sexta-feira, 16 de março de 2018

Feyenoord City: diretoria x torcida

A diretoria quer acelerar a construção da Feyenoord City. Falta combinar com a torcida (ANP)

Há algum tempo, o Feyenoord voltou a viver em paz interna. Independentemente das decepções desta temporada dentro de campo (que podem até ser minoradas, caso o time ganhe a Copa da Holanda que decidirá com o AZ em abril), a situação financeira do Stadionclub está relativamente tranquila – longe se vão dias como os de 2010, quando o dinheiro doado por um grupo de empresários foi muito bem vindo para ajudar a salvar o clube. Porém, por baixo dessa tranquilidade, há uma turbulência vindo aí. Com possibilidade de ser explosiva – para o clube e para a torcida.

Se havia dúvidas disso, elas acabaram justamente na rodada passada do Campeonato Holandês. O resultado até agradou - após duas derrotas em sequência, o Feyenoord fez 2 a 1 justamente no AZ -, mas o mais impressionante do jogo foram as faixas levantadas em vários setores de De Kuip. Iam de um singelo “I love De Kuip” até o trocadilho jocoso “Goldman Sucks” (logo será explicado), passando por “Feyenoord ja, City nee” (em holandês, “Feyenoord sim, City não”). Foi a eclosão definitiva de algo que já se via aqui e ali, entre uma partida e outra: a oposição aberta de parte considerável da torcida a um projeto ambicioso, que tentará fazer do clube um alvo mais atraente para grandes contratações e investimentos pesados. Trata-se da Feyenoord City.

Projeto apresentado no meio do ano passado pela diretoria do clube, tem uma grandeza impressionante, a princípio. Parte da intenção da construção de um novo estádio – De Nieuwe Kuip, “a nova banheira”, à beira do rio Maas, na zona sul de Roterdã – para construir um verdadeiro complexo de entretenimento ao redor dele: hotel quatro estrelas, spa, ancoradouro para barcos (possibilitando até que os torcedores possam ir ao estádio de transporte... marítimo). Tudo isso, sem deixar de lado o velho De Kuip, que teria uma parte transformada em praça pública – e a outra seria mantida para competições poliesportivas, aberta à população de Roterdã e também servindo de sede para a ampliação do museu do Feyenoord. Valor do projeto: vultosos 422 milhões de euros.

A Feyenoord City e sua intenção ambiciosa: unir o velho e o novo Kuip para mobilizar Roterdã (feyenoordcity.nl)
Tudo muito bom, tudo muito bem, tudo muito moderno. E a princípio, agradou a torcida. Em 2016, Gerard Hoetmer, presidente do Conselho Deliberativo do clube, apresentava uma enquete na qual 84 por cento dos torcedores se dizia a favor da Feyenoord City. E terminava: “Se isso não der certo, teremos problemas. Eu não quero problemas, então dará certo”. E a previsão da presença dos adeptos nos rumos do projeto, ao longo dos anos seguintes, fazia crer que o projeto era altamente promissor para elevar o Feyenoord.

Tal crença mudou drasticamente quando o conselho de torcedores do clube viu a que estava restrita a presença, nas reuniões sobre a Feyenoord City: era apenas para consultas sobre mobilidade e acessibilidade, como se tudo já estivesse definido de antemão. Se alas de De Kuip eram realmente ouvidas, eram apenas as alas reservadas aos diretores do clube, que têm visíveis poltronas vermelhas reservadas a eles no estádio. O torcedor comum, que fica nos lances inferiores de arquibancada – em geral, cadeiras de ferro pintadas de azul, muito próximas ao campo – passava em branco. E não era consultado nem mesmo quando eram reveladas coisas que podem resultar num futuro preocupante, se mal administradas.

Por exemplo, o empréstimo financeiro para a construção, que o clube já alinhavou com dois bancos de investimento que dispensam apresentações a quem entenda de economia: Goldman Sachs e IMG. Parceiros caso a Feyenoord City saia do papel, os fundos obviamente pressionam a diretoria para acelerar a resolução dos trâmites burocráticos e o início da construção. Escaldada pelos tempos de dívidas astronômicas (afinal, em algum momento o empréstimo terá de ser pago pelo Feyenoord), a torcida teme que o clube assuma compromissos que não poderá pagar posteriormente.

E pouco a pouco, direciona aos parceiros parte de sua discordância – daí o “Goldman Sucks” supracitado da faixa vista no domingo passado, contra o AZ. Chefe do departamento esportivo do banco norte-americano, Greg Carey riu, ao jornal Algemeen Dagblad: “Tudo bem, as pessoas têm dificuldades com mudanças. Mas falar ‘Goldman Sucks’?! Ora, nem sabíamos que o Feyenoord queria um estádio novo. Nós só fazemos aquilo que somos bons em fazer”. De fato, nesse ponto, não há o que questionar sobre a competência da organização financeira. Basta citar o envolvimento dela na construção do novo estádio do Tottenham – e no futebol americano, com o erguimento do Levi’s Stadium, a nova casa do San Francisco 49ers.

“Então, qual a sugestão da ala popular?”, pode-se perguntar. Pois é uma sugestão singela, mas desconsiderada da direção do Feyenoord. Uma sugestão expressa numa das faixas expostas no domingo passado, contra o AZ: “Renoveer De Kuip” (dá para entender o que significa, não?). De fato, embora não seja o mais novo dos estádios – são 80 anos -, a casa do Feyenoord ainda tem plenas condições de atender aos adeptos em tudo que for necessário. É o típico caso de estádio que ficaria como novo com uma reforma.

De mais a mais, é preciso entender: mesmo que a Feyenoord City saia do papel, se mostre viável e os empréstimos sejam pagos, será inevitável certo lamento da torcida. Não é à toa que o apelido do Feyenoord é “Stadionclub” (em holandês, “o clube do estádio”): por incrível que possa parecer a quem nasceu vendo a modernidade da Amsterdam Arena, o De Kuip é o estádio mais tradicional do futebol holandês. Motivos não faltam: lá foram jogadas dez finais de torneios continentais de futebol, incluindo duas decisões de Copas dos Campeões. Lá a França conquistou a Euro 2000. Lá a seleção holandesa ainda atua na maioria das partidas. Sem contar as várias apresentações musicais feitas sobre o gramado da “banheira”. Tudo isso, registrado nos muros de cada lado do corredor que leva os jogadores até a escada para o gramado. Só esse caminho já dá uma ideia da tradição que De Kuip tem no futebol europeu.

Após as manifestações da torcida, a administração do estádio e a diretoria do Feyenoord já se apressaram em emitir uma nota, afirmando que nada está certo, que todos os estudos sobre a viabilidade financeira serão refeitos, que os parceiros são de plena confiança (e até são) etc. Enfim, a torcida mostrou: estará de olho. Já que o Campeonato Holandês rende ao clube um melancólico 5º lugar até o momento, e a final da Copa da Holanda faz prever um jogo equilibrado com o AZ, o Feyenoord já pensa neste jogo, fora de campo. Que será ainda mais debatido do que os vistos dentro das quatro linhas.


(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 16 de março de 2018)

Nenhum comentário:

Postar um comentário