sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Há esperança


Na Copa de 1998, a Bélgica de Van der Elst (6) se sentiu atrasada em relação à Holanda de Ronald de Boer (7). Neste 2017, foi a Holanda que ficou para trás (crédito não encontrado)
Na seleção, a entressafra já eclodida com a ausência na Euro 2016 ficou definitivamente clara com a confirmação de que a única presença holandesa na Copa de 2018 será do quinteto de arbitragem liderado por Bjorn Kuipers – fora um ou outro técnico que assuma alguma seleção, na última hora. Nos clubes, houve o fugaz esplendor do Ajax na Liga Europa - mesmo com a fragilidade defensiva crônica, que quase cobrou o preço contra Schalke 04 e Lyon -, mas a verdade voltou logo à tona: vexames de Ajax e PSV ainda nas fases preliminares dos torneios continentais, campanhas melancólicas de Feyenoord (na Liga dos Campeões) e Vitesse (na Liga Europa), e o fato de que a Holanda ficará sem vagas diretas nas fases de grupos das competições europeias, a partir de 2019/20.

Difícil ter esperança que a seleção e o futebol holandeses possam melhorar algum dia. Sim, é desagradável ler críticas como “Não acha que poderia ter uma pitada de otimismo/esperança? É preciso mostrar a verdade nua e crua?”. Mas... sim, é preciso mostrar a “verdade nua e crua”, porque de outro modo esta coluna seria só um espaço de torcedor – o que sou, mas sem querer deixar a emoção turvar as coisas (embora isso torne o futebol mais sem graça, verdade). O que não quer dizer que a Holanda está condenada a se tornar uma “nova Hungria”. Há esperança, sim. E ela está expressa nas palavras de um... belga: Bob Browaeys, envolvido nas seleções de base da vizinha e principal rival histórica da Laranja – atualmente, Browaeys treina a seleção sub-16 da Bélgica.

Em setembro de 2017, quando os Diabos Vermelhos já estavam tranquilamente garantidos entre as nações europeias que irão à Copa e a Laranja já temia a ausência que se consumaria, Browaeys concedeu um depoimento à revista Voetbal International, comentando toda a evolução da seleção belga, até o estágio elogiável da atualidade – no qual, embora o Campeonato Belga seja tão abaixo da crítica quanto o Holandês, as equipes nacionais do país detectam com qualidade os novos talentos, resultando numa boa seleção principal. Não excepcional, mas suficientemente boa para sonhar igualar a campanha de 2014, quando alcançou as quartas de final.

E Browaeys citou: a Holanda teve participação nesse ponto de virada da Bélgica. Indiretamente, claro. Foi ao ver a participação dos rubros na Copa de 1998 que ele se conscientizou de como a seleção e o futebol belgas estavam defasados. A ponto do resultado da estreia naquele Mundial (um 0 a 0 justamente contra a rival laranja, em Saint-Denis) ter sido muito comemorado, meramente pela Bélgica ter escapado da derrota – ainda que ela tenha criado chances até para vencer, justiça seja feita. Porém, a sequência da Copa revelou como a seleção holandesa vivia um de seus momentos mais brilhantes naquele 1998, assim como deixou claro que a Bélgica precisava mudar, eliminada na fase de grupos que foi.

“Nós conseguimos o resultado sonhado, mas nos esquecemos de olhar o todo. Se o vemos hoje, notamos que a Holanda nos superara completamente. E não foi só por aquele jogo, foi por toda a Copa. Nós entramos apenas para participar, e era o suficiente”. De fato, a equipe belga em 1998 parecia cada vez mais esgotada, dependente de veteranos. Na defesa, o goleiro Filip de Wilde (reserva de Michel Preud’homme em 1990 e 1994) já tinha 33 anos, o zagueiro Vital Borkelmans tinha 35, e seu companheiro de defesa Lorenzo Staelens possuía 34. No meio-campo, a confiança na marcação residia em Franky van der Elst e seus 37 anos de então, enquanto a criação de jogadas ainda cabia a Enzo Scifo, então com 32 primaveras. E no ataque, nem Luc Nilis era garoto (31 anos), nem Oliveira (29 anos), nem Marc Wilmots (29).

Logo após aquela Copa, Browaeys foi contratado pela federação belga – por obra de Frans Masson, diretor das categorias de base -, para trabalhar num plano de reestruturação. E suas declarações à Voetbal International deixaram claro: desde o começo, havia uma meta. “Ele [Masson] estabeleceu diretamente que, se você quer mudar o futebol, deve começar pela raiz: pelos treinadores que trabalham com a base”. E por quê a Bélgica precisava mudar? “Os sucessos que a Bélgica alcançou nos anos 1980 e 1990 vieram por causa da boa organização e da mentalidade belga, de querer trabalhar duro. Quais jogadores nossos podiam fazer a diferença individual naquela época? Marc Degryse, Luc Nilis e Enzo Scifo. Era essa a nossa criatividade, cercada de ‘carregadores de piano’. Vimos a Holanda, com todos aqueles jogadores talentosos, a França, que seria campeã mundial... a diferença em relação a nós, belgas, era chocante. Simplesmente pensamos: ‘Por quê não nos miramos no que os holandeses fazem bem, na razão dos franceses brilharem?’” 

Era esse o desafio: pegar o que de bom os exemplos holandês e francês tinham, “somados à nossa mentalidade”, de acordo com Browaeys. Ficou claro que era necessário superá-lo, diante da participação ainda mais vexatória na Euro 2000 sediada parcialmente em casa: eliminação na primeira fase. Ainda naquele ano, a federação belga lançou o relatório “Vision 2000”, em que preconizava a mudança de mentalidade. E aos poucos, a lógica belga foi sendo alterada nas categorias de base. E Browaeys, comandando várias seleções menores, citou no que a Holanda foi importante: “Nós nos perguntávamos qual era a característica que mais faltava em nossos jogadores. Era muito simples: faltava criatividade, ação individual. Não tínhamos mais gente que driblasse. E qual é a base do futebol? É o um-contra-um. Se você olha a influência que França e Holanda tiveram nisso, a holandesa foi bem maior. Eu já me encontrara com Rinus Michels num congresso em Barcelona, já apoiava a visão de Johan Cruyff, admirava Louis van Gaal – até assinei uma revista holandesa, De Voetbaltrainer [“O treinador de futebol”], onde estavam bons artigos. Assim começou tudo: foco no um-contra-um, depois ensinar os jogadores a tomarem decisões, a melhorarem o passe, a terem criatividade, a jogarem em pequenos espaços”.

Demorou ainda algum tempo. Mas os resultados começaram a aparecer – a partir da elogiável participação no torneio olímpico de futebol masculino em 2008, quando vários integrantes da “ótima geração” – Vincent Kompany, Thomas Vermaelen, Marouane Fellaini, Jan Vertonghen, Kevin Mirallas - fizeram sua primeira aparição, obtendo o quarto lugar (até derrotados pelo Brasil na decisão da medalha de bronze). Dali por diante, enquanto a Holanda apostava nos “três grandes”, a Bélgica foi construindo... um time. Cada vez mais fortalecido pelos surgimentos de novos talentos, como Eden Hazard e Romelu Lukaku. E hoje, é o que se vê: a Holanda parece desorientada, enquanto a Bélgica mostra uma seleção bem montada coletivamente.

Certo, relatório, a federação holandesa também fez: “Winnaars van morgen” (“Vencedores do amanhã”), publicado em 2015. Mas é preciso trabalhar com metas práticas, não considerar que falta ao jogador holandês apenas “mentalidade de campeão” - sim, foi uma das conclusões. É preciso que a Holanda reconheça: não é mais uma “meca tática”. Ela tem de deixar a arrogância de lado: ao contrário de 1998, precisa aprender com outros, não os outros com ela. A Bélgica fez isso – e tem razões para valorizar a mudança de mentalidade. 

Enquanto isso, os holandeses se debatem entre a clara necessidade de mudança e a resistência em abandonar o purismo. O Ajax simboliza isso: apostou em Marcel Keizer (que manteria a pureza do “ideal Ajax”). Errou. Demitiu-o. E agora, tentará Erik ten Hag, treinador ainda jovem, mas com certo aprendizado – principalmente nos tempos em que esteve treinando a equipe B do Bayern de Munique, sendo parceiro próximo de Pep Guardiola.

O caminho está dado. A Holanda tem muitas dificuldades. 2017 foi um ano ainda mais depressivo do que 2016 já fora. Mas exemplos não faltam de que, apesar de tudo, ainda há razões para esperança. A ver o que ocorrerá.

(E embora o autor destas linhas não goste muito de otimismos bobos, também não gosta muito de expressar amargor, até porque de nada ajuda. Prefere apenas continuar fazendo o que faz, esperando e se preparando para o que vier, bom ou ruim. É essa prontidão que ele deseja aos leitores, aos quais agradece penhoradamente pelo prestígio e paciência. Que estejam prontos para – e durante – 2018)

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 29 de dezembro de 2017)

Um comentário:

  1. Muito legal sua análise, é uma pena imensa essa crise no futebol holandês. Eu sou fã de tudo na Holanda, não somente futebol.

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