terça-feira, 31 de dezembro de 2024

O que falta?

A torcida da Holanda (Países Baixos) brilhou na Eurocopa dos homens, neste 2024. Só que falta algo, em todos os quesitos, para que o brilho seja carregado de vitórias (Eric Verhoeven/Soccrates/Getty Images)

Vendo em perspectiva, neste penúltimo dia do ano de 2024, fazia tempo que o futebol não vivia na Holanda (Países Baixos) um ano... normal. Em todos os sentidos. No âmbito de clubes, é comum que haja uma "alternância de hegemonias" - e após anos do Ajax dando as cartas, com o Feyenoord imperando em 2023, o PSV começa a ensaiar ser o time a ser batido dentro do Campeonato Holandês (masculino e, talvez, feminino). 

No âmbito das seleções de homens, a Laranja tem a fama de ter boas seleções, de fazer papéis decentes nas competições de que participa... mas fraquejar na hora final. A Eurocopa colocou mais um capítulo nesse estereótipo. E nas seleções de mulheres, após a fase fulgurante que a colocou na ribalta entre 2017 e 2019, a equipe neerlandesa segue como uma das mais aparecidas de um "segundo escalão" - e mesmo nele, este 2024 foi ano de grandes dificuldades.

Enfim, no geral, o Reino dos Países Baixos até aparece bem no futebol europeu, mas faz tempo que não desponta impondo respeito real. O que falta, em cada um destes âmbitos, para que isso aconteça?

O PSV brilhou mais na primeira metade do ano. Na segunda, menos. Mas segue dominando o Campeonato Holandês, por enquanto (NESimages/Perry vd Leuvert/DeFodi Images via Getty Images)

Futebol masculino de clubes: falta uma boa campanha europeia

O domínio do PSV no futebol interno da Holanda se dividiu em duas fases. No primeiro semestre - isto é, na reta final da temporada 2023/24 -, o domínio foi absoluto. É certo que isso se deveu, em grande parte, ao primeiro turno esplendoroso que o clube de Eindhoven fizera no ano passado (17 jogos, 17 vitórias). Mas nada disso diminui a soberania ostentada pelos Boeren, que pareciam destinados ao 25º título nacional de sua história muito antes de efetivamente o conquistarem, com três rodadas de antecedência. Com um time que teve vários destaques: André Ramalho e Olivier Boscagli na zaga, Joey Veerman e Jerdy Schouten no meio-campo, Malik Tillman, Johan Bakayoko e Guus Til avançando e, acima de todos, Luuk de Jong, goleador do torneio (ao lado de Vangelis Pavlidis, com 29 gols cada um), um dos maiores jogadores do PSV neste século.

Se houve algum time que mais chegou perto de desafiar o domínio do PSV, foi o Feyenoord, campeão da Copa da Holanda em 2023/24, vice-campeão da Eredivisie, também tendo bons jogadores despontando (ênfase em três nomes: Quinten Timber no meio-campo, Santiago Giménez e Igor Paixão no ataque), um trabalho constante a ponto de conduzir o técnico Arne Slot ao Liverpool. E na primeira parte desta temporada 2024/25, se o novo treinador, Brian Priske, demorou um pouco para colocar o Stadionclub nos eixos, isso parece começar a acontecer. Se nesta temporada do Holandês ainda há alguns tropeços, se o time tem pontos a corrigir, na Liga dos Campeões há indicações de que o clube pode ir além.

Assim como ocorre com o Ajax, que começa a se aliviar. Se a primeira metade do ano foi apenas para os Ajacieden controlarem os danos de um começo terrível de temporada - símbolo de um dos piores momentos da história recente do clube, no mínimo -, aparentemente o técnico Francesco Farioli (em campo) e o diretor de futebol Alex Kroes (fora dele) ajustaram os rumos do clube. Que recebeu algumas contratações - se é que nomes como o velho conhecido Davy Klaassen são contratações novatas. Que se firmou num estilo de jogo um pouco mais sólido, mais parecido com o que a torcida gosta de ver. Que já teve bons momentos, em 2024/25: vitórias sobre os arquirrivais PSV e Feyenoord (Eredivisie), uma boa campanha na Liga Europa, um time que, se não faz bonito, feio também não faz.

Francesco Farioli chegou para treinar o Ajax. Que, se não está novamente imponente, está bem mais confiável do que na primeira metade do ano (Rene Nijhuis/MB Media/Getty Images)

E outros clubes também não fazem feio. Que o diga o Utrecht: enfim, os Utregs chegaram onde queriam, há muito tempo. Como terceiros colocados da Eredivisie, estão inseridos na grande disputa pelo título, ao invés de figurarem apenas nas zonas de vagas em competições europeias. AZ e Twente, por suas vezes, fazem o papel a que estão habituados: o "sub-topo", e presenças nos torneios continentais. E aí é que falta algo aos clubes holandeses. Na reta final da temporada passada, mesmo avançando às oitavas de final da Liga dos Campeões, o PSV poderia ter feito mais contra o Borussia Dortmund. Feyenoord e Ajax duraram pouco, tanto na Liga dos Campeões, quanto na Liga Europa (ou mesmo na Conference League, onde o Ajax caiu, já sendo eliminado de cara na segunda fase).

Há quem diga que o problema é que nem sempre a Holanda manda seus melhores times de fato para as competições continentais. "Culpa", por exemplo, da repescagem por vaga na Conference League: em 2023/24, o Go Ahead Eagles (9º lugar na temporada regular) superou o Utrecht (7º colocado), ganhou o lugar na segunda fase preliminar da Conference... e já caiu, para o SK Brann norueguês. Prejudica o coeficiente, é verdade. Mas não parece ser esta a razão. Em primeiro lugar, porque o Go Ahead Eagles faz novamente campanha belíssima para seus padrões de time pequeno (7º lugar na pausa de inverno). Em segundo lugar, porque tanto PSV quanto Feyenoord quanto Ajax, no mínimo, poderiam suar menos para figurarem nas fases seguintes de Liga dos Campeões (caso dos dois primeiros) e Liga Europa (o terceiro).

Pois bem: falta, na verdade, os clubes que se destacam na Eredivisie se destacarem mais na Europa. É possível, e exemplos não faltam. O mais recente foi o Feyenoord, finalista da Conference em 2021/22. Quem tiver competência que se estabeleça. A Holanda precisa. Até porque Portugal segue nos calcanhares...

O cenário da mais recente decepção da seleção masculina da Holanda (Países Baixos): na semifinal da Eurocopa, a Inglaterra fez o gol de sua vitória no último minuto. Nada da Laranja vencer as grandes... (Chris Brunskill/Fantasista/Getty Images)

Seleção masculina: falta ganhar das maiores

O 2024 da seleção de homens da Holanda (Países Baixos) foi ruim? Claro que não, impossível e até injusto falar isso. Uma seleção semifinalista de Eurocopa não está exatamente em crise. Entretanto, quando o técnico Ronald Koeman avaliou que a Laranja merecia uma nota "7, talvez 8, como semifinalista de Euro" para o seu ano, o estranhamento foi grande. Compreensível: afinal de contas, por mais que tenha bons jogadores, um nível técnico razoável... falta "a" vitória". Falta a Oranje convencer contra seleções tão tradicionais e grandes - até maiores - do que ela. Contra as menores, está tudo no lugar, como a vaga nas quartas de final da Liga das Nações indica. Mesmo a campanha na Euro indica isso. Parecia não indicar, diante de como a fase de grupos terminou: uma derrota por 3 a 2 para a Áustria, com a defesa frágil demais para o que os nomes (Virgil van Dijk, Nathan Aké, Stefan de Vrij, Matthijs de Ligt...) sugeriam. Mas àquela altura, a Laranja estava já classificada para as oitavas de final. E a sorte rendeu a ela um caminho bem mais suave do que poderia ter acontecido.

Romênia nas oitavas de final, Turquia nas quartas de final: a Holanda bateu ambas. A Romênia, facilmente; contra os turcos, se houve dificuldades, houve ainda mais desejo de vitória para a virada por 2 a 1. Ir longe ampliava a "onda laranja" que tomou conta da Alemanha, com centenas de milhares de torcedores neerlandeses viajando ao país-sede da Euro. Porém, contra a Inglaterra, na semifinal... o começo de sonho, com o rápido 1 a 0 de Xavi Simons, logo foi superado por uma clara superioridade da Inglaterra, que empatou ainda no primeiro tempo. E quando virou para ir à final da Euro, foi para não dar chances: no minuto final do tempo regulamentar. O que mostrou um dos erros que Ronald Koeman tem em seu trabalho: excesso de cautela. Somente ao tomar o segundo gol é que o técnico decidiu fazer mudanças, colocando Brian Brobbey e Joshua Zirkzee no ataque para tentarem o empate... nos acréscimos. Sendo que a jogada do segundo gol inglês veio justamente dos reservas colocados minutos antes por Gareth Southgate: Cole Palmer lançou, Ollie Watkins fez o gol. Mais uma decepção na reta final.

Ronald Koeman avaliou o ano da seleção holandesa masculina com nota 7, "talvez 8", mas torcida e imprensa são mais exigentes (Srdjan Stevanovic/Getty Images)

Mas o problema da Laranja não conseguir vencer seleções "do seu tamanho" é claro desde o começo do "segundo reinado" de Koeman. Tome-se por exemplo a França, seleção grande mais vezes enfrentada desde 2023: em três jogos, duas derrotas (eliminatórias da Euro) e um empate (na fase de grupos da Euro). A Inglaterra venceu na supracitada semifinal da Euro. E na fase de grupos da Liga das Nações, em que a Alemanha foi a adversária a ser batida, se o empate em 2 a 2 (segunda rodada) deu alguma perspectiva, a derrota por 1 a 0 (4ª rodada) poderia ter sido até maior. Sem contar alguns tropeços periódicos contra seleções inferiores: a citada derrota para a Áustria na fase de grupos da Eurocopa, o empate contra a Bósnia com que a fase de grupos da Nations League - e 2024 de modo geral - foi fechado. Basta citar uma estatística: a seleção masculina da Holanda só venceu metade de seus jogos, 8 de 16, no ano de 2024.

Bons jogadores, há: os zagueiros citados, Denzel Dumfries, Tijjani Reijnders, Teun Koopmeiners, Ryan Gravenberch, Frenkie de Jong, Xavi Simons, Cody Gakpo... e se os atacantes testados, Joshua Zirkzee e Brian Brobbey, decepcionaram, Memphis Depay parece à disposição para voltar, remoçado pelo bom começo no Corinthians. Para nem citar a geração mais jovem, que fez campanha perfeita nas eliminatórias da Euro sub-21 de 2025, terá grupo acessível na competição e pode, sim, sonhar em ser campeã. Entretanto, falta a vitória grande. Uma sequência de vitórias grandes, quem sabe, para a Holanda poder deixar a "segunda prateleira". Que chance melhor haveria do que a colocada: vencer a Espanha, campeã da Euro, nas quartas de final da Liga das Nações que virão em março?

Esmee Brugts é a jovem que mais se destaca na seleção feminina da Holanda. Aos poucos, mais jovens precisarão aparecer, porque algumas veteranas se retiram. Nada melhor do que uma Euro que se promete dificílima (Hans van der Valk/BSR Agency/Getty Images)

Futebol feminino: falta as jovens se estabelecerem

Terça-feira, 16 de julho de 2024, Brann, Noruega. Fim de jogo, na última rodada das eliminatórias da Eurocopa feminina. A seleção de mulheres da Holanda (Países Baixos) estava classificada para o torneio, após suado empate (1 a 1) contra as norueguesas. Nas entrevistas pós-jogo, tanto a capitã Sherida Spitse quanto Vivianne Miedema - autora do gol de empate, a dez minutos do fim - choraram. Nada muito exagerado, mas as lágrimas de ambas deixaram claro como 2024 foi um ano árduo no futebol holandês de mulheres. Pelo menos, na seleção.

Também, pudera. O começo de 2024 trazia esperanças, com as decisões da Liga das Nações podendo render uma vaga olímpica. Só que as Leoas Laranjas foram tendo uma dificuldade após a outra. Em janeiro, Jill Roord rompendo seu ligamento cruzado anterior no joelho direito; convocadas, Miedema e Pelova sentiram dores e chegaram em más condições; e na semifinal contra a Espanha, as Leoas Laranjas foram presas fáceis, num 3 a 0 com total domínio espanhol. Havia ainda uma chance de vaga em Paris-2024, na decisão de 3º e 4º lugares, contra a Alemanha, em casa... e nada feito: a equipe dos Países Baixos foi pressionada, tomou mais 2 a 0, e ficou de fora do torneio olímpico. Uma pena.

Pena maior ainda porque as dificuldades foram se avolumando, durante a campanha nas eliminatórias da Euro. Em primeiro lugar, tanto pela decepção na Liga das Nações quanto pela sensação própria de que seu ciclo tinha passado, Lieke Martens colocou fim à sua vitoriosa trajetória nas Leoas Laranjas. Em segundo lugar, porque justamente no último jogo de Martens pela seleção (1 a 1 contra a Finlândia, na quarta rodada), mais uma gravemente lesionada: Victoria Pelova, outra com o ligamento cruzado anterior rompido. Em terceiro lugar, pela falta de gols: foram apenas quatro, nas eliminatórias.

A vaga na Eurocopa veio, mas a trajetória das Leoas Laranjas nas eliminatórias foi sofrida (Divulgação/KNVB Media)

Mas, afinal, a vaga veio. Bem como a impressão de que a Holanda está "trocando de casca". Afinal de contas, aos poucos as veteranas vão abrindo espaço: Martens parou com a seleção, Spitse e Daniëlle van de Donk devem fazer o mesmo após a Euro (Spitse deixou de ser titular nas datas FIFA passadas, inclusive), e são somente quatro as veteranas que devem tentar a vaga na Copa de 2027 (a saber: Dominique Janssen, Jackie Groenen, Roord e Miedema). De resto, as novatas estão aí. Estão na boa campanha no Mundial Sub-20, novamente com a quarta colocação, mesmo com um time limitado. Estão na quantidade de jogadoras abaixo dos 25 anos que brilham na equilibrada disputa do Campeonato Holandês feminino: Lotte Keukelaar no Ajax (há Lily Yohannes, claro, mas esta se definiu por defender os Estados Unidos); Veerle Buurman, Nina Nijstad e Chimera Ripa no PSV; Elisha Kruize e Nikita Tromp no Utrecht; Femke Liefting, no AZ.

Ainda há as novatas que têm seu espaço firme em ligas mais competitivas. Daphne van Domselaar e Chasity Grant, na Inglaterra; Caitlin Dijkstra, na Alemanha; Damaris Egurrola Wienke e Romée Leuchter, na França; Esmee Brugts, na Espanha. Já está na hora delas começarem a assumir o protagonismo nas Leoas Laranjas. E por mais que as veteranas sejam de imensa ajuda - ainda mais no grupo duríssimo que virá na Euro, em que Inglaterra e França não permitirão erros -, as jovens precisam se destacar para confirmarem e completarem a "mudança de casca" por que a seleção feminina da Holanda (Países Baixos) passará em 2025.

domingo, 29 de dezembro de 2024

Laranja Mecânica, primeira e única: 10º capítulo - apesar de tudo, valeu

A Holanda decepcionou justamente quando não podia: na final da Copa de 1974. A Alemanha (Ocidental) foi justa campeã. Mas os holandeses perdoaram (Getty Images)


Para além da vitória contra o Brasil, no jogo decisivo da segunda fase, chamava a atenção que a Holanda (Países Baixos) estivesse aliviada só de chegar à final da Copa de 1974. Na coluna que ditava a um jornalista para o diário De Telegraaf, Johan Cruyff já dava o título: "Objetivo alcançado". No diário que escreveu durante a Copa, Jan Jongbloed relaxava: "Pela primeira vez neste torneio, eu me sinto muito calmo. Não sei por quê, mas é provavelmente por termos chegado à final, e certamente não deixaremos escapar". Ruud Krol retomava a humildade: "Alcançamos a final com tudo, porque ninguém esperava isso da gente. Mesmo assim, espero que possamos superar a Alemanha". Para tanto, os desafios e os problemas aumentaram cada vez mais para a Laranja, embora ninguém soubesse: a badalação fosse grande na imprensa de todo o mundo. 

Em primeiro lugar, não só Johan Cruyff continuava apenas melhorando da gripe que já o acometera antes do jogo contra o Brasil, como seguia precisando convencer a esposa Danny de que nada de errado acontecera na festa pós-jogo contra a Alemanha Oriental. Em segundo lugar, Robert Rensenbrink sofria com dores no fêmur, desde a vitória sobre a Seleção, e sua escalação era colocada sob (muita) dúvida - só foi aprovado e escalado após teste na manhã do dia da final. Em terceiro lugar, a delegação holandesa perdera um nome importante: auxiliar de Rinus Michels, Cor van der Hart fora dispensado nos dias anteriores ao domingo da final, em razão do mau comportamento na confraternização no Waldhotel. Van der Hart era importante: vinha dele o material para os jogadores sobre os adversários da Oranje naquela Copa, jogo a jogo. E em quarto lugar, por decisão de Rinus Michels, a mudança para Munique, sede da final, ocorreu um dia antes - para desagrado de alguns jogadores, que preferiam o Waldhotel-Krautkrämer, na cidade alemã de Hiltrup, com que já estavam acostumados. Não era à toa: Cruyff chegou à reta final da Copa se dizendo "exausto".

A Alemanha Ocidental subia na hora certa

De certa forma, a Holanda vinha em tendência interna diferente da Alemanha Ocidental rumo à final. A seleção da casa fizera uma primeira fase altamente criticada, mesmo com as vitórias sobre Chile (1 a 0, na estreia) e Austrália (3 a 0). A derrota para a "irmã" oriental, no jogo final da fase de grupos (1 a 0), causou controvérsia - alguns suspeitam da Mannschaft ter "aliviado" o caminho para a segunda fase, outras fontes garantem que a chateação da derrota foi grande entre os alemães ocidentais. E foi o ponto culminante para a virada: a partir dali, o técnico Helmut Schoen (1915-1996) e Franz Beckenbauer (1945-2024), o grande comandante da equipe em campo (e um pouco fora dele também), decidiram ser mais pragmáticos. 

Nomes que já não rendiam na Copa - como os meio-campistas Jupp Heynckes e Günter Netzer, destaques no título da Eurocopa em 1972 - foram para a reserva na segunda fase. A preferência seria dada ao resultado. E a Alemanha, se não brilhou, foi inegavelmente mais firme na busca da vaga na final: 2 a 0 na Iugoslávia, 4 a 2 na Suécia, 1 a 0 na Polônia, lugar garantido na decisão. De quebra, o clima entre o grupo foi melhorando progressivamente, de Malente (concentração alemã durante a maior parte da Copa, na cidade de Hamburgo) até Grünwald, pequeno clube em Munique onde a delegação ficou, nos dias anteriores à final da Copa. Aliás, dias ensolarados, ao contrário do que se viu no torneio.

A Alemanha Ocidental, preparada para a final da Copa de 1974: ao contrário da Holanda, o ânimo crescia na reta final (AFP)

E foi em Grünwald que a Alemanha se preparou definitivamente para encarar a Laranja. Ali Helmut Schoen definiu: Cruyff teria de encarar marcação individual. Afinal de contas, sabiam que o grande nome holandês tivera mais dificuldades contra a Alemanha Oriental ao ser perseguido pelo zagueiro Konrad Weise. Bastou o técnico alemão pedir a Berti Vogts que fizesse isso - logo a Vogts, órfão de pai e mãe, que tratava os técnicos importantes em sua carreira como se fossem os pais que lhe faltaram -, que o defensor alemão aceitou imediatamente. Não faria outra coisa nos 90 minutos, a não ser marcar o "Número 14" incessantemente, para que ele não ditasse o jogo como costumava fazer.

Era assim, apostando também em nomes que subiram de produção durante a Copa (como Wolfgang Overath, o meio-campo que recebeu a preferência sobre Netzer, e o ponta-esquerda Bernd Hölzenbein, conhecido pela habilidade em jogar... e em cavar faltas) e nos nomes de sempre (Sepp Maier, Beckenbauer, Gerd Müller) que a Alemanha tentaria impor sua maior tradição sobre a Holanda, favorita para muitos. Até porque alguns jogadores ali tinham o que vingar, em relação a clubes: nas quartas de final da antiga Copa dos Campeões 1972/73, o Ajax aplicara 4 a 0 no Bayern de Munique, no jogo de ida. Era ver o que aconteceria no Estádio Olímpico de Munique, no domingo, 7 de julho de 1974.

O golpe certeiro e o arrependimento

O juiz inglês John Keith "Jack" Taylor estava preocupado em prestar atenção a todos os detalhes da decisão que apitaria naquela Copa. Sem falar espanhol e sem que seus auxiliares (o mexicano Benito Archundia e o uruguaio Ramón Barreto) falassem inglês, Taylor combinou: deu dois cartões a cada um, amarelo e vermelho, e lhes pediu que os cartões fossem mostrados, caso ele não visse um lance em que teria de agir. Pediu que escrevessem os números de camisa dos jogadores, a inicial dos países ("N", de "Netherlands", o inglês para Holanda/Países Baixos; "G", de "Germany", para Alemanha), e agiria de acordo com a cor dos cartões. Taylor só não prestou atenção a um detalhe insólito, logo no apito inicial, num Estádio Olímpico previsivelmente com mais alemães do que holandeses: a falta das bandeirinhas de escanteio, retiradas do gramado para a festa de encerramento da Copa. Bandeirinhas colocadas, a final da Copa de 1974 podia começar. E começou.

E como começou, para a Holanda. Cruyff tentou avançar, não teve espaço, recuou a bola para Rijsbergen, que também tentou avançar, não conseguiu, recuou para Haan no campo de defesa, deste para Krol... a Laranja ficou com a bola por 56 segundos. Até que Cruyff viu espaço. Escapou da marcação de Vogts. Seguiu veloz até a beira da área. E levou o carrinho de Uli Hoeness, caindo na área. "Jack" Taylor marcou imediatamente: pênalti. Há como desconfiar de que a falta tinha sido cometido antes da linha demarcatória da grande área, mas de todo modo, ela foi inquestionável e foi marcada. Indo para a cobrança, Johan Neeskens pensava em bater no canto esquerdo. Só que ouviu Franz Beckenbauer gritar para Sepp Maier: "Sepp, rechts von du!" ("Sepp, é na sua direita!", em alemão). Justamente o canto em que Neeskens pensava. No limite, no apito do juiz inglês, o camisa 13 holandês decidiu bater no meio. Pegou mal na bola. Mas Sepp Maier pulou mesmo no canto esquerdo, e ela entrou. Holanda 1 a 0, na final da Copa de 1974, aos dois minutos de jogo em Munique. Sem que a Alemanha tivesse tocado na bola. Um golpe certeiro.

O pênalti de Hoeness em Cruyff: em dois minutos, sem que jogadores da Alemanha tocassem na bola, a Holanda fazia 1 a 0 na final da Copa (Bert Verhoeff/Anefo)

De quebra, aos 4', Vogts (já perseguindo Cruyff) levou o cartão amarelo. E em vantagem - até mais precoce do que fizera contra Argentina e Alemanha Oriental, na segunda fase -, a Holanda decidiu esfriar o ritmo do jogo. A torcida alemã vaiava, mas a Laranja começou a trocar passes e mais passes. De chances, a Alemanha só teve um chute de Paul Breitner, aos 9', por cima do gol de Jan Jongbloed. Aos 21', num escanteio, Rainer Bonhof (nascido em Niederhein, território dentro da fronteira neerlandesa) cabeceou, e Jongbloed até afastou, mas sem muitos problemas. No mais, até pelos problemas de Cruyff com a marcação de Vogts e a má forma do machucado Rensenbrink, a Holanda mantinha a bola com passes lentos. Para muitos, era uma tentativa de humilhar os alemães ocidentais. Para outros, além disso, era tentativa de humilhar os alemães por tudo feito nos Países Baixos fora dos campos, durante a invasão na Segunda Guerra Mundial - Van Hanegem assumia ter "ódio" dos alemães na época, já que uma explosão causada por nazistas matara seu pai e um dos seus irmãos.

Johnny Rep participou disso. 30 anos depois, em depoimento ao jornalista Auke Kok, publicado no livro "1974: wij waren de besten" ("1974: nós éramos melhores"), o atacante lamentou: "A cada minuto, você via que os alemães ficavam mais irritados. Eles realmente ficaram irados. Tudo isso, por nossa culpa. Acho que aquela troca de passes foi o pior erro da minha carreira. Depois do primeiro gol, achávamos que já tinha acabado. A gente tinha mesmo era de matar o jogo".

De fato, o que aconteceu a partir dali deu razões para o arrependimento de Rep, tanto tempo depois.

A Alemanha reage para o título

Bastou um momento para a Alemanha se reanimar, como já fizera em tantos momentos de sua seleção no futebol até ali - a virada na final da Copa de 1954, os empates tardios no tempo normal da final da Copa de 1966 e na semifinal da Copa de 1970. Aos 22', Gerd Müller (1945-2021) caiu num giro para se livrar da marcação de Rijsbergen, na entrada da área. Reclamou, pedindo pênalti. Com o jogo parado (Rijsbergen torceu o tornozelo e estava sendo atendido), o atacante alemão caiu teatral no gramado, após toque de Van Hanegem, como se tivesse sido atingido duramente. Müller tinha fingido, mas o auxiliar Benito Archundia viu tudo. Como pediu o juiz, o chamou, anotou "N3" no cartão amarelo, sem falar nada. "Jack" Taylor não teve dúvidas: cartão amarelo para Van Hanegem.

Vogts gritou a Beckenbauer: "Franz, agora vai mudar tudo!". De fato, mudou. Começou só dois minutos depois, aos 26': Overath passou a bola a Breitner, na esquerda. O lateral deixou com Hölzenbein, livre de marcação para avançar até a área. Foi o que fez. Bastou passar por Jansen e sentir a aproximação do pé do meio-campista para que o ponta alemão caísse. Sua fama de "cavador de faltas" ("Eu não sabia de nada disso", lamentou Haan ao jornalista Auke Kok) dava resultado: pênalti marcado. Overath chegou a pensar em bater, mas Breitner foi definitivo ao pegar a bola. Bastou Jongbloed se mover levemente para a esquerda, que o lateral alemão bateu no canto direito. O goleiro holandês nem se mexeu: 1 a 1.

Breitner empata: 1 a 1. A Alemanha ainda não virara o placar, mas virava o jogo e ficava cada vez mais à vontade (STAFF/AFP/Getty Images)

Num lance, a Alemanha conseguia o ânimo que precisava para reagir. E começou a fazer isso acelerando cada vez mais os passes e as jogadas, forçando a Holanda a correr atrás. Começou aos 29', na única vez em que Berti Vogts ousou ir ao ataque: o lateral tabelou com Overath, dominou a bola, chegou à área, e bateu para boa defesa de Jongbloed. Depois, aos 33', Overath cruzou, e Jongbloed falhou ao tentar interceptar antes de repor a bola. Mais um minuto, Uli Hoeness chutou cruzado após chegar à área, e Rijsbergen tirou na pequena área. E aos 36', Beckenbauer cobrou falta e Jongbloed espalmou por cima. Sem ter espaço para avançar, a Holanda só teve chance aos 37': Cruyff escapou, passou a Rep, mas Sepp Maier antecipou a saída de gol e rebateu a finalização do atacante holandês.

Contudo, a Holanda seguia pressionada. E a Alemanha, enfim, virou. Com espaço aberto pelo mau posicionamento de Krol, Bonhof dominou a bola na direita, passou por Haan (o zagueiro temeu marcar mais forte e fazer pênalti) e cruzou. Gerd Müller dominou a bola. Fez com Krol o que já fazia muitas vezes nos treinos no Bayern de Munique (certa vez ele descreveu: "A única coisa que eu faço nos treinos é receber a bola na área, com Schwarzenbeck me marcando, girar e chutar no canto que o goleiro não possa alcançar"). Muller dominou, girou tirando Krol da jogada e bateu cruzado, no contrapé de Jongbloed, no canto direito: 2 a 1, virada no placar.

Gerd Müller fazia o que sabia imensamente: gols decisivos. A Alemanha chegava perto do título (STAFF/AFP via Getty Images)

Intervalo apitado, Van Hanegem chutou a bola perto do juiz. "Jack" Taylor chegou perto dele e pressionou: só não lhe daria o amarelo porque já era intervalo. Johan Cruyff, capitão, fez isso. Não com a bola, mas com a boca: não parou de reclamar, até tomar ele mesmo o cartão amarelo. Dois fatos que davam a mostra de como a Holanda sentiu os gols que tomara. Sentiu que o jogo não era mais dela.

Tentou mas não deu

No intervalo, Rinus Michels tinha ainda mais coisas com que se preocupar do que a derrota de momento. Rensenbrink falou ao técnico no vestiário: não aguentava mais, as dores no fêmur estavam insuportáveis. Ao mesmo tempo, Rijsbergen ainda sentia dores no tornozelo. E Michels não queria desperdiçar as duas alterações a que tinha direito de uma vez só, no intervalo. Perguntou ao zagueiro se ele aguentava. Ouvindo um "sim", só aí o técnico da Holanda autorizou: "René, vá se aquecer". René van de Kerkhof, atacante do PSV, que não tivera um minuto em campo naquela Copa de 1974, seria o substituto de Rensenbrink. Para irritação de Piet Keizer: mesmo sem ter aproveitado sua chance contra a Suécia, na fase de grupos, o ponta esperava ter a chance na final. Ser ignorado por Rinus Michels foi impacto tão duro que Keizer nunca mais falou com o técnico - e encerrou sua carreira no fim de 1974.

Mudança feita, ela pareceu ser infrutífera no começo da etapa final: aos 48', em escanteio, Bonhof quase fez o terceiro gol alemão, mandando a bola rente à trave direita. Contudo, aos poucos, a entrada de René van de Kerkhof acelerou mais o ataque holandês. E as chances começaram a aparecer: aos 52', em escanteio, Sepp Maier rebateu mal a bola, e Breitner precisou afastar para novo escanteio. Aos 54', numa bola parada, quase o empate: Cruyff cobrou falta, Van Hanegem cabeceou, e Sepp Maier pegou, mesmo caindo.

A defesa no cabeceio de Van Hanegem deixou claro: Sepp Maier faria a partida de sua carreira no gol da Alemanha, naquela final, mesmo com a melhora da Holanda (Istvan Bajzat/Picture Alliance/Getty Images)

Mesmo se retraindo mais, a Alemanha seguia perigosa. E aos 59', poderia ter feito o terceiro gol: Gerd Müller recebeu a bola de Grabowski, livre na área, e tocou na saída de Jongbloed, para as redes - o gol foi anulado (Haan, Rijsbergen e Krol fizeram a linha de impedimento), mas há quem sustente que Müller estava em posição legal. De todo modo, aos poucos ficou notável: já que Cruyff era apagado pela marcação individual perfeita de Berti Vogts, a Holanda apostaria mais nos avanços de Suurbier e Krol pelos lados, pela boa entrada de Van de Kerkhof, pelas tentativas de Neeskens e Rep. 

A pressão pelo empate aumentou. Aos 73', Van de Kerkhof cruzou da esquerda, Neeskens pegou a bola de voleio do outro lado da área e Sepp Maier fez uma das grandes defesas de sua carreira. Mais um minuto, e Maier precisou trabalhar de novo, pegando firme chute de Theo de Jong (este veio a campo, para substituir Rijsbergen, que sucumbiu às dores no tornozelo desde o primeiro tempo). Depois, Johnny Rep tentou duas vezes: aos 77', desviando cruzamento de Neeskens para fora, e aos 79', em arremate cruzado que saiu pela linha de fundo. E veio de Neeskens a última chance da Laranja, aos 86', batendo de longe, rente à trave direita de Maier.

A Holanda tentou, mas não deu. A Alemanha se segurou, povoando a área de defesa e mostrando atenção máxima. Teve em Sepp Maier, talvez o melhor goleiro de sua história, fazendo a partida de sua carreira. Teve em Berti Vogts o que Helmut Schoen queria que ele fosse: alguém a anular Cruyff, já previamente desgastado, que fez sua pior partida naquela Copa justamente na decisão. Teve em Bonhof e Overath dois nomes fundamentais no meio-campo. Teve Gerd Müller, mais uma vez, como um goleador de decisão. Teve Beckenbauer como um líder tão discreto quanto fundamental. E teve o segundo título mundial de sua história.

Era doloroso para a Holanda, mas a Alemanha merecera plenamente a vitória na final (Paul Popper/Popperfoto/Getty Images)

À Laranja, restava a dor daquela que ficou conhecida como a "Mãe de Todas as Derrotas". Justamente na final da Copa do Mundo, o cansaço de todos - principalmente de Cruyff - foi sentido, na mais vulnerável atuação no torneio. O momento em que "Jack" Taylor apitou o fim do jogo, aos 45 minutos e 16 segundos, é daqueles em que cabe o clichê: cada holandês vivo então se lembra de onde estava, e da tristeza que sentiu.

Tudo bem

A tristeza não passou nem no jantar oferecido pela FIFA às três primeiras seleções da Copa do Mundo, com Cruyff recebendo sisudo o prêmio de segundo melhor jogador do torneio. Ela só foi amenizada na volta da delegação holandesa ao país natal. Quando o avião da Transavia abriu suas portas no chão, os 22 jogadores e a comissão técnica se surpreenderam: não era o caso de dizer que o saguão do aeroporto Schiphol, em Amsterdã, estava lotado. Era o caso de dizer que as proximidades da pista já estavam lotadas de torcedores.

A rainha Juliana com Cruyff, Neeskens, Rijsbergen, os irmãos Van de Kerkhof... sim, a delegação da Holanda foi plena e justamente saudada no retorno da Copa (Keystone/Hulton Archive/Getty Images)

Houve mais festa, no trajeto até o almoço na casa real, com a rainha Juliana. Depois, o ápice: num palco na Leidseplein, uma das principais praças de Amsterdã, todos os homenageados viram uma multidão a gritar "Holland wint de wereldcup, la-la-la" ("Holanda venceu a Copa do Mundo"). Mas pelo menos um dos jogadores não estava ligando muito: Jan Jongbloed. Como sempre, o goleiro titular (talvez o símbolo daquele conto de fadas holandês) estava mesmo era com saudades de casa. Somente a homenagem dos vizinhos de sua casa, em Amsterdã, o aliviou. Tanto quanto as palavras finais do diário do goleiro: "Estou feliz por ter acabado. Saudações, Jan Jongbloed".

O mais importante, ele e seus colegas já tinham feito: colocar o Reino dos Países Baixos no mapa do futebol mundial. Graças à Laranja Mecânica. A primeira e única.


COPA DO MUNDO FIFA 1974 - FINAL

Alemanha Ocidental 2x1 Holanda

Data: 7 de julho de 1974
Local: Estádio Olímpico (Munique)
Árbitro: John Keith "Jack" Taylor (Inglaterra)
Gols: Johan Neeskens, aos 2', Paul Breitner, aos 26', e Gerd Müller, aos 43'

ALEMANHA OCIDENTAL
Josef "Sepp" Maier; Hans-Georg Schwarzenbeck, Berti Vogts, Franz Beckenbauer e Paul Breitner; Rainer Bonhof, Wolfgang Overath e Uli Hoeness; Bernd Hölzenbein, Gerd Müller e Jürgen Grabowski Técnico: Helmut Schoen

HOLANDA
Jan Jongbloed; Wim Suurbier, Arie Haan, Wim Rijsbergen (Theo de Jong, aos 69') e Ruud Krol; Wim Jansen, Willem van Hanegem e Johan Neeskens; Johan Cruyff; Robert Rensenbrink (René van de Kerkhof, aos 46') e Johnny Rep. Técnico: Rinus Michels

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BIBLIOGRAFIA

- KOK, Auke. 1974: Wij waren de besten. Amsterdã, Uitgeverij Thomas Rap, 2006

- BETING, Mauro. As melhores seleções estrangeiras de todos os tempos. São Paulo, Contexto, 2010.

- VERKAMMAN, Matty. VISSER, Jaap. HOIJTINK, Henk. Oranje Toen en nu - Deel 10 (1974-1976, 2010). Roterdã, De Buitenspelers, 2010

- Coleções dos jornais De Telegraaf, Algemeen Dagblad, De Volkskrant

sábado, 28 de dezembro de 2024

Laranja Mecânica, primeira e única: 9º capítulo - na bola e no pau

Foi somente ao vencer o Brasil que a Holanda se deu conta do que tinha conseguido na Copa de 1974. E a vitória comemorada foi dupla: na bola e nas faltas... (Reprodução/Fanpictures.ru)

Introdução









No fim do oitavo capítulo, soube-se da história ocorrida na festa de confraternização da delegação da Holanda (Países Baixos) na Copa de 1974, repercutida por jornais alemães em 2 de julho - e, só por isso, dando alguma dor de cabeça aos membros dela. Não tão grande, porque alguns meios holandeses se abstiveram de informar sobre evento particular. Mas grande a ponto de Rinus Michels ter pedido por uma entrevista coletiva no Waldhotel-Krautkrämer (já incluindo jornalistas brasileiros no recinto), para desdenhar: "Relatos como os que saíram nos jornais alemães pertencem a uma 'guerra fria', e ela vai começar de novo. Essa guerra fria começou, eu esperava até que começasse antes. O único objetivo é causar confusão, e qualquer coisa que eu diga a mais sobre isso será ridículo".

Da parte da imprensa holandesa, não só ela tomou o lado de sua seleção local (até obviamente), como alguns meios até mesmo romperam relações com veículos alemães - o De Telegraaf, por exemplo, deixou de compartilhar notícias com o Bild, como vinha fazendo até então. Já o Algemeen Dagblad, jornal concorrente, organizou outro evento para descontrair a delegação holandesa, em parceria com a emissora de televisão TROS. Um evento muito mais ameno, apenas reunindo cantores e humoristas se apresentando aos jogadores e à comissão técnica. Tanto que Rinus Michels até se arriscou a cantar.

Ainda assim, houve um jogador que amargou tudo aquilo: Johan Cruyff. A notícia chegara aos olhos da esposa Danny, e reza a lenda que ambos tiveram telefonema tenso já no dia 2. Para piorar, o principal jogador da Holanda (e da Copa, como pensava a maioria dos que acompanhavam o torneio) ficara doente na véspera do jogo contra o Brasil, por causa de uma gripe. Tudo isso influiu na declaração que Cruyff deu no dia 2, à emissora NOS e ao jornalista Joop Niezen, da revista Voetbal International, ressaltando o que já falava aqui e ali: "Esta é minha primeira e minha última Copa. Daqui a quatro anos, já terei 31 anos de idade, e vou encerrar minha carreira. Sempre disse isso, e continuo com a decisão".

Muito sendo falado fora de campo... mas havia ainda o Brasil no caminho da final, como adversário no último jogo do grupo A da segunda fase.

E o Brasil, como chegava?

Para a torcida brasileira, o mau humor predominava na Copa de 1974. Desde a primeira fase daquele torneio, o Brasil era considerado cauteloso demais (no popular: "retranqueiro"), e havia um culpado para a opinião pública: o técnico Zagallo. Na primeira fase, de fato, os resultados preocuparam, com empates sem gols contra Iugoslávia e Escócia - só uma vitória por 3 a 0 sobre o então Zaire, atual República Democrática do Congo, fez com que o Brasil chegasse à segunda fase, mas na segunda posição do grupo 2.

Na segunda fase, as coisas melhoraram um pouco para a Seleção. Se não brilhara nas duas vitórias - 1 a 0 na Alemanha Oriental, 2 a 1 na Argentina -, era unânime que as entradas de Zé Maria (lateral direita), Paulo César Carpegiani e Dirceu (ambos no meio-campo) haviam tornado o time mais rápido e mais esforçado em campo. Além do mais, havia Rivellino, Paulo César Caju e Jairzinho, sempre merecedores de respeito, destaques técnicos e remanescentes da fabulosa campanha do terceiro título mundial em 1970. E havia uma defesa respeitável, com Leão como um dos bons goleiros do Mundial, e Luís Pereira com status igual no miolo de zaga. Tanto que o Brasil só tomara um gol até ali na Copa, contra a Argentina.

Num Brasil contestado mas que reagia durante a Copa de 1974, o ataque era respeitado, mas a defesa da Seleção impressionava mais a Holanda (Masahide Tomikoshi)

Era esta defesa brasileira, e não o ataque, que mais preocupava os holandeses. Pelo menos é o que se nota nas declarações de imprensa. Como esta, de Rensenbrink, ao Algemeen Dagblad de 2 de julho de 1974: "O Brasil é muito forte, acima de tudo, na defesa. E esse time, fisicamente forte, só precisa de uma chance para fazer o gol". No mesmo diário, Johnny Rep alertava: "Defensivamente, [o Brasil] é um time muito forte, e atacando, é muito perigoso. Como nós. não perderam nenhum jogo na Copa, ainda". E Rinus Michels dava o alerta definitivo, ao De Telegraaf da mesma data: "Desde a estreia contra a Iugoslávia, eu já notei que o Brasil poderia ir longe na Copa. Há muita disciplina no time. Na Copa do México [1970], eles sempre ditavam o ritmo do jogo. Isso acontece menos agora, mas continua sendo um time muito perigoso".

Do lado brasileiro, os salamaleques eram elegantemente devolvidos. O De Volkskrant de 2 de julho de 1974, por exemplo, dava destaque à declaração de Marinho Chagas - considerado até ali um dos melhores laterais esquerdos da Copa: "O time [Holanda] joga de uma maneira muito diferente. Todo mundo fica se mexendo em zigue-zague, e quando você vê, você nem sabe quem são os zagueiros e quem são os atacantes. Para mim, este é o futebol do futuro". No Jornal do Brasil do 3 de julho da partida, Paulo César Caju alertava que o time não era só Cruyff: "Se a gente se preocupa com o Cruyff, o Neeskens acaba fazendo gol. No time deles ninguém tem posição definida. O negócio é marcarmos por zona, trabalharmos o dobro e partirmos com rapidez para o gol". Era exatamente a indefinição das posições que Zagallo elogiava, no mesmo JB: "Por isso é que gosto do futebol que os holandeses apresentam. O futebol da Holanda é alegre, e tenho certeza de que a partida de hoje será excelente".

Outra certeza que Zagallo dava: Cruyff não receberia marcação especial. Aliás, "Cruyff sem marcação" era uma das manchetes d'O Globo no dia da partida. O técnico brasileiro se justificava: "Sei que Cruyff é muito bom, mas da mesma maneira os holandeses devem estar preocupados com o Jairzinho, o Rivellino e o Marinho [Chagas]. Cruyff será marcado, sim. Porém, não teremos nada de especial para ele." O Algemeen Dagblad do dia da partida também trazia declarações do técnico brasileiro: "Não jogamos contra um jogador, jogamos contra um time. Cruyff não é o único bom jogador da Holanda". Finalmente, dias antes da partida, o De Volkskrant de 1º de julho de 1974 trazia a lembrança de Zagallo: "Não podemos esquecer que a Holanda enfrentou adversários mais frágeis do que nós".

Mas ficavam nisso, pelo menos oficialmente, os alertas de Zagallo a favor do Brasil. Não se encontraram declarações repercutidas depois, de que ele teria dito que Cruyff se chamava "Crush" (refrigerante de laranja popular à época), ou a frase "a Holanda é muito tico-tico no fubá, que nem o América dos anos 1950", ou mesmo que tivesse dito "já estou pensando na final contra a Alemanha". O único registro mais enfático foi o de Zagallo brincando com a torcida holandesa, em maior número no Waldstadion de Dortmund, indicando que tentaria transformar o mar laranja em suco.

Começa o jogo - e a briga

Jogo iniciado, a Holanda parecia mostrar que tentaria ser dominante como fora contra Argentina (mais) e Alemanha Oriental (menos). Tanto que a primeira falta da partida seria brasileira (Valdomiro em Neeskens, aos 2'). Mais alguns minutos, e aos 6', viria a primeira grande chance de gol, repetida até hoje em reportagens sobre aquele jogo - e sobre Johan Cruyff, de modo geral: Van Hanegem deixou a bola com Jansen, que cruzou da direita. Zé Maria rebateu parcialmente, Cruyff chutou e Leão fez defesa ótima - até hoje, o goleiro brasileiro se orgulha (com justiça) do "Número 14" achar aquela uma das melhores defesas que viu na carreira. E Leão não teria de prestar atenção só ali, porque, no escanteio da sequência, Van Hanegem mandou de voleio, por cima do gol. Só que o bom começo holandês ficou por ali.

Pausa incomum feita aos 10' - minuto de silêncio, impecável, em memória do presidente argentino Juan Domingo Perón, dois dias antes -, começou algo que só o tempo deixou claro: sim, o Brasil tentou atacar a Holanda. Do lado da Laranja, era unânime, como sempre foi: mais do que cuidados na defesa, o impacto psicológico de enfrentar o tricampeão mundial pesou por algum tempo em campo. E a Seleção, jogando de azul, se aproximou do ataque. Aos 11', dois impedimentos: primeiro de Paulo César Caju, depois de Valdomiro (aparecendo bastante na ponta direita). Logo depois, aos 13', Valdomiro chegou livre à área com a bola, mas hesitou na finalização, a bola passou por baixo de Jongbloed, e só então Krol afastou o perigo. Mais um pouco, e aos 16', Valdomiro bateu de fora da área, e o goleiro holandês defendeu.

Do meio do primeiro tempo adiante, mais um aspecto que só o tempo deixaria claro: as tantas faltas trocadas entre Brasil e Holanda (Países Baixos), com os holandeses cometendo mais faltas (30, contra 25 brasileiras), mesmo sem levarem cartões amarelos na etapa inicial, contra três brasileiros. Começou aos 18', com Van Hanegem derrubando Paulo César Caju no meio. Depois, aos 30', após Leão rebater chute de Rensenbrink, começaram as brigas, originadas por empurrão de Suurbier em Zé Maria: outros brasileiros tomaram as dores do zagueiro, holandeses também entraram no meio, e no fim, só Luís Pereira levou cartão amarelo. Foi a senha. Sem bola, Rivelino foi golpeado por Van Hanegem; aos 39', após disputa dura entre Rep e Zé Maria, o lateral direito brasileiro seguiu na jogada e agarrou Cruyff pelas pernas, também levando cartão amarelo. Mais dois minutos, e também sem bola, Marinho Peres bateu na cabeça de Neeskens, que caiu aparentemente desmaiado. 


Por sinal, na sequência deste último lance, o Brasil teve mais uma grande chance: Zé Maria cruzou, Dirceu ajeitou na entrada da área, Paulo César Caju bateu, a bola ricocheteou em Rijsbergen na área, e sobrou para Jairzinho bater para fora, rente à trave esquerda de Jongbloed. Antes disso, aos 25', já houvera uma chance que poderia ter colocado o time de Zagallo em vantagem: Rivellino passou a bola no meio, Dirceu ajeitou, e Paulo César Caju finalizou cruzado, também rente à trave direita. O lance foi invalidado, por impedimento de Caju. Impedimento por muito pouco.

Era claro, até por Jansen não ter aparecido tanto para ajudar o meio-campo, mais recuado, enquanto Cruyff ditava o jogo e Neeskens o acelerava: o Brasil estava pressionando a Holanda no ataque, tanto quanto a Holanda o fazia (em lances como chute de Rensenbrink, de fora da área, aos 33', pego por Leão). Se a torcida holandesa gritava mais - Neeskens era festejado, e quando deu a pancada na cabeça, Marinho Peres foi ofendido com o "hi, ha, hondelul" (no popular, "pinto de cachorro") -, o Brasil também tinha sua torcida aparecendo mais. De certa forma, um cenário que dava razão ao que Leão falou, em 2011, em depoimento aos pesquisadores Bernardo Borges Buarque de Hollanda e Bruno Romano Rodrigues, para o projeto de memória "Futebol, Memória e Patrimônio", parceria do Museu do Futebol com a Fundação Getúlio Vargas: "Nós só não ganhamos da Holanda e eliminamos a Holanda no primeiro tempo por uma questão de erros individuais. Poderíamos ter ganho".

Só no segundo tempo a Holanda se aprumaria.

A vitória mais comemorada

A Laranja tentara o gol, mas estivera nervosa no primeiro tempo. Como nunca tinha estado naquela Copa. Teria de resolver isso no segundo tempo. A tarefa seria facilitada por ótima atuação de Cruyff, superando a gripe para fazer o que já sabia: ditar o jogo, apontar posicionamentos, acelerar o jogo com passes em profundidade. Foi assim que surgiu o melhor jeito dos neerlandeses se acalmarem: um gol. Aos 50', após Dirceu cometer falta, Van Hanegem cobrou rápido, Neeskens ajeitou para Cruyff, este cruzou, e após leve desvio em Marinho Peres, a bola ficou à feição para Neeskens fazer 1 a 0, de carrinho, encobrindo Leão.

O gol de Neeskens foi a calma de que a Holanda precisava para, enfim, dominar o Brasil, somente no segundo tempo da partida (Bert Verhoeff/Anefo)

Ficar na frente do placar fez com que a Holanda tivesse mais espaço para atacar - algo notado pelos avanços mais frequentes de Jansen, e por tentativas como o chute de Neeskens, de fora da área, que Leão pegou aos 54'. O que não quer dizer que o Brasil não tentasse o ataque, ainda. Aos 59', Valdomiro ficara à feição para finalizar após cobrança de falta, mas estava impedido. E aos 63', um cruzamento despretensioso de Marinho Chagas foi espalmado, meio atabalhoadamente, por Jongbloed (que, como se nota, se tinha qualidades na reposição de bola e nas antecipações, era um goleiro desajeitado no posicionamento). Precisando virar o jogo para chegar à final, já que o empate era vantagem da Laranja, o Brasil tentou mudar o ataque, com a entrada de Mirandinha no lugar de Paulo César Caju.

Mas aos 65', veio o lance que para sempre estará na cabeça dos holandeses, como símbolo de que nada impediria a chegada à final. Ruud Krol, por exemplo, se emocionou ao descrever a jogada ao jornalista Auke Kok: teve liberdade para avançar (coisa que não vinha acontecendo na partida), tabelou com Rensenbrink, cruzou, e Cruyff chegou para escorar na pequena área e fazer o 2 a 0. Foi a senha para a torcida holandesa celebrar mais e mais. A vitória contra o Brasil estava próxima.

Só que algo comum em todo o jogo também continuou, mesmo com a vantagem holandesa: as brigas. Aos 67', Haan atingiu sem bola a virilha de Zé Maria; aos 69', após derrubar Rivellino, Rep levou cartão amarelo, e deu motivo para mais uma briga rápida entre brasileiros e holandeses. Mais quatro minutos, e Marinho Chagas foi derrubado por trás, por Suurbier - para revidar a falta, deu com as travas da chuteira na cara do lateral direito holandês. Mas somente o brasileiro levou amarelo do juiz alemão ocidental Kurt Tschenscher - criticado principalmente por dar cartões preferencialmente aos brasileiros, deixando apenas nas broncas as faltas holandesas, em maior número. Zagallo, inclusive, criticou a postura de Tschenscher, em declarações estampadas ao Jornal do Brasil: "Perdemos a possibilidade de conquistar o título, numa partida altamente técnica, mas várias vezes desvirtuada pela violência. Quero deixar claro que não foram os jogadores brasileiros que a iniciaram. O que os nossos fizeram foi apenas revidar as entradas brutais de alguns adversários, e que estavam sendo permitidas pelo juiz".

De todo modo, o cartão mais simbólico da violência daquele jogo veio depois, aos 84', e foi justo: com espaço e bola para seguir avançando, Neeskens foi atingido por um carrinho alto de Luís Pereira, prontamente expulso com o cartão vermelho. O zagueiro brasileiro saiu do campo tentando manter o Brasil por cima: contra a torcida holandesa que lhe atirava copos (no banco de reservas em frente, imediatamente os holandeses pediram que parassem com aquilo), "Luís Chevrolet" mostrava a camisa azul e fazia o número três com os dedos, indicando que a tradição maior no futebol era brasileira, três vezes campeões mundiais. O médico da delegação holandesa, Frits Kessel, chegou a exagerar, imaginando que Luís Pereira estivesse dopado, tal era a raiva do zagueiro.

Mesmo expulso, Luís Pereira (acalmado por Rivellino) fez questão de ressaltar aos torcedores holandeses: o Brasil é que já tinha tradição. Mas a vaga na final era da Laranja (Bert Verhoeff/Anefo)

Só que a final era holandesa. A comemoração da vaga na final era da Laranja. Jogo terminado em Dortmund, os brasileiros reconheceram que, jogo duro à parte, ela merecera (Rivellino: "Eles possuem um grande time, não resta a menor dúvida"; Paulo César Carpegiani: "A Holanda pratica um futebol que tem espetáculo e é de competição"). Rinus Michels falou ao diário Algemeen Dagblad de 4 de julho, dia seguinte, da suposta violência brasileira (por mais que, repita-se, a Holanda tivesse cometido mais faltas, em número): "O Brasil não perdeu só no futebol, perdeu também sua cara. A máscara dos brasileiros caiu". Neeskens, a vítima maior das faltas, também se impressionou, no mesmo jornal: "Eu já estou acostumado, mas nunca vivi nada igual. Eles faziam de tudo, principalmente se fosse sem bola. Faltas horríveis". Muitos anos depois, Ruud Krol se "orgulhou" da dureza da partida, em depoimento a Auke Kok: "O jogo teve tudo. Jogadas bonitas, briga, dureza. Foi uma luta. O juiz deixou muita coisa acontecer, e gosto disso, ver até onde posso ir. (...) É o bacana do futebol de alto nível. Éramos ótimos jogadores, podíamos jogar bem e bater. Faz parte do jogo".

E a Holanda vencera o Brasil. Na bola e no pau. Estava na final.


COPA DO MUNDO FIFA 1974 - SEGUNDA FASE - GRUPO A

Holanda 2x0 Brasil

Data: 3 de julho de 1974
Local: Waldstadion (Dortmund)
Árbitro: Kurt Tschenscher (Alemanha Oriental)
Gols: Johan Neeskens, aos 50', e Johan Cruyff, aos 65'

HOLANDA
Jan Jongbloed; Wim Suurbier, Arie Haan, Wim Rijsbergen e Ruud Krol; Wim Jansen, Willem van Hanegem e Johan Neeskens (Rinus Israël, aos 81'); Johan Cruyff; Robert Rensenbrink (Theo de Jong, aos 67') e Johnny Rep. Técnico: Rinus Michels

BRASIL
Leão; Zé Maria, Luís Pereira, Marinho Peres e Marinho Chagas; Paulo César Carpegiani, Rivellino e Paulo César Caju (Mirandinha, aos 61'); Valdomiro, Jairzinho e Dirceu. Técnico: Zagallo

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Laranja Mecânica, primeira e única: 8º capítulo - respiros têm consequências

Em campo, mesmo sem brilhar como contra a Argentina, a Holanda dominou e venceu a Alemanha Oriental, ficando perto da final da Copa de 1974 (Bert Verhoeff/Anefo)

Introdução








O começo da segunda fase da Copa de 1974 tinha sido o melhor possível para a seleção da Holanda (Países Baixos). Afinal de contas, a goleada contra a Argentina havia mostrado categoricamente que a Laranja era o time que melhor estava jogando no torneio. Só que nada havia terminado ainda. Vale lembrar: ao invés de ser um mata-mata comum - com oitavas de final, quartas de final e semifinais -, ela era disputada como uma segunda fase de grupos. Com 16 seleções na Copa, as oito classificadas à segunda fase eram separadas em dois grupos de quatro, com os vencedores indo à final - e os segundos colocados, à decisão de 3º e 4º lugares. Ou seja: restavam duas partidas ainda para a Oranje. E o segundo jogo do grupo A viria trazendo a Alemanha Oriental, no domingo, 30 de junho de 1974.

A confiança dos neerlandeses crescia. Em relação ao jogo, Van Hanegem minimizou até a necessidade de vitória, falando ao diário Algemeen Dagblad do dia anterior: "Nós nem precisamos vencer. A Alemanha Oriental precisa. Isso torna nossa posição muito melhor". De fato: se viera da primeira fase empolgada como líder do grupo 1 (com direito à vitória contra a Alemanha Ocidental, por 1 a 0), a equipe da República Democrática da Alemanha já fora derrubada pelo Brasil no primeiro jogo da segunda fase (1 a 0, gol de Rivellino, de falta). E ficaria sem quatro titulares, todos machucados: os defensores Joachim Fritsche e Siegmar Wätzlich, o meio-campo Erich Hamann e o atacante Eberhard Vogel. De destaque, somente o atacante Jürgen Sparwasser. Por mais que a seleção alemã oriental tivesse sua qualidade (tinha sido medalha de prata no torneio olímpico de Munique-1972, e seria ouro em Montreal-1976, com muitos dos jogadores da Copa), ela precisava vencer.

A Holanda, nem tanto. No começo, o ambiente do Waldhotel-Krautkrämer, na cidade de Hiltrup, aborrecia os jogadores: em um diário que manteve durante a Copa, o goleiro Jan Jongbloed (1940-2022) escrevia várias vezes que "desejava que tudo acabasse logo". Contudo, vieram as vitórias. O ambiente começou a ficar mais aberto, como deixavam claras as visitas de algumas esposas ao Waldhotel. Ao supracitado Algemeen Dagblad, Rensenbrink reconhecia: "Realmente, o time está melhorando".

Tudo isso se notaria nos dias que cercaram a vitória contra a Alemanha Oriental.

Respiro dentro de campo: ritmo menor, vitória mantida

No começo da partida, novamente no Parkstadion de Gelsenkirchen (em dia não tão chuvoso quanto contra a Argentina, mas chuvoso), de novo a Holanda mostrou o que fizera contra Bulgária e Argentina: na primeira chance de gol que já teve, fez o gol. Logo aos 8', num escanteio, Rensenbrink cabeceou, o volante Jürgen Pommerenke afastou a bola em cima da linha, mas Cruyff mandou a sobra para a área, e Neeskens completou para o 1 a 0. Um pouco mais, e Neeskens arriscou chute para fora, aos 12'. Seria o começo de novo domínio massivo, como visto contra os argentinos? Nem tanto. Em primeiro lugar, porque Cruyff já era mais marcado: mesmo andando todo o campo, o camisa 14 sempre foi perseguido de perto pelo zagueiro Konrad Weise. Logo, não conseguia acelerar o jogo, com passes em profundidade, como costumava fazer se mais livre. 

E a Laranja só teve mais uma chance digna de nota naquele começo: aos 19', Rensenbrink cruzou, mas o goleiro Jürgen Croy se antecipou e pegou a bola antes que Neeskens chegasse. No mais, cercado, Cruyff pouco apareceu no jogo. Destacavam-se mais nomes como Neeskens (como sempre, rápido no meio-campo), Johnny Rep (o atacante saía da área para buscar a bola) e, principalmente, Rensenbrink. O camisa 15 estava se sacrificando naquela Copa: afinal, se era o destaque pleno no Anderlecht belga em que jogava, "Rob" tinha de se restringir na seleção, já que Cruyff tinha esse papel de destaque inquestionável. Mas como o capitão estava marcado, Rensenbrink começou a aparecer mais. Aos 36', quase marcou de cabeça, mas Croy pegou - no minuto anterior, Arie Haan tentara o gol, mas seu chute desviou no zagueiro Bernd Bransch e saiu. A Alemanha Oriental, bem mais defensiva do que na primeira fase, tinha praticamente só um nome atacando: o ponta direita Martin Hoffmann. Na única vez em que escapou da linha de impedimento, aos 39', ele trouxe a bola para o meio e bateu de fora da área, forçando a defesa de Jongbloed em dois tempos.

Com Cruyff um pouco abaixo contra os alemães orientais, Rensenbrink pôde jogar como estava acostumado no Anderlecht. E foi o destaque da vitória (Alamy Stock Photo)

No segundo tempo, mesmo tentando (aos 51', após escanteio de Wim Suurbier, Neeskens tentou, mas Croy pegou), a Holanda seguia em marcha lenta. Até tomou alguns sustos. Aos 47', Jongbloed pegou chute do meio-campo Rüdiger Schnuphase; aos 53', o goleiro holandês saiu do gol precipitadamente, foi driblado por Hoffmann, mas este escorregou justamente quando cruzaria para a área vazia. A bola saiu pela linha de fundo.

Foi o suficiente para a Holanda voltar a ficar perto do gol. Aos 55', quando esteve livre da marcação de Weise, Cruyff carregou a bola até passá-la a Jansen, que ajeitou na área para que Rep chutasse na rede - pelo lado de fora. Quatro minutos depois, ela entrou: Neeskens aproveitou a bola, chegou à área, deixou que Rep a dominasse e a ajeitasse para Rensenbrink, que vinha pelo meio, bater cruzado, no canto esquerdo de Croy, para o 2 a 0 holandês. Muito comemorado por seu gol - Cruyff chegou para abraçá-lo primeiro -, ali o "Homem-Cobra" (apelido de Rensenbrink, por seus movimentos discretos e precisos) se confirmou como melhor do jogo em Gelsenkirchen.

Houve mais tentativas holandesas no jogo (um chute de Krol, de fora e para fora, aos 65'; uma tentativa de Neeskens afastada por Bransch, aos 81'; uma falta que Van Hanegem cobrou para fora, aos 82'). Mas, na prática, o segundo gol de Rensenbrink resolvera as coisas. A Holanda estaria numa das decisões da Copa do Mundo de 1974. Se seria a final ou a decisão de 3º e 4º, só o resultado do jogo contra o Brasil, último da segunda fase, decidiria. E nesta partida, a vantagem do empate seria da Laranja, pelo saldo de gols maior (+6, contra +2 do Brasil). De todo modo, o objetivo estava claro, como Johnny Rep disse ao Algemeen Dagblad depois do jogo: "O terceiro lugar já não me interessa mais. Agora que estamos jogando assim, também quero ser campeão do mundo".

As consequências eram as mais positivas.


Respiro fora de campo: a festa que trouxe dores de cabeça

Como dito no começo deste texto, o ambiente da delegação holandesa no Waldhotel-Krautkrämer de Hiltrup já era mais aberto. Tão aberto que os jornalistas de outros países começavam a frequentá-lo mais. E os holandeses começaram a atendê-los (reza a lenda que mediante alguns pagamentos, embora isso não seja oficialmente confirmado). Com relação aos profissionais da própria nação, os neerlandeses também eram receptivos... com uma exceção: Ben de Graaf, o correspondente do diário De Volkskrant, considerado crítico demais. A tal ponto que Rinus Michels, técnico fora de campo, e Cruyff, líder do grupo, o tinham chamado para uma conversa séria. E a ponto, também, de alguns jogadores reservas dos Países Baixos o terem derrubado na piscina do hotel, meio de brincadeira, meio a sério...

Conforme a Copa passava, o ambiente ficava mais e mais aberto. Até porque Rinus Michels, cada vez mais, diminuía a vigilância e a exigência que o fizeram ser apelidado inicialmente De Generaal ("O General"). Também, pudera: incrivelmente, o Barcelona - ainda treinado por Michels - disputava as fases decisivas da Copa do Generalíssimo (atual Copa do Rei) em meio à Copa do Mundo. Então, o treinador precisava ir e vir no trajeto Hiltrup-Barcelona para treinar o clube catalão - que seria derrotado na final, por 4 a 0, pelo Real Madrid, em 28 de junho de 1974, dois dias antes do jogo contra a Alemanha Oriental. Mesmo quando voltava, Michels seguia distante do grupo. Em campo, acabava deixando a responsabilidade mais por conta dos jogadores - que, como se nota, correspondiam bem em campo.

Aqui, no dia da chegada da delegação da Holanda (Países Baixos) para a Copa de 1974, o ambiente no Waldhotel-Krautkrämer podia até ser vigilante. Mas era aprazível (Rob Mieremet/Anefo)

Tamanha distância de Michels fez com que os jogadores se sentissem mais à vontade, para alguns hábitos que não fariam na frente do treinador. Por exemplo, o fumo: Jongbloed, Cruyff e Keizer fumavam no hotel (Keizer, inclusive, tinha sido "liberado" pelo médico da delegação, Frits Kessel, na base do "deixa que eu me entendo com Michels). Ou então, a bebida: alguns jogadores tinham em seus quartos do Waldhotel-Krautkrämer garrafas de uísque ou até vodka. E nos jogos de cartas, os valores apostados iam além do que Michels recomendava. Até aí, fazia-se vista grossa a tudo isso.

Porém, uma festa na noite daquele mesmo domingo (30 de junho de 1974) da vitória sobre os alemães orientais renderia dores de cabeça à delegação neerlandesa, pelo resto da Copa do Mundo. A festa era oferecida pelo diário Algemeen Dagblad, seria no salão do Waldhotel-Krautkrämer, serviria como um "respiro" da pressão da Copa, e teria até apresentação musical - da banda The Cats, cujo hit "One way wind" era o maior sucesso na trilha sonora dos jogadores holandeses na Copa de 1974. A banda, inclusive, tinha até vinculações futebolísticas: Arnold Mühren, baixista e principal compositor, era sobrinho da dupla de irmãos Arnold e Gerrie Mühren, ambos do Ajax. Gerrie, inclusive, quase estivera na Copa de 1974.

O Algemeen Dagblad noticiava o show de The Cats na festa de confraternização da delegação da Holanda durante a Copa. A festa rendeu dores de cabeça (Arquivo)

No show e na festa, tudo vinha bem - alguns jogadores até se arriscaram nos instrumentos. Os problemas vieram no decorrer dela. Primeiro, o auxiliar técnico Cor van der Hart exagerou na bebida, a ponto de derrubar vinho no vestido da esposa de Günter Krautkrämer, gerente do hotel (ambos brigaram). Depois, Van der Hart foi conversar com Cees Veerman, cantor e guitarrista da The Cats. A certa altura, Veerman fez menção de ir dormir, mas Van der Hart pediu ameaçadoramente que ele ficasse. Veerman saiu, e o auxiliar atirou garrafas pela janela do Waldhotel.

Depois, em meio ao jantar que também acontecia, Hans-Joachim Krautkrämer, filho do gerente - e ele mesmo futuro comandante do Waldhotel -, começou a tirar algumas fotos. Uma delas trazia Cruyff conversando com uma mulher, numa mesa. O jogador se irritou, pediu que Hans devolvesse o filme da máquina, e a briga só se acalmou quando a namorada de Hans-Joachim convenceu o "Número 14" de que as fotos não viriam a público. Não vieram, mesmo. Contudo, havia alguém ali que acabou tornando a festa pública. 

Hóspede do quarto 111 do Waldhotel, o alemão Guido Frick foi se queixar do barulho da delegação holandesa se espalhando pelo hotel. O gerente disse a ele que dificilmente a situação melhoraria. Frick foi comunicado do que se tratava. Sentiu "cheiro" de notícia, por sua profissão: era jornalista do Stuttgarter Nachrichten, diário regional. Convenceu a recepcionista de que trabalhava como representante comercial, e teve acesso ao salão de festas. Mais ainda: já na madrugada de 1º de julho, Guido notou que um grupo de jogadores - foram citados como membros Cruyff, Rensenbrink, o zagueiro reserva Pleun Strik e o goleiro reserva Piet Schrijvers - foi para a sauna do hotel, com algumas mulheres. Para sempre, no Reino dos Países Baixos, ficou a pergunta: o que o grupo fez na sauna do Waldhotel? Tornou-se um anedotário do futebol de lá, semelhante ao caso da convulsão de Ronaldo antes da final da Copa de 1998. Talvez nunca se saiba o que fizeram. O que certamente se sabe é que Guido Frick comunicou a seu chefe no Stuttgarter Nachrichten. No dia seguinte, falou com Klaus Schlütter, jornalista do diário Bild. Klaus lhe ofereceu dinheiro pela matéria. Frick aceitou.

No dia 2 de julho de 1974, o Bild publicou em sua parte de esportes a matéria sensacionalista "Cruyff, sekt, nackte Mädchen und ein kühles Bad" ("Cruyff, sexo, mulheres nuas e uma banheira gelada"). No mesmo dia, Guido Frick assinava a matéria no Stuttgarter Nachrichten, intitulada "Superstar Johan lud zur nacktparty" ("A superestrela Johan participa de uma festa com gente nua"). Nela, sem saber que Frick era jornalista, Cruyff comentou que 1974 seria sua única Copa na carreira. E que a Holanda seria campeã mundial. Até mesmo se enfrentasse a Alemanha Ocidental, dona da casa.

As consequências do respiro da festa seguiriam. Mas o jogo seguinte traria o Brasil. Que merecia respeito.

A parte de esportes do diário Bild, trazendo com sensacionalismo supostos fatos na festa dos jogadores da Holanda na Copa de 1974: ficou a lenda sobre o que ocorreu (Reprodução)

COPA DO MUNDO FIFA 1974 - SEGUNDA FASE - GRUPO A

Alemanha Oriental 0x2 Holanda

Data: 30 de junho de 1974
Local: Parkstadion (Gelsenkirchen)
Árbitro: Rudolf Scheurer (Suíça)
Gols: Johan Neeskens, aos 7', e Robert Rensenbrink, aos 59'

ALEMANHA ORIENTAL
Jürgen Croy; Gerd Kische, Konrad Weise, Bernd Bransch e Lothar Kurbjuweit; Reinhard Lauck (Hans-Jürgen Kreisch, aos 64'), Jürgen Pommerenke e Rüdiger Schnuphase; Martin Hoffmann, Jürgen Sparwasser e Wolfram Löwe (Peter Ducke, aos 54'). Técnico: Georg Buschner

HOLANDA
Jan Jongbloed; Wim Suurbier, Arie Haan, Wim Rijsbergen e Ruud Krol; Wim Jansen, Willem van Hanegem e Johan Neeskens; Johan Cruyff; Robert Rensenbrink e Johnny Rep. Técnico: Rinus Michels