sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O 2015 do futebol holandês: crise escancarada

Frank de Boer pensou o que todo o futebol holandês de clubes pensa: o que fazer? (Jasper Juinen/Getty Images)
“O desmascaramento da Oranje em 2015.” Assim foi intitulado um texto do jornalista Willem Vissers, para o diário “De Volkskrant”, comentando sobre a desastrada (e desastrosa, como se veria) transição entre Guus Hiddink e Danny Blind no comando da seleção holandesa. Pois bem: se quisesse, Vissers poderia muito bem ter escrito sobre o desmascaramento do futebol holandês em 2015. Foi um ano que expôs de modo nu e cru o estado preocupante da modalidade na Holanda.

Houve uma tentativa de acreditar que a crise podia ser contornada. A própria seleção nacional deu essa impressão: em março, o empate em casa com a Turquia (eliminatórias da Euro) mostrara as falhas sérias que a Oranje tinha, mas a vitória no amistoso contra a Espanha podia indicar alguma evolução. Pois bem: não indicou, como ficou claro nas rodadas finais da qualificação para o torneio europeu, já sob o comando de Blind. As atuações lamentáveis decretaram o vexame da primeira ausência holandesa num importante torneio de seleções desde a Copa de 2002 - e avermelharam de vez um sinal que já andava amarelo desde que as eliminatórias começaram, em setembro de 2014.

Mesmo que a crise interna do futebol holandês já esteja clara há quase uma década, alguns bons resultados da Laranja nos torneios (as atuações auspiciosas na Euro 2008, o vice-campeonato mundial em 2010, o terceiro lugar surpreendente na Copa de 2014) minoravam o impacto da crise. Mas em 2015, não houve como fugir disso: a ausência da equipe nacional na Euro 2016 escancarou sem rodeios o cenário combalido que os clubes já mostram, temporada após temporada.

É fácil repetir a ladainha de que a falta de adaptação à Lei Bosman dilapidou a competitividade continental da Holanda no futebol europeu. Fácil e correto. Mas não justifica completamente a depressão vivida neste 2015 que está acabando. Uma explicação mais completa precisa mencionar um tema comentado perfeitamente pelo jornalista Pieter Zwart, no site catenaccio.nl (e traduzido para o inglês por Michiel Jongsma, do blog BeneFoot): o futebol holandês está perdido dentro de campo. Há muito tempo. E curiosamente, está perdido justamente por manter o lado mais envelhecido do seu estilo de jogo. 

Embora o conceito de “escola” esteja cada vez mais maleável, no sentido tático do futebol, ainda é possível apontar a essência da “escola brasileira”, da “escola argentina”, da “escola italiana”, da “escola alemã” etc. A questão é que todos esses países, em algum momento, puderam mesclar a essência aos avanços táticos naturais – aliás, mesclaram tanto que isso foi até danoso em alguns casos, como no brasileiro. Sem contar a maior possibilidade de gastos com preparações e transferências que a Europa tem, possibilitando um salto de desempenho impossível de ser igualado.

Pois bem: na hora de particularizar o desenvolvimento das escolas táticas ao redor do mundo, é que se vê como a Holanda ficou defasada. Enquanto Alemanha e Espanha despontaram, por exemplo, misturando o melhor do Futebol Total (a velocidade, a verticalidade no ataque, o esforço coletivo na marcação por zona, pressão incessante na saída de bola adversária) com os avanços na preparação física, os holandeses ainda apostam em variações preguiçosas do 4-3-3, em que só há troca de passes e, vez por outra, uma jogada mais aguda de ataque.

Exemplos assim campeiam no Campeonato Holandês. Talvez o maior deles seja o Ajax, que repetiu domesticamente a história da seleção holandesa. Enquanto ganhou o tetracampeonato nacional entre 2010/11 e 2013/14, os erros na concepção do time eram relevados. Neste 2015, a Eredivisieschaal não veio. E a participação continental foi indefensável, com as eliminações na terceira fase preliminar da Liga dos Campeões e na fase de grupos da Liga Europa. Mesmo assim, a equipe seguia apostando no 4-3-3, que tocava e tocava a bola no meio esperando um espaço na defesa adversária para criar as jogadas e fazer os gols. 

Contra a maioria dos adversários na Eredivisie – também com a defesa desacelerada e espaçada -, isso até é possível, como se vê em muitas rodadas. Não à toa, os Ajacieden lideram o torneio após o turno, encerrado no domingo passado. Já nos torneios continentais, contra adversários mais capacitados, o que se viu foi uma exasperante ineficiência, uma assustadora falta de criatividade. Também não é à toa que essa disputa entre o pragmatismo e o apego à velha tradição provocou o racha na diretoria do Ajax, enfim encerrado com o acordo entre o demissionário Wim Jonk, ex-diretor das categorias de base, e a direção do clube, que já contratou Patrick Ladru para a função - nome defendido por Marc Overmars e Dennis Bergkamp, os "vencedores" da cisão.

Já o PSV mostrou um estilo bem mais conservador no 4-3-3. Uma defesa dedicada, que conta com o apoio de Andrés Guardado e Jorrit Hendrix na marcação, já desde o meio-campo. E que tem pelas pontas ajuda mútua entre os atacantes, que marcam a saída de bola, e os laterais, que podem avançar vez por outra. Jogando assim, os Eindhovenaren mostraram consistência elogiável na temporada. E foram premiados com a primeira classificação de um holandês às oitavas de final da Liga dos Campeões desde 2006/07.

Há outros bons exemplos. Vários clubes “médios” mostraram esse estilo de jogo que trouxe mais pragmatismo ao futebol holandês, sem tirar totalmente sua essência ofensiva. E obtiveram bons resultados. Campeão da Copa da Holanda em 2014/15, o Groningen faz boa campanha no Holandês, com uma equipe bem veloz, que fornece rapidez nas chegadas ao ataque, pelas pontas, mas também tem esforço conjunto na marcação - desde o meio-campo, onde Hedwiges Maduro persegue os adversários junto de Simon Tibbling, que por sua vez também pode sair jogando. Tudo isso com o 4-3-3 como esquema básico.

Mesmo caso de Heracles Almelo e Vitesse, outras duas boas surpresas. No Heracles, a defesa tem o mérito de se manter compacta durante os 90 minutos, possibilitando que o meio-campo avance constantemente para o ataque - não à toa, um armador, Iliass Bel Hassani, é dos destaques dos Heraclieden na temporada. Já o Vitesse se vale de métodos parecidos com os do Groningen: tem um ataque muito acelerado (destaque para a revelação Dominic Solanke), possui um bom ponta de lança em Valeri Qazaishvili, mas tem ajuda de todos esses na marcação, desde a área de defesa adversária.

O Zwolle, por sua vez, faz mais uma boa temporada apostando no 4-2-3-1 conservador, com uma barreira de até seis homens na defesa (os dois volantes são predominantemente marcadores), enquanto o meio-campo tem dois homens velozes pelos lados, ajudando nas jogadas o atacante finalizador (já foi Tomas Necid; hoje, é Lars Veldwijk).

Sem contar que, ao olhar para o que Bayern e Barcelona fazem, nota-se: a “escola holandesa” de jogar bola ainda vive. Só não está mais na Holanda. E nem parou no tempo, como ainda se acredita nos Países Baixos. Que sofrem com esse atraso tático, mais a natural desvantagem financeira em relação a grandes centros. Prova disso é que, a despeito da surpresa agradabilíssima do PSV na Liga dos Campeões, a Liga Europa viu desempenhos lamentáveis das equipes holandesas. Basta dizer que só houve uma vitória holandesa na fase de grupos do torneio (o 2 a 1 do Ajax no Celtic, na quinta rodada, em novembro).

Resta olhar esses bons exemplos que ainda surgem e esperar que sejam a luz no fim do túnel. Só assim, o péssimo ano do futebol holandês terá servido de algo.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 24 de dezembro de 2015)

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