quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Grandes laranjas: Gullit


Liderança, carisma, habilidade, força: Ruud Gullit tinha tudo isso, e por tudo isso é um dos nomes mais marcantes do futebol da Holanda em todos os tempos (Paul Popper/Popperfoto/Getty Images)

Força física? Ele tinha: suas arrancadas do meio-campo para o ataque e sua vitalidade na área foram duas das grandes marcas de sua carreira. Habilidade? Ele também tinha: sua capacidade de finalização era notável, pelo alto (com potentes cabeceios) ou por baixo, bem como sua facilidade para tabelar com parceiros. Versatilidade? Também presente nele: partia de ser um ponta-de-lança para poder jogar em todas as posições do ataque - ou até recuado, como um líbero. Carisma? Sobrava e sobra nele: além de ter sido capitão da seleção masculina da Holanda, como esquecer a fase em que seus dreadlocks e seu bigode lhe tornaram um dos nomes mais reconhecíveis do futebol mundial?! Enfim, Ruud Gullit foi e é um personagem único no futebol dos Países Baixos. E merece as celebrações que terá pelos 60 anos que completa neste 1º de setembro.

Uma infância formadora de caráter - e de capacidade

Gullit teve uma infância diferente. A começar pelo seu nascimento: a história começou quando seu pai, o surinamês George Gullit (ele mesmo, um jogador de futebol), migrou para Amsterdã com a família, em 1958. Já ambientado na capital da Holanda (Países Baixos), George conheceu uma nativa, Ria Dil. E iniciou uma relação extraconjugal com Ria. Pois Ruud nasceu como fruto dessa relação. E ela teve consequências em seus sobrenomes: embora fosse conhecido e chamado desde a infância como Gullit, pelo sobrenome paterno, o pequeno foi registrado em cartório com o sobrenome da mãe. Era Ruud Dil - que mesmo com a turbulência, teve relação normal com o pai George, mesmo que este tenha voltado a morar com a família estável que tinha, após a traição conjugal.

Dil ou Gullit, o fato é que Ruud tinha no futebol a sua principal diversão, desde a infância. Já chamava a atenção pela habilidade, nos bate-bolas de que tanto gostava de participar, no Jordaan, o bairro operário de Amsterdã em que viviam suas famílias materna e paterna. Sabia-se: se ele tivesse tempo livre, logo ia jogar peladas na Balboaplein, a Praça Balboa, um dos principais pontos de encontro do Jordaan. Ali, inclusive, o jovem Ruud conheceu um outro garoto descendente de surinameses, que virou amigo fora de campo (é até hoje) e viraria colega dentro dele: Frank Rijkaard.

Desde crianças, Gullit e Rijkaard foram unidos pelo futebol - união que seguiu na adolescência, como mostra a foto de ambos no DWS (Arquivo pessoal)

Foi nos bate-bolas da Balboaplein que Ruud cresceu, se aprimorou... até ganhar as primeiras chances em pequenos times infantis. Começou em 1967, no Meerboys, uma equipe que juntava os melhores meninos do Jordaan. Em 1975, a brincadeira começou a ficar mais séria: foi quando Gullit - e o amigo Rijkaard - foram para o DWS, tradicional clube de Amsterdã, que já voltara ao amadorismo, após um período como agremiação profissional (o destino poderia ter sido o Ajax, mas gozações de um técnico da base sobre o Jordaan soaram arrogantes e magoaram ambos). E finalmente, em 1978, Gullit chegou ao clube em que se iniciaria para valer no futebol: o Haarlem, extinto em 2010.

Por sinal, Gullit seria o símbolo do último grande momento da história do Haarlem, mesmo tão novo.

No Haarlem, mesmo chegando aos 20 anos, Gullit foi o destaque de um dos grandes momentos da história do clube - e mostrou que estava pronto para façanhas maiores (ANP)

Destaque precoce

O Haarlem dividia o interesse no novato com grandes dos Países Baixos, como Ajax e Feyenoord. Mas o técnico da equipe, o galês Barry Hughes (1937-2019) ganhou a disputa por Gullit com uma promessa feita ao pai George: permitiria que o jovem Ruud terminasse os estudos regulares, antes de colocá-lo mais intensamente no time principal do Haarlem. Dito e feito: mesmo chegando ao clube rubroazul em 1978, Gullit só estreou pelo time em 18 de agosto de 1979, a poucos dias de completar 17 anos, num empate em 2 a 2 contra o MVV Maastricht, pelo Campeonato Holandês.

Mesmo muito novo, Gullit já era forte fisicamente, além de talentoso. O que serviu para que Barry Hughes o escalasse como líbero, ampliando sua capacidade em várias posições. Inicialmente, de pouco adiantou para o Haarlem, que foi rebaixado para a segunda divisão naquela temporada 1979/80. Só então, Gullit despontou para valer no futebol da Holanda. Em 1980/81, já adiantado para o meio-campo, o jovem foi o destaque inquestionável do Haarlem: em 36 jogos, marcou 14 gols, sendo a cara do título e da volta do clube à primeira divisão. Marco também reconhecido individualmente: aos 18-quase-19 anos, Ruud foi escolhido o melhor jogador da segunda divisão naquela temporada.

Já era muito? Seria ainda mais em 1981/82: com o Haarlem de volta à Eredivisie, Gullit foi a cara de uma campanha histórica. Foram 14 gols em 31 jogos, sendo novamente o símbolo de uma façanha dentro de campo: o Haarlem chegou à quarta posição do Campeonato Holandês daquela temporada, garantindo uma vaga na Copa da UEFA - única vez em que o clube rubroazul jogou um torneio europeu em sua história. Em campo, Gullit era o principal responsável por isso. Já conseguia as primeiras participações na seleção sub-21 da Holanda. Já estreava até pela seleção principal - Gullit entrou no intervalo de um amistoso contra a Suíça, em 1º de setembro de 1981 (vitória suíça, 2 a 1).


E teria o grande reconhecimento no meio de 1982: foi o novo reforço do Feyenoord, onde aprenderia bastante com quem mais tinha a ensinar em matéria de futebol, na Holanda.

No Feyenoord, aprendendo com Cruyff - para praticar na seleção

Em 1982/83, sua primeira temporada no Stadionclub, Gullit teve sua colaboração no vice-campeonato: titular absoluto no meio-campo Feyenoorder, fez oito gols pelo Campeonato Holandês. Na seleção, se alternando entre banco de reservas e o campo, ganhava chances do técnico Kees Rijvers nas eliminatórias da Euro 1984 - e até marcava seu primeiro gol pela Laranja, no 2 a 1 contra a Irlanda, pela qualificação do torneio europeu de seleções. Todavia, seria em 1983/84 o grande salto de Gullit. Seu talento já enorme foi aprimorado com o auxílio do maior craque da história neerlandesa, no momento mais controverso de uma carreira já controversa. Naquela temporada, a última de sua carreira profissional, Johan Cruyff decidiu alfinetar a diretoria do Ajax que o dispensara do modo mais dolorido possível: uma passagem pelo arquirrival de Roterdã.

Cruyff alfinetou o Ajax indo ser campeão também no Feyenoord - e teve em Gullit um dos melhores pupilos que poderia ter (Pro Shots)

Chegando para ser o óbvio centro das atenções no Feyenoord, Cruyff fez de Gullit o seu principal pupilo no time, aquele que deveria aprender o caminho das pedras para depois seguir sozinho. E o jovem - com os dreadlocks que já começavam a crescer naquele 1983 - aprendeu. Começou a mostrar isso na seleção holandesa. O ponto de virada de Gullit vestindo laranja se deu em 12 de outubro daquele ano. Num jogo decisivo contra a Irlanda, pela sexta rodada das eliminatórias da Euro 1984, a Holanda perdia por 2 a 0, fora de casa. Junto a outros novatos que começavam o caminho na Oranje, como Ronald Koeman e Marco van Basten, Gullit foi o catalisador de uma virada de lavar a alma: fez dois gols, e a Holanda venceu em Dublin (3 a 2). A seleção ficaria de fora da Euro, mas aquela virada - e o espírito de luta demonstrado - sinalizavam: nascia ali uma geração promissora, e Gullit seria um dos destaques dela.

Seria destaque maior ainda no Feyenoord. No Campeonato Holandês da temporada 1983/84, Gullit era o dínamo do Stadionclub. Se o veterano Cruyff, 37 anos então, era o dono das ideias, ditava como o time jogava, Ruud praticava no meio-campo: criava jogadas, chegava ao ataque, finalizava - ou passava para Peter Houtman, o grande atacante daquele equipe, concluir. Em 33 jogos pela Eredivisie, foram 15 gols dele. Mais do que isso: o Feyenoord terminou a temporada com a dupla coroa neerlandesa, campeão tanto da Eredivisie quanto da Copa da Holanda. E se Johan Cruyff era a presença apenas tolerada em De Kuip, pela história indelével no Ajax, Ruud Gullit era um símbolo bem mais querido daquela temporada vitoriosa em Roterdã. E teria o grande prêmio disso no fim de 1984: foi eleito o melhor jogador da Holanda naquele ano. Sua popularidade era tamanha que sua primeira incursão musical já fez sucesso: "Not the dancing kind", reggae lançado por ele ainda em 1984, foi das músicas mais escutadas nos Países Baixos naquele ano.

Cruyff e Gullit comemorando o título da Copa da Holanda, com a torcida do Feyenoord: o "Número 14" podia ser a figura indiscutível, mas Gullit era bem mais querido, despontando de vez em 1984 (VI Images/Getty Images)

Na temporada seguinte, 1984/85, porém, Gullit passou pelos primeiros dissabores da carreira. Dentro de campo, uma lesão no joelho o tirou de metade da temporada do Feyenoord - pela Eredivisie, foram só 19 jogos e sete gols. Fora de campo, o próprio técnico do Stadionclub causou uma discussão constrangedora. Ao falar à revista Voetbal International, Thijs Libregts se referiu com desconfiança sobre as aparições cada vez maiores de Gullit na mídia - e trouxe tons racistas nela: "Eu só espero que ele tenha disposição para trabalhar. Negros, você sabe como é...". Libregts alegou que só falara aquilo em tom galhofeiro, mas o fato é que o constrangimento foi o início do fim de Gullit no Feyenoord. Paralelamente, desejando se fortalecer enfraquecendo os rivais, o PSV foi com tudo na tentativa da contratação do principal nome do Feyenoord. E em 1985, por um milhão e meio de florins (moeda holandesa da época), Gullit tomou o caminho de Eindhoven. Não sem traumas: a torcida do Feyenoord o apelidou de "lobo", e o acusou de mercenarismo.

No PSV, o auge que precedeu outro auge

Àquela altura, Gullit já não podia mais ser chamado de promessa. Era realidade, das mais brilhantes que o futebol holandês tinha à disposição. E provou isso já em 1985/86, sua primeira temporada no PSV: mais um título da Eredivisie - iniciando o que seria o tetracampeonato nacional do time de Eindhoven -, 24 gols marcados em 34 jogos, titularidade absoluta no meio-campo, justificando plenamente as razões de sua contratação. Na seleção, em que pesasse a ausência da Copa de 1986, Gullit já era o principal destaque: com capacidade técnica para jogar em várias posições, capitão da equipe aos 23 anos, ele já se convertia num nome indispensável naquela reformulação por que a Laranja passava no meio da década, para voltar a brilhar. Em última análise, Gullit já era craque. Teve isso reconhecido em 1986: novamente, foi escolhido o Jogador do Ano nos Países Baixos.


Dose repetida em 1986/87: bicampeonato holandês para o PSV, Gullit como o principal destaque ao longo das 34 rodadas, capitaneando os Boeren, criando jogadas, marcando gols - foram 22 naquela edição da liga holandesa, sendo o goleador do time nela. Pela seleção, então, importância ainda maior: nas eliminatórias da Euro 1988, foram cinco gols. Alguns deles, fundamentais, como os dois feitos no 2 a 0 contra a Polônia, na penúltima rodada, colocando a Holanda na rota da vaga que ela conquistaria, retornando às grandes competições.

Simultaneamente, sabendo do interesse crescente que despertava Europa afora, Gullit sabia: queria e precisaria sair do país natal, se quisesse ser ainda mais reconhecido do que já era. Em 1986, começou a negociar com o Milan. E se desmentia no início ("Sim, estive em Milão. Por quê? Isso é da minha conta"), a partir de 1987, seu desejo de saída ficou mais abertamente manifestado, a partir de uma entrevista à revista Nieuwe Revu, em março daquele ano: "Eu quero sair, eu preciso sair, porque já sei que o PSV nunca alcançará o topo da Europa. Não tenho mais nada a procurar aqui como jogador, parei meu desenvolvimento. Eu quero jogar futebol de alto nível, e no Milan posso fazer isso".

Num PSV em crise, mesmo com o segundo título nacional seguido, Gullit conseguiu o que desejava: em meados de 1987, foi para o Milan. E conseguiu plenamente o que desejava: reconhecimento dentro e fora do campo. Já a partir de seus primeiros meses em Milão, aliás.

No Milan, Gullit realizou o que desejava: fez fama mundial, como um dos melhores jogadores de ataque de sua geração, com vários títulos (Interleaning)

No Milan e na seleção, o apogeu inquestionável da "Tulipa Negra"

A responsabilidade era grande: a vinda de Gullit para o Milan se tratava, então, da mais cara transferência da história do futebol até aquele momento (6 milhões de libras). Além do mais, mesmo chegando ao clube rubro-negro de Milão junto ao compatriota Marco van Basten, tão badalado quanto ele, Gullit demorou a se ambientar na Itália, sem saber o idioma. Nem foi necessário completar essa adaptação para que já fosse um dos principais jogadores milanistas, em sua primeira temporada. O Milan conseguiu o título italiano em 1987/88 - e Gullit, mesmo com poucos gols no Campeonato Italiano (7), foi absoluto e mostrou variedade tática sob o comando de Arrigo Sacchi. Afinal de contas, inicialmente escalado na direita do trio de ataque, ao lado de Van Basten e Pietro Paolo Virdis, Gullit foi para o meio da área, já que Van Basten começava a sofrer com as lesões crônicas no tornozelo. E manteve o alto nível de atuação, em momentos decisivos daquele título - como nos 3 a 2 sobre o Napoli, na 28ª rodada da liga, quando deu os passes para os três gols.

O jogo decisivo contra o Napoli, na reta final do Campeonato Italiano 1987/88, foi o que faltava para Gullit se consolidar como ídolo milanista: três passes para gol, Milan 3 a 2, título italiano ganho (Imago)

Já na metade da temporada, o holandês de dreadlocks já longos e avantajado bigode teve o grande reconhecimento da carreira até ali: ganhou a "Bola de Ouro" da revista France Football, como melhor jogador da Europa em 1987. Por sinal, foi ao ganhar aquele troféu que Gullit deu mais uma mostra de carisma. O holandês decidiu aproveitar aquela premiação para chamar a atenção a Nelson Mandela: àquela altura, o líder político da África do Sul ainda estava preso nas masmorras de Robben Island, por suas insurgências contra o apartheid, regime segregacionista implantado por Inglaterra e Holanda, países que colonizaram o território sul-africano. Inicialmente, leria um manifesto pedindo a libertação de Mandela. A France Football proibiu. Sem problemas: Mandela foi um dos nomes a quem Gullit dedicou a Bola de Ouro. Mais: ele ainda distribuiu cópias do discurso que faria, aos jornalistas presentes à cerimônia. O encontro entre ambos só seria promovido pela jornalista Astrid Joosten, num programa de tevê em 1994. E ali, Mandela (libertado em 1990, eleito presidente da África do Sul naquele mesmo 1994) pôde agradecer Gullit: "Agora, tenho muitos amigos. Mas poucos fariam o que você fez por mim quando eu estava na prisão. Você foi um dos poucos amigos que tive quando estava lá". A história completa foi contada no site Trivela, em 2013, quando Mandela faleceu.

Ruud Gullit homenageou Nelson Mandela, ainda detido em 1987, quando o holandês ganhou a Bola de Ouro. Em 1994, já libertado, Mandela pôde agradecer (ANP)

Voltando ao campo, Gullit continuou brilhando intensamente em 1988. Campeonato Italiano 1987/88 ganho com o Milan, ele foi disputar a Euro 1988 como o grande destaque da Holanda, antes da competição começar. Acabou ficando em segundo plano, diante da fulgurante reação de Van Basten, recuperado pouco antes da Euro para virar o grande goleador dela. O que não quer dizer que Gullit não tivesse importância naquela campanha. Longe disso: capitão, ele jogou todos os minutos da Laranja na Euro. Era o principal criador de jogadas. Era a referência da equipe treinada por Rinus Michels na hora das dificuldades. E se fez somente um gol, ele teve importância capital: de cabeça, Gullit marcou o primeiro gol na final contra a União Soviética, abrindo caminho para o único título ganho pela seleção masculina principal da Holanda até agora. Final vencida, coube a Gullit ser personagem principal de uma imagem antológica: erguer o troféu daquela Euro, como se vê no começo deste texto. Não bastasse isso, viria outro feito do futebolista no campo da música: Gullit participou da faixa "South Africa", da banda Revelation Time - a terceira mais ouvida nos Países Baixos, naquele 1988.

Começada a temporada 1988/89, ela terminaria para Gullit como a anterior: com muito sucesso. Se não no Campeonato Italiano, vencido pela Internazionale (foram 19 jogos e cinco gols), em palco até mais célebre: a Copa dos Campeões da Europa. Com dificuldades abrilhantando ainda mais o apogeu que ele vivia. Na semifinal contra o Real Madrid, mesmo com a goleada do Milan (5 a 0), ele amargou uma lesão no joelho. Teria de correr contra o tempo para disputar a final contra o Steaua Bucareste (Romênia). Pois bem: Gullit não só conseguiu a recuperação a tempo, como brilhou na decisão da Copa dos Campeões. Fez dois gols, o Milan novamente goleou - 4 a 0 -, e Gullit foi uma das caras daquela conquista em 24 de maio de 1989, no Camp Nou, em Barcelona. Mais do que isso: ao lado do colega Van Basten e do velho conhecido Frank Rijkaard, Gullit era um dos nomes que simbolizavam o futebol mundial naqueles tempos. O esporte reverenciava a "Tulipa Negra", apelido que ele ganhara em Milão.

Com dois gols na final da Copa dos Campeões 1988/89, Gullit confirmou o que já se imaginava: era um dos melhores do mundo em 1989 (Bob Thomas/Getty Images)

Em 1989, porém, o auge que Gullit viveu nos dois anos anteriores teve duro impacto: uma lesão nos ligamentos do joelho direito o tirou dos campos durante boa parte da temporada 1989/90. O ponta-de-lança não só ficou de fora de boa parte da campanha do Milan (pelo Campeonato Italiano, foram só dois jogos), como também esteve distante da participação da Holanda nas eliminatórias da Copa de 1990. Além do mais, protestou com o desafeto Thijs Libregts treinando a Laranja durante aquela qualificação - protesto que não era só dele, mas de boa parte dos companheiros de seleção.

Logo Gullit conseguiu retomar o ritmo vitorioso que ostentava. Pelo menos, parcialmente. No Milan, sua recuperação foi focada para que ele atuasse justamente na segunda final seguida de Copa dos Campeões da Europa que o clube teria pela frente. Ruud voltou, na rodadas finais do Campeonato Italiano; foi escalado na decisão contra o Benfica, em 23 de maio de 1990; e pôde comemorar o bicampeonato europeu rubro-negro milanista, com o 1 a 0 feito pelo amigo Rijkaard, em Viena. Já pela seleção holandesa, embora tenha sido convocado para a Copa do Mundo, o péssimo ambiente interno e a longa inatividade fizeram com que o meia/atacante não fosse nem sombra do nome dominador física e tecnicamente que era. Embora tenha até feito um gol - no 1 a 1 contra a Irlanda, na fase de grupos -, embora tenha recuperado algum ritmo de jogo, Gullit saiu pela porta dos fundos naquela Copa, com a decepcionante atuação da Laranja, eliminada já nas oitavas de final, sem vitórias.

Gullit na Copa de 1990, a única de sua carreira: voltando de lesão no joelho, abalado pela crise interna que a Holanda vivia, o rendimento dele ficou bem abaixo do que se esperava (Bob Thomas/Getty Images)

Mudança de ares em clubes, rompimento abrupto na seleção

De volta ao Milan, Gullit seguiu justificando a sua fama nas duas temporadas seguintes. Pelo Campeonato Italiano, teve números rigorosamente iguais em 1990/91 e em 1991/92 - nesta última, com o Milan conquistando o título invicto: 26 jogos, sete gols. Ainda em 1990, pôde celebrar o bicampeonato mundial interclubes (na conquista de 1989, recuperava-se da lesão no joelho). Além do mais, pela seleção da Holanda (Países Baixos), a "Tulipa Negra" conseguiu se recompor da decepção da Copa de 1990 para se manter importante nas eliminatórias da Euro 1992 - e na própria Euro, em que teve desempenho semelhante à de 1988: mesmo sem brilhar, sem marcar gols, ainda era o capitão, a liderança inquestionável dentro de campo, uma forte referência da Laranja.

Porém, em meados de 1992, vieram os primeiros sinais de que o tempo passava. No Milan, com muita concorrência (Jean-Pierre Papin, Stefano Eranio, Gianluigi Lentini, Daniele Massaro...), Gullit perdia espaço gradualmente nos "Invencíveis" de Fabio Capello. Pela seleção neerlandesa, começou a entrar em rota de colisão com Dick Advocaat, que assumira o comando após a Euro, discordando do esquema tático que considerava "suicida". Ficar de fora dos jogadores do Milan relacionados para a final da Liga dos Campeões 1992/93, perdida para o Olympique de Marselha, foi o marco definitivo: era hora de Gullit mudar de ares. E ele mudou. Cogitou-se a ida para Torino, para Bayern de Munique... mas na metade daquele ano, Gullit foi emprestado à Sampdoria. Seis anos vitoriosos em Milanello começavam a ficar para trás - assim como o bigode.


Contudo, Gullit ainda tinha muito com que colaborar quando chegou a Gênova. Na temporada 1993/94, ele contribuiu demais com a equipe que ainda vivia o rescaldo do título italiano (1990/91) e do vice-campeonato europeu (1991/92): a "Tulipa Negra" foi a principal goleadora doriana no Campeonato Italiano - 15 gols em 31 jogos, melhor até do que Roberto Mancini, símbolo da Samp. Um desses gols, inclusive, foi marcante: Gullit deixou o dele nas redes, na vitória por 3 a 2 sobre o Milan, na Serie A. De quebra, o neerlandês foi um dos destaques da conquista da Copa da Itália naquela temporada. E dali por diante, ele sempre ressaltou: o período passado sob o comando do técnico Sven-Goran Eriksson foi dos mais prazerosos de toda a sua carreira.

Gullit jogou pouco, mas ajudou muito a Sampdoria. E a conquista da Copa da Itália, em 1993/94, foi o grande símbolo disso (Professional Sport/Popperfoto/Getty Images)


Seu desempenho pela Sampdoria foi tão satisfatório que o Milan decidiu tentar de novo. Em 1994, Gullit voltou ao clube rubro-negro, começando a temporada 1994/95 por lá - e até marcando gol na Supercopa da Itália, conquistada pelos milanistas justamente em cima da Samp. Porém, pouco depois, o espaço no Milan diminuiu novamente. Não foi de todo ruim a volta: oito jogos e três gols pelo Campeonato Italiano. Ainda assim, antes mesmo que 1994 terminasse, Gullit foi vendido em definitivo à Sampdoria. E lá terminou sua passagem pelo futebol italiano, com 22 jogos e nove gols. 

Antes mesmo desse fim na Sampdoria, porém, veio o fim de sua passagem pela seleção holandesa. Que foi bem mais traumático. Em 1993, Gullit ainda retornou à Laranja, para dois jogos - mas logo deixou novamente a equipe nacional, irritado por não ser escalado no meio-campo, como preferia. Depois, ensaiou um apaziguamento das relações com Dick Advocaat. Em 1994, ano da Copa, chegou a fazer uma partida pela equipe, contra a Escócia, em maio. Porém, sua discordância da ofensividade com que a Holanda iria à Copa nos Estados Unidos, jogando com até quatro atacantes, fez com que o jogador tomasse uma decisão intempestiva: a duas semanas da abertura do Mundial, já como um dos 22 convocados, Gullit decidiu abandonar a seleção, em definitivo. Terminava assim, abruptamente, uma história de 13 anos. Tão abruptamente que Gullit se arrependeu das brigas com Advocaat - os dois fizeram as pazes e assumiram os erros, num programa de entrevistas, em 2013.

Gullit (à direita), na entrevista coletiva em que anunciou sua desistência de disputar a Copa de 1994: seu fim pela Laranja não foi o que se esperava (ANP)

Mas a última impressão de Gullit seria mais digna.

Um fim honroso no Chelsea

Nos últimos anos na Itália, Gullit estava enfastiado de todo o alarido que sua figura midiática causava. Várias vezes, tinha de deixar a mesa de um restaurante em que estivesse comendo, por exemplo, só para acenar a torcedores antes de voltar à refeição. Isso, sem contar as separações de suas esposas, que sempre causavam comentários e notícias. Em 1995, surgiu a oportunidade para solucionar isso: livre após o fim do contrato com a Sampdoria, Gullit (já com os "dreadlocks" mais curtos) aceitou a proposta do Chelsea.

Quando chegou a Stamford Bridge, o holandês foi escalado numa posição em que não jogava desde os tempos de Feyenoord: um "líbero", mais recuado, entre a zaga e o meio-campo. Teve certas dificuldades ali, e logo o próprio técnico Glenn Hoddle decidiu trazê-lo de volta ao meio-campo. Deu relativamente certo: com Gullit tendo outros nomes importantes a seu lado, como Dan Petrescu, Gianfranco Zola e Mark Hughes, o Chelsea compensou a campanha ruim no Campeonato Inglês com a chegada às semifinais da Copa da Inglaterra em 1995/96. Para o holandês, foi melhor ainda: terminou sendo considerado o segundo melhor jogador daquela temporada na Premier League, só ficando atrás de Eric Cantona.

Jogando no Chelsea... (Gill Allen/PA Images/Getty Images)

Antes da segunda temporada nos Blues, Gullit encararia novo papel em sua carreira. Com Glenn Hoddle deixando os Blues para treinar a seleção masculina da Inglaterra, o ponta-de-lança recebeu a proposta: além de jogar, treinaria o Chelsea, se convertendo no primeiro treinador holandês que a Premier League teve em sua história (desde 1992). Pelo menos em 1996/97, o trabalho teve algum êxito: não só pelo razoável sexto lugar na liga, mas principalmente pelo título da Copa da Inglaterra, primeira conquista do Chelsea em 26 anos. O trabalho promissor prosseguia em 1997/98: com Gullit, o Chelsea ocupava o segundo lugar na Premier League, e estava nas quartas de final da Copa da Inglaterra e da Copa da Liga Inglesa. 


... ou treinando, Gullit teve seus bons momentos em Stamford Bridge (Popperfoto/Getty Images)

Porém, o trabalho de Gullit terminou no meio: no começo de 1998, ele foi demitido pelo empresário Ken Bates, dono do Chelsea à época, em rota de colisão cada vez mais séria com o treinador (tempos depois, Bates reconheceu: "Eu não gostava da arrogância dele; na verdade, eu não gostava dele"). Repentinamente, de certa forma, também terminava sua carreira de jogador: a partida de ida das quartas de final da Copa da Liga Inglesa 1997/98 foi a última em que Gullit também atuou, além de treinar. Mas a turbulência da demissão não apagou o principal prazer que o holandês disse ter na sua passagem pela Inglaterra: a volta do prazer com o futebol ("Toda vez em que eu jogava com o Chelsea, eu pensava 'jogo bom, estádio bonito, estou jogando bem'. Foi a única vez em que me diverti"). 

Carisma resistente

Gullit ainda tentou fazer sua carreira como técnico embalar dentro do próprio Campeonato Inglês. Em agosto de 1998, foi contratado pelo Newcastle, após a saída de Kevin Keegan para treinar a seleção do país. Como fora no Chelsea, o começo do holandês nos Magpies foi bastante auspicioso: o Newcastle foi à final da Copa da Inglaterra, na temporada 1998/99, só perdendo para o Manchester United. Porém, ao entrar em rota de colisão com nomes como Alan Shearer, Gullit também perdeu respaldo interno, sendo demitido já na quinta rodada da Premier League 1999/2000. Era só o começo de uma carreira de treinador que nunca teve muitas chances - e quando teve, os resultados foram ruins. 

Gullit sempre teve oportunidades aqui e ali, mas seu único trabalho com começo, meio e fim foi comandando o Feyenoord, na temporada 2004/05 - sem muito sucesso: o clube em que decolou como jogador terminou o Campeonato Holandês na quarta posição. De resto, houve passagens rápidas, como a pela seleção sub-21 da Holanda, entre 2003 e 2004. Passagens turbulentas: o comando do Los Angeles Galaxy, entre novembro de 2007 e junho de 2008, com vários jogadores criticando o método de trabalho de Gullit - para citar exemplos, Abel Xavier e Landon Donovan estiveram entre os queixosos. E passagens meramente pitorescas: em janeiro de 2011, ao chegar ao Terek Grozny, da Chechênia (região separatista da Rússia), Gullit foi simpático e honesto: "Quero acreditar que posso trazer alegria ao povo checheno por meio do futebol. Claro que não vou negar que também estou ganhando muito dinheiro do Terek". Durou até junho de 2011 no comando.

Nas episódicas passagens como treinador, Gullit só teve uma sequência mais longa no Feyenoord, em 2004/05 (Barrington Coombes/PA Images/Getty Images)

Ainda assim, o talento mostrado em campo, algumas opiniões incisivas (como a crítica recente à federação holandesa, por não apostar em técnicos negros na seleção masculina) e o carisma resistente até ao abandono dos longos dreadlocks - que já sumiram em 2000 - seguem fazendo de Gullit uma figura forte no mundo do futebol. Ainda mais representando os Países Baixos: o ex-jogador foi o embaixador da candidatura conjunta e frustrada com a Bélgica para sediar a Copa de 2018, e teve até uma volta à seleção, como auxiliar do antigo desafeto Dick Advocaat, na volta deste à Laranja, tentando o socorro (sem sucesso) nas eliminatórias da Copa de 2018. Além do mais, tanto no país natal como na Inglaterra, Ruud tem uma carreira requisitada de comentarista. Sem contar os projetos de seus patrocinadores - por causa de um deles, em 2012, ele até viajou ao Brasil, sendo entrevistado pelo "Mesa Redonda" da TV Gazeta paulistana.

Tudo explicado pelo seu enorme talento dentro de campo - e pela personalidade fora dele, sem fugir de polêmicas. Por essas duas características, a "Tulipa Negra" segue sendo assunto. Ainda mais hoje, chegando aos 60 anos.

(Getty Images)



Rudi "Ruud" Dil/Gullit
Data de nascimento: 1º de setembro de 1962, em Amsterdã
Clubes: Haarlem (1979 a 1982), Feyenoord (1982 a 1985), PSV (1985 a 1987), Milan-ITA (1987 a 1993 e 1994), Sampdoria-ITA (1993 a 1994 e 1994 a 1995) e Chelsea-ING (1995 a 1998)
Seleção: 66 jogos e 17 gols, entre 1981 e 1994

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