terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Laranja histórica: o jogo do "pênalti ensaiado" do Cruyff

Cruyff convertendo o pênalti em jogada ensaiada: Ajax goleou fácil o Helmond Sport em 1982 (ANP Archief)
A cobrança ensaiada de pênalti em Barcelona 6x1 Celta, pela rodada mais recente do Campeonato Espanhol, já foi comentada à exaustão mundo afora. Falou-se de tudo sobre ela: da eventual insatisfação de Neymar (com quem a jogada teria sido combinada originalmente) à suspeita "falta de respeito" com os adversários de Vigo. E, obviamente, também foram lembrados momentos anteriores em que jogada semelhante ocorreu. Do pênalti dos belgas Rik Coppens e André Peters, em Bélgica 8x3 Islândia, pelas eliminatórias da Copa de 1958, ao de Euller e Douglas, no 2 a 1 do América-MG contra o Ideal, pela segunda divisão mineira, em 2008. 

Finalmente, talvez um dos momentos mais lembrados do "pênalti em dois lances" foi o "pênalti do Cruyff". A tal ponto que se pensou, por muito tempo, que o maior da história do futebol holandês tivesse inventado o lance. Não inventou, agora se sabe. Mesmo assim, é um momento facilmente visto nos YouTube da vida. E com a lembrança dele em alta, convém também lembrar, por curiosidade: como foi o jogo em que ele ocorreu?

Uma certeza se tem: difícil, não foi, ao contrário do 6 a 1 barcelonista do domingo passado. Afinal de contas, tratava-se de um Ajax que já estava na disputa do título holandês, contra (novidade...) Feyenoord e PSV. Mais do que isso: o técnico Aad de Mos tinha à disposição uma geração fulgurante a surgir nos Ajacieden. Já eram titulares os atacantes Gerald Vanenburg (18 anos) e Wim Kieft (20 anos), que teriam algum êxito na seleção holandesa, membros do elenco campeão da Euro 1988 que foram. Sem contar dois dinamarqueses que seriam presenças frequentes na marcante seleção que o país apresentou na Euro 1984 e, principalmente, na Copa de 1986: o ponta-esquerda Sören Lerby e o meio-campista Jesper Olsen. E ainda havia Frank Rijkaard, 20 anos, que entrou durante a partida. Acima de tudo, pairava a presença de Johan Cruyff, 35 anos, praticamente um "técnico em campo".

E naquele 5 de dezembro de 1982, pela 16ª rodada do Campeonato Holandês, o adversário do Ajax não era nada temível. Muito ao contrário: o Helmond Sport terminaria aquela sua primeira temporada na Eredivisie em 15ª lugar, exatamente a primeira posição fora da zona de repescagem/rebaixamento. E os Kattenmeppers não tinham o que se pudesse chamar de uma equipe muito forte. Os únicos destaques eram o meio-campista Jaak Edelbloedt e os atacantes Johan van der Hooft e Harry Lubse (este, com certa história no PSV, além de ter estado no elenco vice-campeão mundial em 1978). Com uma ponta de maldade, dá para dizer: um adversário perfeito para o Ajax, após o empate em 2 a 2 no Klassieker contra o Feyenoord, na rodada anterior.

E foi exatamente o que aconteceu. Jogando no velho estádio De Meer, sua casa até 1996, os alvirrubros não demoraram muito para imporem a superioridade. Aos 19 minutos, Cruyff abriu o placar: Lerby lançou o lateral esquerdo Peter Boeve, que cruzou para a área. Sem marcação alguma, o "Nummer 14" (que naquele jogo não usava seu número preferido na camisa, mas o 9) completou de cabeça para o gol defendido por Otto Versfeld:

Não demorou muito, e aos 23 minutos da etapa inicial, chegou o lance histórico que ficaria daquela partida "comum". Aí, é melhor ler o que o goleiro Versfeld comentou ao diário De Volkskrant, em 6 de dezembro de 2012 - 30 anos e um dia após o pênalti ensaiado com Cruyff e Olsen: "Todos querem saber o que pensei naquele momento. Cruyff chegou para a bola, e eu já achei isso curioso - ele raramente cobrava pênaltis. Acima de tudo, estava preocupado com uma questão: em que canto ele iria bater? Ele se abaixou, e pegou a bola com as mãos. Naquela hora, pensei: 'Ele ajeitou bem a bola'. Mas daí, ele tocou para a esquerda, para Jesper Olsen. Num primeiro momento, eu ainda reagi bem, você pode ver na imagem. Mas quando Olsen devolveu a Cruyff, eu parei. Estava bobo de tão surpreso. Pensava: 'O que está acontecendo aqui, em nome do céu?'. E aí a bola entrou". 
Versfeld ainda opinou: "Posso falar? O gol não deveria ter valido. Se eu disser isso, Amsterdã inteira vai me perseguir, mas preciso dizer. Veja as imagens mais uma vez: no momento em que Cruyff marca, Olsen está na frente dele. É o atacante mais avançado. Logo, estava impedido. Estraga-prazeres ou não, não importa. Era a regra na época. Agora, fica no vazio, né? Mas não tem nada ruim [nisso]". Finalmente, o goleiro (hoje em dia, taxista) ainda citou: "Até aquele jogo contra o Ajax, nunca havia ouvido falar de uma cobrança ensaiada de pênalti. E pode. (...) Eu tenho uma forte vontade de reproduzir o pênalti com Cruyff. Em De Meer não dá mais, o estádio já foi demolido. O mais legal seria fazer isso em Barcelona, no Camp Nou".
E o primeiro tempo ficou no 2 a 0 mesmo. Mas nem demorou muito para o terceiro gol, na etapa final: aos 11 minutos, em bate-rebate na área do Helmond Sport, a bola bateu acidentalmente no lateral direito Ad de Wert e foi para as redes.
Mais seis minutos, e saiu o quarto gol, em rápido contra-ataque com Lerby. O meio-campo fez jogada até semelhante à do primeiro gol: avançou, chegou à esquerda e cruzou. O volante Dick Schoenaker cabeceou, Versfeld rebateu, e Kieft conferiu para as redes.
Com o 4 a 0, Aad de Mos pôde até fazer duas substituições no Ajax, colocando Rijkaard em campo (no lugar do lateral direito Edo Ophof) e Keje Molenaar (no lugar do zagueiro Leo van Veen). E ainda houve tempo para ampliar a goleada já garantida: no minuto final, Kieft cobrou lateral, Schoenaker escorou de cabeça, e Vanenburg bateu forte para decretar o 5 a 0.

Definida mais uma goleada na campanha do Ajax. Na rodada seguinte, o time de Amsterdã finalizou o turno fazendo 3 a 1 no Fortuna Sittard. E com aquela geração altamente promissora, mais Cruyff, superou os rivais e sagrou-se campeão holandês ao final da temporada 1982/83. Já o Helmond Sport ainda se manteve na Eredivisie, como já dito, mas cairia em 1983/84. E até hoje não voltou: é o 11º da Eerste Divisie, a segunda divisão holandesa.
Ficha técnica

Ajax 5x0 Helmond Sport
Campeonato Holandês 1982/83 - 16ª rodada
Estádio: De Meer (Amsterdã)
Público: 10.000 torcedores
Árbitro: Jan Manuel
Gols: Cruyff, aos 19 e 23 do 1º tempo; De Wert (contra), aos 11; Kieft, aos 17; e Vanenburg, aos 45 do 2º tempo
Ajax
Piet Schrijvers; Edo Ophof (Frank Rijkaard, aos 21 do 2º tempo), Leo van Veen (Keje Molenaar, aos 21 do 2º tempo), Jan Mölby e Peter Boeve; Sören Lerby, Johan Cruyff e Dick Schoenaker; Gerald Vanenburg, Wim Kieft e Jesper Olsen. Técnico: Aad de Mos
Helmond Sport
Otto Versfeld; Ad de Wert, Jo Lacroix, Hans Ribberink e André Klaassen; Robert Cox (Hans Vincent), Hans Strijbosch e Jaak Edelbloedt; Johan van der Hooft, Erwin Cramer (Hans Meeuwsen) e Harry Lubse. Técnico: Jan Notermans

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