sexta-feira, 24 de março de 2017

A vida continua


Após algum tempo, enfim Danny Blind pode se apresentar um pouco mais otimista com a Holanda (European Press Agency)
Desde a fracassada participação nas eliminatórias da Euro 2016, a seleção da Holanda vive uma espécie de “depressão”. Para uma seleção tradicional como é a do país batavo, a ausência impactou demais – é certo que ficar de fora da Copa de 2002 foi até mais feio, mas a repercussão ainda era menor (embora já considerável). Pior: a “depressão” é agravada por dois fatores. A lembrança recente do que a seleção pode fazer (nem parece que se fala de uma equipe que fez o que fez na Copa de 2014, quando ninguém esperava o terceiro lugar, e que estava acostumada a despachar adversários nas eliminatórias dos torneios), e a desconfiança constante de torcida e acompanhantes de futebol em geral, a partir da ausência da Euro. A ponto de já se falar, até exageradamente, que a Holanda viverá uma espécie de “hungarização”, estando condenada a viver das lembranças para sempre, nos clubes e na seleção. Como a Hungria, após 1954 – participação na Euro 2016 à parte.

Tal desconfiança tem razão de ser. Afinal, também não se supunha que o vexame holandês fosse ser tão grande na qualificação para o torneio continental de seleções. Sem contar a dificuldade na renovação de jogadores, já abordada nesta coluna. No entanto, o olhar de soslaio para a Laranja já está tomando um vulto grande demais. E o grupo convocado para as datas Fifa – neste sábado, contra a Bulgária, em Sofia, pelas eliminatórias da Copa de 2018, e na próxima terça, em amistoso contra a Itália, na Amsterdam Arena – tem as condições de provar que, se não é a melhor geração de jogadores que a Holanda teve (longe disso), também não é a pior, como parece.

Para começo de conversa, os trabalhos de preparação dos 25 jogadores convocados, em Noordwijk, já tiveram um clima mais otimista. E ao olhar para a relação feita por Danny Blind, ela até abre algumas possibilidades. Principalmente num setor sempre problemático: a defesa. Que, tudo indicava, sofreria ainda mais para estes jogos: afinal, com as lesões de Jeffrey Bruma e Virgil van Dijk, nenhum dos zagueiros titulares nas últimas partidas de 2016 estará à disposição. 

Mas, se Bruma e Van Dijk estão machucados, Stefan de Vrij está recuperado e voltou a ser lembrado. Como já mostrou na Copa de 2014, o zagueiro oferece segurança - e até mais habilidade com a bola nos pés. Caso se recupere de um problema no tornozelo, sofrido durante os treinos, De Vrij ainda poderia formar a dupla de zaga no 4-3-3 com outro convocado: justamente o seu companheiro na Lazio, Wesley Hoedt, estreante na Laranja. Ambos formam a terceira melhor defesa do Campeonato Italiano, só perdendo para Juventus e Roma – e o entrosamento nos Biancocelesti pode muito bem ser reproduzido na Oranje.

De Vrij: se recuperado, pode ser muito útil na zaga da seleção holandesa (Soenar Chamid/VI Images)

Sem contar aquela que foi a maior surpresa da convocação: Matthijs de Ligt. Tudo bem, o zagueiro de 17 anos vem correspondendo nas oportunidades que ganha no Ajax; foi muito bem na partida de volta das oitavas de final da Liga Europa, contra o Copenhague; e o próprio técnico do Ajax, Peter Bosz, sugeriu: “Se eu fosse o técnico da seleção, ousaria com [a convocação de] De Ligt”. O que não se esperava era que Danny Blind atendesse aos pedidos e incluísse o jovem na lista final – embora só se devam esperar oportunidades no amistoso contra a Itália. 

Ainda assim, Blind foi bem positivo ao falar de De Ligt: “Eu não sou o pai dele, não o conheço como homem, mas gosto das reações dele em campo. Ele tem aprendido muito com o Ajax, sejam coisas boas ou ruins. Pode ser que ele comece jogando, ainda mais porque temos duas partidas a serem disputadas”. Se aproveitar a chance, o novato certamente será mais uma opção. Como o é Rick Karsdorp, muito bem pelo Feyenoord na temporada, já se consolidando como nome na lateral direita, onde disputa posição com a dupla do Ajax (o titular Joël Veltman e o reserva Kenny Tete). Na lateral esquerda, não há muita contestação: Daley Blind é o nome.

O meio-campo também foi outro setor do time que aparentemente sofreria, mas oferece motivos para esperança, aqui e ali. Davy Klaassen já entrou naquela categoria de jogadores que está grande demais para o Campeonato Holandês; é o mais importante na equipe do Ajax, controlando o ritmo da equipe e mostrando por que é o capitão Ajacied. Contrariando todas as expectativas, Kevin Strootman conseguiu ótima sequência de jogos na temporada, ganhou paz após as lesões, e enfim é o que todos esperavam que ele fosse quando chegou à Roma: um dos pilares da equipe. Assim como Georginio Wijnaldum, certamente um dos melhores e mais importantes jogadores do Liverpool na atualidade. Sem contar Jens Toornstra e Tonny Vilhena: também convocados, os meio-campistas certamente serão lembranças de destaque no Feyenoord cada vez mais próximo do consagrador título holandês. Porém, nenhum deles ainda é páreo para a importância do capitão Wesley Sneijder no elenco – e poucos ousam imaginar Danny Blind escalando a Oranje sem ele, por mais que o nível de suas atuações tenha caído visivelmente.

Robben: como ousar pensar a Oranje sem ele, ainda? (ANP/Pro Shots)

Mas se há quem pense que Sneijder devia ser passado na seleção holandesa (e nem é absurdo pensar assim), simplesmente não há quem imagine a Laranja sem Arjen Robben na ponta direita do ataque, com a camisa 11. E Robben assumiu, em entrevista coletiva, que pensou na possibilidade: “Eu me perguntei se deveria seguir nas duas frentes, clube e seleção, ou se somente jogaria pelo Bayern. Até falei com minha família, com minha esposa e com o técnico [Blind]”. Para a sorte da Holanda, as lesões renitentes deram uma trégua. Foi o suficiente para que o atacante voltasse a ser muito importante nos bávaros rubros. E para que ele decidisse seguir em frente: “Agora, já estou em forma há um tempo. Por isso, decidi continuar na seleção. Ainda quero jogar mais uma Copa”.

E ao lado de Robben, no centro do ataque, está uma das grandes dúvidas de Danny Blind. Até aqui, Vincent Janssen é grossa decepção – até previsível, a bem da verdade – no Tottenham, mas tem cumprido seu papel na seleção. Porém, tem na concorrência um Bas Dost que voltou a viver grande fase – não só como goleador do Campeonato Português, mas marcando gols a ponto de disputar seriamente a Chuteira de Ouro europeia. Para os dois jogos, a questão foi "resolvida" por uma gripe que levou ao corte de Janssen - Dost deverá ser o titular, com Luuk de Jong chamado às pressas para a reserva. No entanto, a dúvida está posta sobre quem será o “camisa 9” holandês. Na ponta esquerda, também parece clara a opção por outro “renascido das cinzas”: Memphis Depay, enfim com tempo e oportunidades para jogar no Lyon - e começando a se destacar nos Gones.

Bas Dost: crescendo no clube e na seleção (European Press Agency)

Aliás, os casos de Dost e Memphis merecem parênteses. Talvez estes dois atacantes estejam passando por um processo semelhante ao que Klaas-Jan Huntelaar passou em sua carreira. Após despontar muito bem em Heerenveen e, principalmente, no Ajax, Huntelaar chegou com muitas apostas sobre si no Real Madrid. Fracassou no clube da capital espanhola - e foi ainda pior no Milan, dizimando esperanças sobre ser um atacante de ponta. Ainda assim, foi para o Schalke 04, e conseguiu levar a carreira no futebol alemão com regularidade, mostrando que também não era totalmente desprovido de talento. Talvez a mesma coisa possa acontecer com Depay, que ganha no Lyon a possibilidade de jogar num campeonato de nível técnico acessível o suficiente para mostrar que não é a promessa apagada que se viu no Manchester United. E possa acontecer também com Dost: embora já não seja mais uma promessa, o atacante vive no Sporting uma fase que possibilita apagar as lembranças da passagem irregular pelo Wolfsburg. Ambos serão craques? Quase certamente, não serão. Mas também não serão de se jogar fora.

Janssen, Dost, Memphis, Klaassen, Wijnaldum, Strootman: várias boas opções para formar uma equipe boa. Não excelente, mas boa. Por incrível que pareça, também acaba sendo um problema para a Holanda, já que não são nomes respeitáveis como os veteranos Sneijder e Robben. Contudo, é preferível ter uma variedade razoável de nomes a uma variedade cheia de problemas. É justamente o que acontece entre os goleiros. Maarten Stekelenburg parecia definitivamente recuperado, mas lesionou-se novamente e perdeu o lugar no Everton; Jasper Cillessen parece contentar-se só de estar no Barcelona e poder jogar as partidas na Copa do Rei; Michel Vorm tem experiência e capacidade, mas não tem a menor chance de jogar no Tottenham; após a turbulenta passagem pelo Ajax, Tim Krul apenas recupera o ritmo de jogo no AZ. Resta Jeroen Zoet – que até já foi mais importante no PSV, mas tem cumprido seu papel, o que parece suficiente.

É um problema. Mas que, nem de longe, significa que o time da Holanda é indefensavelmente ruim. Parece melhor que todos os adversários do grupo A das eliminatórias europeias para a Copa (exceto a França, claro). Já seria suficiente para tentar a repescagem – onde um possível adversário seria a Itália, contra a qual a Laranja se testará no amistoso da próxima terça. Se toda morte traz um período de luto, após o qual é necessário continuar, a Holanda já parece serena para entender que a vida continua, nesta sexta que marca o primeiro ano do desaparecimento de Johan Cruyff.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 24 de março de 2017)

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