sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Apenas cumprindo a promessa

O Ajax espera por David Neres, o símbolo da nova e controversa abordagem da equipe nas transferências (Instagram/Ajax.nl)

“Naturalmente faremos maus negócios, eu também erro. Mas quem não arrisca, não petisca”. Esta declaração foi publicada aqui nesta coluna – mais precisamente, em 18 de novembro, quando o assunto foi a evolução do Ajax nesta temporada, com o técnico Peter Bosz achando aos poucos um jeito tático, com os jogadores exibindo um estilo acelerado em campo, e principalmente, com Marc Overmars, de contrato renovado até 2020 como diretor de futebol, querendo fazer com que o clube da estação Bijlmer Arena fale mais grosso no mercado de transferências – tendo para isso o respaldo do diretor geral, Edwin van der Sar.

O tempo passou. E esta semana trouxe o que talvez seja a grande prova de como a abordagem dos Ajacieden mudou, com os 12 milhões de euros gastos sem dó na contratação de David Neres – simplesmente a segunda negociação mais cara da história da agremiação. Enquanto o São Paulo agradece o dinheiro que vai abater boa parte de sua dívida, e a torcida do clube do Morumbi fica com sensações controversas (há quem ache que o Clube da Fé saiu ganhando no negócio, há quem ache que a ambição esportiva e a aposta no atacante promissor deveriam ter prevalecido), o Ajax mostrou: não vai mais apostar somente nos talentos de sua base sempre frutífera. Vai gastar.

Dará certo? Muito cedo para dizer. Sim, David Neres começou bem na carreira – prova disso foi sua entrada elogiável no time são-paulino de cima, com três gols nos oito jogos feitos pelo Campeonato Brasileiro do ano passado, despontando com a atuação animadora nos 4 a 0 sobre o Corinthians, pela 34ª rodada. Todavia, Neres sequer tinha virado titular, que dirá absoluto – embora tivesse potencial para se tornar isso em pouco tempo. E tudo faz crer que levará algum tempo para que isso ocorra com o brasileiro em Amsterdã. Pensando no setor direito do ataque, local preferencial de atuação de David, Peter Bosz já tem à disposição um titular (Bertrand Traoré, que voltará da atuação por Burkina Faso na Copa Africana de Nações) e um reserva (Justin Kluivert, a nova coqueluche dos Godenzonen). 

Além do mais, a história mostra: quando se mete a gastar, quase sempre o Ajax faz os “maus negócios” a que Overmars se referiu. Olhando a lista organizada pela fonte básica que é o Transfermarkt, é impossível evitar o espanto ao ver que a compra mais vultosa feita pelo Ajax em seus quase 117 anos de história foram os 16,2 milhões de euros pagos em (rufem os tambores...) Miralem Sulejmani, atacante sérvio vindo do Heerenveen para a temporada 2008/09. Na época, parecia um negocião – até porque Sulejmani ascendia na seleção de seu país, pela qual esteve na Copa de 2010. Mas o tempo passou, “Mickey” nunca virou o jogador que se esperava... e o clube de Amsterdã engoliu o prejuízo em julho de 2013, ao ver Sulejmani sair para o Benfica a custo zero.

David Neres, já se sabe, foi o segundo jogador mais caro da história dos Amsterdammers. O terceiro? É outra prova de como o Ajax anda abrindo mais o cofre: foi Hakim Ziyech, tirado do Twente nos últimos dias da janela de transferências do verão europeu passado, por 11 milhões de euros. Pelo menos, Ziyech já se converteu em titular absoluto no time: por enquanto, com 6 assistências e oito gols neste Campeonato Holandês, o marroquino justifica o gasto e o alívio que o Ajax teve ao saber que Hervé Renard o deixou de fora da convocação para a Copa Africana.  Ainda assim, é cedo para cravar que Ziyech foi bom negócio. 

Somente a quarta maior compra da história do Ajax (Klaas-Jan Huntelaar, trazido do Heerenveen por € 9 mi, em janeiro de 2006) deu alguma sensação de lucro posterior, pelas boas atuações de Huntelaar com a camisa alvirrubra e a posterior venda ao Real Madrid. De resto, há mais gastos temerários (Giorgi Kinkladze, Albert Luque, Darío Cvitanich) do que apostas certeiras (Zlatan Ibrahimovic, Luis Suárez). Por isso, ao ver o montante gasto em David Neres, as perguntas básicas da torcida do Ajax foram: “Quem é o garoto? Precisava tanto dinheiro assim?”. Justa, a desconfiança. 

Até porque os balanços do Ajax indicam um clube que arrecada até muito, mas vive uma realidade distante de equipes que podem "rasgar dinheiro". É verdade que os sucessivos títulos holandeses entre 2011 e 2014 - que levaram à fase de grupos da Liga dos Campeões - renderam um dinheiro muito bem vindo. Em 2011/12, foram € 104,1 milhões que entraram no cofre; em 2012/13, 105,6 mi; na temporada seguinte, 103,7 mi; e no ano do tetra Ajacied na Eredivisie, 105,4 milhões de euros. A coisa começou a piorar em 2015/16: sem participação na Liga dos Campeões (e ficando na fase de grupos da Liga Europa), a renda líquida no balanço ficou nos € 93,4 mi. E tudo indica que a salvação para o cofre, em 2016/17, virá das vendas de Jasper Cillessen e Arkadiusz Milik. Ou seja: dinheiro não falta, mas também não sobra.

E dentro de campo, o Ajax continua relativamente bem nesta Eredivisie. Peter Bosz, enfim, conseguiu o que queria: livrou-se de quem ficou descontente com sua mudança para um 4-3-3 com linha altíssima de marcação, quase sempre com a defesa atuando no meio-campo. Riechedly Bazoer e Nemanja Gudelj já tinham saído; neste final de janela, foi a hora da saída para Mitchell Dijks e Anwar El Ghazi. Como o improvisado meio-campista Daley Sinkgraven saiu a contento na canhota, Dijks foi cedido ao Norwich City até o fim da temporada; já tendo problemas com Bosz, El Ghazi até vinha jogando, mas é claro que sua venda ao Lille foi a melhor solução – além de ter rendido caraminguás, sempre bem vindos a clubes holandeses.

Além do mais, repita-se algo já dito aqui: jogar de um modo quase suicida só está dando certo para o Ajax porque alguns jogadores têm brilhado. Na zaga, Davinson Sánchez é o exemplo de aposta certeira: o defensor colombiano veio do Atlético Nacional para virar o elemento-surpresa, e é exatamente o que tem feito, saindo frequentemente com a bola dominada e sendo o ponto inicial dos desarmes no meio-campo. Por falar nele, aí o Ajax impõe seu domínio: Davy Klaassen se credencia como líder da equipe, já se falou de Ziyech, e Lasse Schöne voltou a crescer, com algum poder de criação e muita capacidade nos chutes de fora da área, em faltas ou com bola rolando. No ataque, Kasper Dolberg até se movimentava bem, mas faltavam os gols. Não faltam mais: após 641 minutos sem marcar, o dinamarquês balançou as redes no 3 a 0 sobre o ADO Den Haag. Sem contar o gol, onde o camaronês André Onana teve sua “vitória” definitiva com a devolução de Tim Krul ao Newcastle – e o novo empréstimo, agora ao AZ.

Como se não bastasse, há a boa surpresa do Jong Ajax, o time de aspirantes, que disputa a segunda divisão holandesa de modo elogiável, conseguindo a segunda posição. Obviamente, não poderá ser "campeão de período" - logo, não subirá à Eredivisie (até porque todo jogador lesionado do time de cima pode atuar pelo time B, para ganhar fôlego). Mas vários talentos que começam no Jong Ajax vão sendo promovidos – já ocorreu com o zagueiro Matthijs de Ligt e os atacantes Pelle Clement e... Justin Kluivert, que até titular já foi contra o ADO Den Haag. 

Talvez o time B seja o caminho para David Neres ganhar tempo e entrosamento. Para estar pronto quando vier a promoção esperada ao time principal. E poder justificar a clara mudança de abordagem do clube nas transferências.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 3 de fevereiro de 2017)

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