duas vezes, num chute de Tahamata aos 55' (Carlos pegou) e num arremate de Soren Lerby para fora após escanteio, aos 85'. O time de Amsterdã foi completo coadjuvante, numa ótima atuação do Brasil (o De Telegraaf estampou na manchete de 23 de junho: "Um Ajax sem chances contra o Brasil"). Aquela goleada indicou um caminho. Que passaria por solavancos: a Seleção seria eliminada nas semifinais da Copa América de 1979, Cláudio Coutinho seria trocado por Telê Santana com o advento da CBF (entidade originada naquele ano)... Mas, afinal, a boa impressão seria confirmada com alguns bons momentos na Copa de 1982.

Em grande parte, com a dupla Sócrates-Zico. Que começou a brilhar contra o Ajax.


Brasil 5x0 Ajax

Data: 21 de junho de 1979
Local: Estádio Cícero Pompeu de Toledo/Morumbi (São Paulo)
Árbitro: José Roberto Wright
Gols: Sócrates, aos 9' e aos 44', Toninho, aos 54', e Zico, aos 70' e aos 75'

BRASIL
Leão (Carlos, aos 46'); Toninho, Oscar, Edinho e Júnior; Falcão, Toninho Cerezo (Zenon, aos 46') e Zico; Nílton Batata, Sócrates (Renato, aos 62') e Joãozinho. Técnico: Cláudio Coutinho

AJAX
Peter Jager; Wim Meutstege, Piet Wijnberg, Ruud Krol e Peter Boeve; Søren Lerby, Dick Schoenaker e Frank Arnesen; Tscheu La Ling (Ton Blanker, aos 68'), Karel Bonsink (Ruud Kaiser, aos 72') e Simon Tahamata. Técnico: Cor Brom

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