sábado, 24 de dezembro de 2016

Retrospectiva: o "fim da história"?


"Natal sem Cruyff: nosso futebol perdeu seu farol". Mais um lamento, no triste 2016 que a Holanda viveu no futebol (AD Sportwereld)

Já faz algum tempo (precisamente, um ano, dois meses e 10 dias) que a seleção da Holanda teve confirmado o seu maior vexame nos últimos tempos: a ausência na Euro 2016. Ausência que não foi esquecida, nesse tempo todo: basta um tropeço da Laranja, seja pelas eliminatórias para a Copa de 2018, seja por um amistoso, para que volte o olhar pesado de desconfiança sobre a presença da equipe na próxima edição da Copa. Sem contar a já crônica má fase da maioria dos times do país em torneios continentais. Ou a rotina repetitiva do Campeonato Holandês, cuja disputa pelo título já parece resumida a Feyenoord e Ajax - embora a luz do PSV tenha se mantido ainda acesa com o empate no clássico contra o Ajax, domingo passado.

Tudo isso já serviria para que 2016 tivesse sido um ano esquecível para o futebol holandês. Porém, um fato foi (e é) ainda mais marcante nesse olhar melancólico com que o ludopédio é visto atualmente no país: claro, a morte de Johan Cruyff, em 24 de março. Ainda dói lembrar do falecimento do maior jogador de sua história, do primus inter pares, do sujeito que lhe deu uma cara dentro de campo. Prova disso é a capa da edição do AD Sportwereld, o caderno de esportes do diário Algemeen Dagblad, que abre esta coluna. A mensagem fala em "um Natal sem Cruyff". Em suma, ainda é triste saber que a Holanda não tem mais seu JC.

E é triste não só pela morte em si. Mas porque ela representou para muita gente, em imprensa e torcida, uma espécie de “fim da história”. Como se fosse, implicitamente, o final do capítulo que tornou a Holanda conhecida por seu futebol no mundo todo. E como se, daqui por diante, o caminho fosse inexorável rumo ao esquecimento, ou a viver das memórias. Mas isso é inevitável, mesmo? De fato, o caminho da Holanda é inevitavelmente voltar ao que ela era antes de 1974: uma seleção do terceiro escalão europeu?

Claro, não dá para responder isso agora. E mesmo se fosse possível, muito provavelmente, a resposta seria negativa. O futebol holandês já viveu períodos de baixa, e este é apenas mais um deles. De mais a mais, ciclos vêm e vão dentro do futebol – que o diga a vizinha Bélgica, há dez anos uma seleção considerada decadente, e hoje relativamente respeitada (até um pouquinho além da conta, às vezes). Ou seja: por mais que pareça pequena a chance de reação em algum momento, ela ainda existe.

O problema é que, para aumentar as chances dessa reação, duas características são indispensáveis: humildade e modernização. Duas coisas que andam em falta no futebol holandês. Um bom exemplo disso é o anacronismo tático visto no país, tanto na seleção quanto nos clubes. Casos dos últimos anos deixam claro como a Holanda precisa urgentemente modernizar o estereótipo do “4-3-3 com dois pontas”, vindo desde 1974, no qual confia. Jogando no 4-2-3-1, com mais proteção à defesa, a Oranje conseguiu chegar à final da Copa de 2010; no 5-3-2 pensado por Louis van Gaal, pela força das circunstâncias, a equipe laranja fez uma campanha surpreendentemente agradável na Copa de 2014.

Fenômeno semelhante também ocorreu com clubes. Sendo assumidamente defensivo fora de casa, o PSV também foi boa surpresa na Liga dos Campeões passada; e agora, tentando ser mais veloz e ofensivo, o Ajax causou impressão relativamente boa na fase de grupos da Liga Europa. Isto é, aqui e ali, há exemplos de que ainda é possível ser mais atual, mais... “moderno”. O problema é que tais opções colidem com o ideário holandês de futebol – obviamente, calcado muito nas ideias de Johan Cruyff. Para o Número 14, o futebol era menos estudo, menos previsibilidade, e mais imaginação individual, mais decisões rápidas dentro de campo, mais dependência do acaso - aliás, uma das frases do gênio diz: “Coincidência é lógica”. 

Até tem seu fundo de verdade. Mas hoje, por mais contraditório que pareça, para que um time seja fluido e circule bem dentro de campo, mudando taticamente ao sabor das circunstâncias da partida (como fazia, ora bolas, a seleção holandesa de 1974), muito precisa ser “estudado” fora de campo. Citando uma discussão que esteve em voga: mesmo para o time jogar com a despreocupação de um Renato Gaúcho, é preciso ter um metodismo – como mostram vários exemplos por aí, alguns até de um jeito obsessivo. 

Eis o drama da Holanda: não quer largar as ideias de Cruyff, mas ao mesmo tempo sabe que precisa fazer isso algumas vezes, se quiser ser realmente grande no futebol. Eis outra dúvida gigantesca (até comentada aqui vez por outra, principalmente no espaço de comentários), a que a morte de Cruyff pode levar a pensar: afinal de contas, a Holanda é grande? A resposta mais próxima da verdade: é uma seleção média, com status de seleção grande. Ninguém mandou ter atuações de sonho em 1974, descortinando novos rumos para o futebol mundial – coisa que outras “médias”, como Inglaterra e Portugal, jamais fizeram. Mas também ninguém mandou perder três finais de Copa, muito menos ter uma raquítica estante de títulos. E como bem souberam Espanha e França antes da bonança, sem títulos você pode até ser respeitada, mas isso vai até a página 2. Por mais cruel e impiedoso que seja, cabe o ditado: se a Holanda quer respeito definitivo, que faça por merecer. E só merecerá respeito definitivo... com títulos. Não adianta chorar. E conquistar esses títulos está mais e mais difícil.

Assim como dificilmente adiantará a Eredivisie querer ser um campeonato novamente atraente para novatos se não tomar atitudes práticas. Está certo que o Campeonato Holandês jamais foi tão interessante quanto se pensa (nem mesmo nos tempos campeões de Ajax e PSV o nível técnico era atraente). Sempre foi uma liga de segundo escalão. Mas até por isso, era um cenário ideal para o desenvolvimento de novos atletas, como um “ensaio geral” na Europa antes de craques tentarem coisa melhor. Provas disso não faltam: Romário, Ronaldo, Luis Suárez... mas isso mudou. Gigantes europeus têm suas redes de olheiros muito mais desenvolvidas. As contratações são muito mais precoces. 

Não há muito jeito das ligas menores sanarem isso – e se há um jeito, não é desejando mudar o formato de disputa do campeonato, como pensa a Eredivisie, inspirada na variedade maior de vencedores na liga da Bélgica. Há a velha ideia de unificar as ligas belga e holandesa, formando a famosa "Beneliga", mas ela anda em baixa hoje, por dois motivos. O primeiro é que isso já foi tentado nas ligas de futebol feminino, sem sucesso - tanto que ambas já voltaram a ser autônomas. O segundo é até mais complicado: num momento em que há clara guinada mais nacionalista no mundo, como falar em união - ainda mais sendo a Holanda a terra de Geert Wilders, sonhando em se tornar primeiro-ministro do país com discurso anti-Islã? Talvez o jeito seja fazer os grandes holandeses se organizarem, tentarem falar mais grosso, serem mais ambiciosos. Até porque, tradição por tradição, não deixam nada a dever a grandes portugueses, russos, ucranianos...

Enfim, talvez a morte de Cruyff não seja “o fim da história”. Mas só se ela representar o fim de certas utopias que não cabem mais no momento atual do futebol mundial. Se a Holanda seguir grudada a elas, aí sim, o perigo será grande de o “sonho” ter acabado.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 23 de dezembro de 2016. Revista e atualizada)

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