quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A Holanda nas Copas masculinas: 2014 - Uma surpresa agradável

Com a perda de jogadores e uma mudança de esquema às pressas, a Holanda esperava pouco da Copa de 2014. Robben foi decisivo, os novatos se esforçaram... e o prêmio foi um terceiro lugar marcante (Getty Images)

Do time altamente competitivo, que foi quase perfeito no vice-campeonato mundial de 2010, a seleção masculina da Holanda decaiu bruscamente na Euro 2012: um time desfocado, desunido, impaciente protagonizou o grande vexame daquele torneio, caindo logo na fase de grupos, com três derrotas em três jogos (para Dinamarca, Alemanha e Portugal, no grupo mais equilibrado daquela Euro). Precisou passar por reformulação no caminho até a Copa de 2014. Atraía poucas expectativas - na maioria das vezes, expectativas pessimistas. Pois a Laranja superou tudo isso, com o esforço de muitos e o brilho de poucos, para conseguir uma das surpresas mais agradáveis de sua história nos Mundiais masculinos, conseguindo o terceiro lugar no Brasil.

Ninguém poderia imaginar isso na época, mas a reação honrosa começou logo após o fracasso na Euro 2012. Foi quando Louis van Gaal, desempregado após a saída do Bayern de Munique, enfim aceitou voltar à seleção masculina. Até porque tinha uma espécie de "dívida pessoal" a pagar, tendo sido o treinador da malfadada campanha nas eliminatórias da Copa de 2002, uma das grandes manchas que sua carreira tinha até ali. Para tentar apagá-la, Van Gaal já começou a fazer a reformulação em sua reestreia à frente da seleção (amistoso contra a Bélgica, no dia 15 de agosto de 2012, em Bruxelas). Mesmo com a derrota neerlandesa - Bélgica 4 a 2 -, ali estrearam vários nomes na seleção: Ricardo van Rhijn, Stefan de Vrij, Bruno Martins Indi, Nick Viergever, Adam Maher... Se era formado por novatos em 2004, àquela altura o quinteto Arjen Robben-Wesley Sneijder-Rafael van der Vaart-Dirk Kuyt-Robin van Persie teria de guiar a nova geração que aparecia. Seria necessário, já que o grupo D das eliminatórias europeias para a Copa de 2014 teria algum risco em Turquia e Romênia - Hungria, Estônia e Andorra como prováveis coadjuvantes. Pelo menos nas eliminatórias, deu certo. Primeiro, porque a geração de novatos que surgia teve um tremendo impulso em 2013: na Euro sub-21, disputada naquele ano em Israel, chegou às semifinais, com nomes já convocados em 2012 (Van Rhijn, De Vrij, Martins Indi, Maher - até mesmo Kevin Strootman, que já tinha a Euro 2012 no currículo) somados a outros que estreariam pela Oranje adulta em 2013: Daley Blind, Jordy Clasie, Leroy Fer, Memphis Depay - este, campeão europeu sub-17 com a Laranja, dois anos antes. 

Após a gigante decepção dos Países Baixos na Euro 2012, Louis van Gaal voltou à Oranje. Até porque tinha uma insatisfação pessoal a solucionar (Koen van Weel/ANP/AFP via Getty Images)

Segundo, porque os veteranos justificaram a confiança dada a eles por Van Gaal: se Wesley Sneijder causava fortes desconfianças no técnico por sua queda física e técnica - e seu aparente pouco esforço em resolver isso -, Van Persie e Robben compensavam isso. E a seleção também dominou o grupo na qualificação, com mais facilidade do que se pensava antes. Ganhou da Turquia em casa (2 a 0 em Amsterdã, na primeira rodada, em 7 de setembro de 2012) e fora (já classificada, outros 2 a 0 em Istambul, em 15 de outubro de 2013). Da Romênia, idem: 4 a 1 em Bucareste, na quarta rodada da qualificação (16 de outubro de 2012), 4 a 0 em Roterdã, na sexta rodada (26 de março de 2012). Em 10 de setembro de 2012, a garantia da classificação à Copa, na oitava rodada - 2 a 0 em Andorra, fora de casa. E na penúltima rodada, em 11 de outubro de 2013, o 8 a 1 na Hungria, em Amsterdã, teve festa: afinal, Robin van Persie se transformou ali no maior goleador da história da seleção. Só um empate contra a Estônia - 2 a 2 em Tallinn, em 6 de setembro de 2013 - impediu, novamente, 100% de aproveitamento nas eliminatórias, como fora em 2010.

Quando o 2014 da Copa começou, Van Gaal tinha um time bem delineado, um esquema tático bem definido (4-3-3) e destaques (principalmente Van Persie). Mas os meses pré-Copa forçaram mudanças profundas. Todas, a partir de uma dura derrota em amistoso - 2 a 0 para a França, em Saint-Denis, no dia 5 de março de 2014. Justamente nessa partida, Strootman, tratado então como um intocável entre os titulares da Holanda, lesionou o joelho esquerdo. Mesmo sem forma total, Strootman entrou em campo pela Roma no fim de semana seguinte, contra o Napoli... e rompeu de vez o ligamento cruzado anterior do mesmo joelho. Estava fora da Copa. Começava ali a ideia de Van Gaal, para mitigar o impacto da perda no meio-campo: um estilo de jogo que protegesse mais a defesa - inspirado nos bons resultados que Ronald Koeman conseguia daquela maneira, no Feyenoord.

Esta lesão tiraria Strootman (camisa 8, sentado) da Copa de 2014 - e seria o ponto de virada para o planejamento de Van Gaal rumo ao torneio (VI Images/Getty Images)

Van Gaal chamou a sua lista de jogadores: poucos veteranos (os conhecidos), muitas apostas (em lugar de vários nomes que perderam espaço - por exemplo, na lateral direita, Daryl Janmaat ganhava espaço com a queda técnica de Gregory van der Wiel). A reta final de preparação para a Copa, em Portugal, trouxe mais um dissabor: o corte de Van der Vaart, por lesão muscular. Pelo menos, ali o treinador começou a incutir e a entrosar o grupo dentro do 5-3-2 que tinha em mente para a Holanda na Copa. Convenceu os mais jovens, ganhou o respeito dos veteranos. Para o treinador, se resguardar mais era o único jeito da seleção dos Países Baixos ter alguma perspectiva na primeira fase, diante do difícil grupo B, em que reencontraria a Espanha, algoz na final da Copa de 2010, e pegaria o Chile, com a grande geração da história de sua seleção no auge. A ideia era que a maioria do time se esforçasse, para que o trio de destaque - Sneijder, Robben, Van Persie -, quem sabe, decidisse.

Entre gente que não convencia totalmente - como Jasper Cillessen, bem visto pela comissão técnica, mas desconhecido da maioria dos que acompanhariam a Copa -, gente que era bem vista por Van Gaal - como De Vrij, já absoluto na defesa, mesmo com pouca idade - e os veteranos, havia tensão antes da estreia na Copa, justamente contra a Espanha, na Fonte Nova de Salvador, em 13 de junho de 2014. Van Gaal notou. Pediu, e foi atendido: organizou-se um encontro dos jogadores com seus familiares, no hotel em Salvador. Pelo menos no início, pouco adiantou: a Espanha começou mais ofensiva, abrindo um placar num pênalti (duvidoso, é verdade), cobrado por Xabi Alonso. Mas aí, antes do intervalo... veio o peixinho de Van Persie, num lançamento de Blind, para um dos gols mais lembrados daquela Copa, da história da Holanda nas Copas, da história das Copas. No segundo tempo, motivada, a Laranja buscou a virada e a goleada, numa atuação irrepreensível de Robben e Van Persie. E os 5 a 1 - "de wraak van Salvador", a "vingança de Salvador", como aquela partida ficou conhecida no anedotário do futebol neerlandês - já foram entronizados imediatamente como uma das vitórias mais saborosas da história da Holanda em Copas.


A goleada foi útil até por indicar mudanças que logo Van Gaal consumaria: por exemplo, efetivar Georginio Wijnaldum entre os titulares, no lugar de Jonathan de Guzmán. Contudo, o segundo jogo afastou qualquer excesso de badalação que pudesse animar além da conta o ambiente receptivo que a delegação da Holanda vivesse no Brasil - mais precisamente, no hotel Caesar Park, de frente para a  Praia de Copacabana, quartel-general laranja naquele Mundial. Em 18 de junho de 2014, contra a Austrália, no Beira-Rio de Porto Alegre, o 1 a 0 de Robben parecia fazer prever outra vitória categórica. Mas os australianos, valorosos, empataram logo depois - em golaço de Tim Cahill. Viraram o jogo no segundo tempo, num pênalti convertido por Mile Jedinak - escolhendo o canto e pulando antes da cobrança, Cillessen perdeu ali o crédito com a comissão técnica para a possibilidade futura das disputas de pênalti. Mas aí, Van Persie reapareceu, empatando. E Memphis Depay, se convertendo na revelação neerlandesa da vez, marcou o gol da virada e da vitória por 3 a 2. Que não enganou ninguém: nem de longe o ambiente no avião da volta ao Rio de Janeiro lembrou as festividades após a goleada contra a Espanha.

Pelo menos, a classificação para as oitavas de final estava garantida. Restava buscar o primeiro lugar do grupo B, para escapar da perspectiva de ter o país-sede Brasil nas oitavas de final. Contra o Chile, em São Paulo, em 23 de junho de 2014, sem o suspenso Van Persie, a Holanda se segurou primeiro - incluindo a primeira mostra do esforço que Dirk Kuyt simbolizou naquela Copa, começando o improviso na lateral direita - para brilhar no fim: só após os 75' vieram os dois gols da vitória, com Leroy Fer, em cabeceio no seu primeiro toque na bola depois de substituir Sneijder, e Memphis Depay. 2 a 0, três jogos, três vitórias: as críticas seguiam contra aquela maneira que Van Gaal escolhera para tentar ir longe na Copa do Mundo, mas estava dando certo.

De todo modo, as oitavas de final seriam um teste bem mais sério para aquele time. Mais mudanças foram feitas para o jogo contra o México, em 29 de junho de 2014, no Castelão de Fortaleza - por exemplo, Paul Verhaegh para a lateral direita, nos seus primeiros e únicos 45 minutos naquela Copa. Não deu muito certo no começo: sofrendo sob o calor das 13h de Brasília, vendo o veterano Nigel de Jong precisar sair aos 9' (problema muscular), a Holanda viu os mexicanos serem superiores no primeiro tempo, e comprovarem isso já no começo do segundo, com o gol de Giovani dos Santos. Só aí o ataque da Laranja mostrou sua força: com a pressão de Van Persie, com as arrancadas de Robben, com a entrada de Memphis Depay. Tudo isso era bloqueado pelo goleiro Guillermo "Memo" Ochoa, tendo outra atuação marcante naquela Copa. Até Sneijder, aos 88', enfim empatar. Pouco depois, a polêmica queda de Robben após ser acossado por Rafa Márquez - alguns juízes marcariam, outros não. Para o azar mexicano, o português Pedro Proença marcou. E Huntelaar fez o 2 a 1 da virada, aos 90' + 2. A Holanda passara de seu teste, na última das últimas horas.

Teria mais um teste nas quartas de final, contra a Costa Rica, de novo na Fonte Nova, em 5 de julho de 2014. Nem tanto pelos ataques dos Ticos: a Holanda dominou, a Holanda mandou várias bolas na trave, a Holanda fez do goleiro Keylor Navas o melhor em campo. Mas exatamente por essa resistência dos costarriquenhos é que a Laranja poderia chegar desgastada à decisão por chutes da marca do pênalti. Qualquer erro poderia ser punido - e mesmo se não se errasse, a seleção centroamericana chegaria mais motivada para as cobranças. Então, um plano já tido desde que Cillessen se precipitou no pênalti com que a Austrália fizera seu segundo gol, na fase de grupos, foi colocado em prática. Tim Krul fora avisado no hotel em Salvador, ainda: caso a decisão da vaga nas semifinais fosse para os pênaltis, ele seria colocado. Minimizou a princípio, mas foi avisado mais enfaticamente. Krul estudou os batedores da Costa Rica no ônibus para a Fonte Nova. Acabou tendo de ir a campo, no último minuto da prorrogação. E defendeu as cobranças de Bryan Ruiz e Michael Umaña, levando a Laranja às semifinais da Copa, num lance tão surpreendente quanto pitoresco.


Mesmo com o trajeto irregular - muito boa na fase de grupos, altamente oscilante nas fases eliminatórias -, a Holanda chegava a uma semifinal a que não esperava chegar. Contra a Argentina, em 9 de julho de 2014, em São Paulo, o ataque holandês foi freado - assim como a defesa freou os avanços da Albiceleste. Robben ainda teve grande chance no minuto final do tempo normal, mas Javier Mascherano bloqueou a finalização. Já na prorrogação, Van Gaal começou a conversar com o auxiliar Danny Blind, sobre qual seria sua terceira alteração no jogo. Uma coisa era certa: não repetiria a troca Cillessen-Krul - achava que era possível ganhar a partida com bola rolando. Ouviu a opinião de Blind: talvez a entrada de Memphis Depay, veloz e jovem, pudesse ser o diferencial, contra uma defesa argentina que já estava se cansando. Porém, Van Gaal tomou a decisão da qual ainda se arrepende: preferiu colocar Klaas-Jan Huntelaar, no lugar de um cansadíssimo Van Persie, que sofrera com problemas de estômago entre as quartas de final e as semifinais.

A atuação de Huntelaar passou em branco na prorrogação. O 0 a 0 permaneceu no placar, após 120 minutos. E a decisão do lugar na final da Copa iria, de novo, para os chutes da marca do pênalti. Na Holanda, houve quem se negasse a ser batedor. De atuação elogiada com bola rolando, Ron Vlaar se apresentou para ser um dos cobradores - e abriu a série perdendo seu chute (o goleiro Sergio Romero pegou), para lamentação da família, que o via no estádio, e de Van Gaal, que aprendeu a admirar seu foco ao longo da Copa. Sneijder também perdeu seu chute - mais uma defesa de Romero. A Argentina teve todas as suas cobranças convertidas, fazendo 4 a 2. E o sonho de repetir uma final de Copa acabou ali para a Holanda. Poderia ser um tremendo trauma, como foi em 1998.

Não foi. Coube a Patrick Kluivert, auxiliar de Van Gaal na Copa, lembrar os 23 jogadores, no dia seguinte à derrota na semifinal: ele estivera na derrota para o Brasil em 1998, e perder a decisão de 3º e 4º lugares para a Croácia só aumentou a depressão. Se não era a final desejada, ganhar a partida de 12 de julho de 2014, em Brasília, contra um Brasil alquebrado pelos 7 a 1 para a Alemanha na semifinal, seria um final merecidamente honroso para uma campanha inesperadamente respeitável da Holanda. A palestra involuntária de Kluivert foi a injeção de ânimo de que o grupo precisava.

Mesmo na decisão da 3ª posição, o foco neerlandês seguiu. No vestiário, Van Gaal perguntou a De Vrij o que ele deveria fazer na partida. De Vrij explicou direito: marcaria Hulk, e deveria prestar atenção também a Oscar. Impressionado com o detalhismo do zagueiro, o treinador só deu dois afetuosos tapinhas no ombro e lhe disse: "Se você quiser, será um ótimo treinador". A atenção de De Vrij foi a atenção de Robben e Van Persie, no ataque. Foi a intensidade de todo o time. Premiado com a campanha invicta, coroada com o 3 a 0 no Brasil - e a entrada de Michel Vorm, o segundo goleiro, fazendo com que todos os 23 jogadores convocados tivessem pelo menos um minuto em campo.


Depois da Copa, Van Gaal se foi para o Manchester United. A seleção masculina da Holanda teve todas as falhas abertas, fracassando nas eliminatórias da Euro 2016, como já não fazia havia tempos. Uma queda que parecia surpreendente. Mas que, vista mais de perto, era até previsível, pelo fim de uma geração de veteranos. Talvez, só não tenha acontecido em 2014 porque uma equipe muito bem treinada, uma alternativa tática muito bem pensada e as atuações decisivas de Arjen Robben renderam uma campanha muito melhor do que se esperava.

Os convocados da Holanda para a Copa de 2014

Goleiros
1-Jasper Cillessen (Ajax) - 7 jogos, 4 gols sofridos
22-Michel Vorm (Swansea-GAL) - 1 jogo
23-Tim Krul (Newcastle-ING) - 1 jogo

Defensores
3-Stefan de Vrij (Feyenoord) - 7 jogos, 1 gol
5-Daley Blind (Ajax) - 7 jogos, 1 gol
2-Ron Vlaar (Aston Villa) - 7 jogos
4-Bruno Martins Indi (Feyenoord) - 6 jogos
7-Daryl Janmaat (Feyenoord) - 5 jogos
13-Joël Veltman (Ajax) - 2 jogos
12-Paul Verhaegh (Augsburg-ALE) - 1 jogo
14-Terence Kongolo (Feyenoord) - 1 jogo

Meio-campistas
20-Georginio Wijnaldum (PSV) - 7 jogos, 1 gol
10-Wesley Sneijder (Galatasaray-TUR) - 6 jogos, 1 gol
6-Nigel de Jong (Milan-ITA) - 6 jogos
8-Jonathan de Guzmán (Swansea-GAL) - 3 jogos
16-Jordy Clasie (Feyenoord) - 2 jogos
18-Leroy Fer (Norwich City-ING) - 1 jogo, 1 gol

Atacantes
11-Arjen Robben (Bayern de Munique-ALE) - 7 jogos, 3 gols
9-Robin van Persie (Manchester United-ING) - 6 jogos, 4 gols
15-Dirk Kuyt (Fenerbahçe-TUR) - 5 jogos
17-Jeremain Lens (Dynamo Kiev-UCR) - 4 jogos
21-Memphis Depay (PSV) - 4 jogos, 2 gols
19-Klaas-Jan Huntelaar (Schalke 04-ALE) - 3 jogos, 1 gol

Técnico: Louis van Gaal

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