Se havia qualquer dúvida sobre a Holanda ser uma sensação na Copa de 1974, ela se acabou com a goleada contra a Bulgária, para fechar a fase de grupos (Werner Otto/ullstein bild/Getty Images) |
Sim, a seleção da Holanda (Países Baixos) já era assunto na Copa de 1974. Já chamava a atenção como não fizera na preparação para o torneio. Ainda assim, sendo um pouco chato, era possível ter dúvidas sobre ela, após o empate contra a Suécia. O próprio Suurbier comentava ao diário De Telegraaf de 22 de junho, véspera da partida: "A Laranja, favorita? Não me faça rir!". Por mais que o 0 a 0 contra os suecos tivesse sido encarado com tranquilidade pelo time ("Fazer gols e jogar bem são coisas diferentes. Jogamos bem, mas o gol não saiu", minimizou Cruyff), qual era a da Laranja? O time irresistível que dominara completamente o Uruguai na estreia ou o time que insistira sem conseguir o gol (e até tomara alguns sustos na defesa) contra a Suécia? A resposta viria com a goleada por 4 a 1 e uma atuação segura contra a Bulgária, no último jogo do grupo 3 daquela Copa.
Contudo, para que aquela atuação fosse segura, era necessário ter alguma atenção. Primeiro, porque a Holanda não tinha vaga garantida na segunda fase daquela Copa, ainda. Segundo, porque a Bulgária tinha lá seu talento técnico: estivera nas duas Copas anteriores, 1966 e 1970, tinha jogadores experientes e até talentosos (principalmente o meio-campo Hristo Bonev, dos melhores da história do país). De mais a mais, o CSKA Sofia, principal equipe búlgara da época, tinha eliminado o Ajax nas oitavas de final da temporada 1973/74 da Copa dos Campeões - o formato antigo da Liga dos Campeões, sempre bom lembrar.
Foi principalmente sobre esse assunto, a qualidade da Bulgária, que o auxiliar Cor van der Hart procurou Rinus Michels para uma conversa. Nela, fez sugestões sobre como a seleção holandesa poderia pará-los. Em primeiro lugar, indicou possibilidades de alteração no time titular, como a entrada de Ruud Geels no centro do ataque. Em segundo lugar, recomendou: os holandeses precisariam parar os búlgaros, fosse como fosse. Se precisasse ser com faltas, paciência. Tudo para evitar que os búlgaros pressionassem uma defesa sobre a qual ainda restavam dúvidas - também é bom lembrar: o miolo de zaga da Laranja em 1974 era formado por um zagueiro com somente duas partidas pela seleção (Wim Rijsbergen) e um meio-campo recuado, quase um "líbero" (Arie Haan). E ambos só tinham jogado juntos por 45 minutos antes da Copa começar, no amistoso de preparação contra a Romênia.
Rinus Michels ouviu Cor van der Hart, seu colega de time na carreira de jogador, tanto no Ajax quanto numa passagem pela França. Concordou com a segunda ponderação. Mas discordou da primeira: "Precisamos dar força à formação que já está jogando". No máximo, Michels fez uma mudança, até esperada: tirou Piet Keizer, que decepcionara contra a Suécia (e não voltaria mais a jogar naquela Copa), trazendo Robert Rensenbrink (1947-2020) de volta aos titulares. De resto, o time que já começara nas duas primeiras partidas daria o pontapé inicial também em 19 de junho, novamente no Westfalenstadion de Dortmund, cidade que já começava a se acostumar com a invasão de torcedores holandeses, que chegavam em número cada vez maior, na empolgação da estreia marcante no Mundial.
Melhor, impossível
Se o objetivo holandês era evitar dores de cabeça da Bulgária, melhor começo de jogo foi impossível. Logo no primeiro minuto, Johan Neeskens (1951-2024) iniciou atuação excelente - mais uma dele naquela Copa -, recebendo passe em profundidade e chutando de fora da área, forçando o goleiro Stefan Staykov a fazer defesa. E logo aos cinco minutos, veio o primeiro gol. Cruyff (ditando o jogo, como sempre) carregou a bola pela esquerda, até ser parado por um carrinho do volante Tsonyo Vasilev. Coube a Neeskens, cobrador principal das penalidades no Ajax, fazer a cobrança. Precisou bater duas vezes. Na primeira, acertou o ângulo direito de Staykov, mas o juiz australiano Tony Boskovic ordenou que a cobrança voltasse, por invasão de Jansen (que até levou amarelo, por reclamação) e Van Hanegem. Sem problemas: na segunda, Neeskens bateu forte, no meio do gol, enquanto Stoykov mal escolheu um canto. Ficou parado, diante da força da bola, que estufou as redes.
Neeskens já se impôs como um dos destaques do jogo no começo, com um gol de pênalti. Faria mais um (Werner Otto/ullstein bild/Getty Images) |
Era só o começo de uma atuação que daria respostas mais definitivas sobre o que a Holanda faria na Copa de 1974. Jogando preferencialmente pela direita, a Laranja teria na velocidade de suas jogadas o ponto para dominar a Bulgária. Caberia a Cruyff (como sempre, ditando o jogo) e a Van Hanegem (com dores no tornozelo, sem poder correr muito) darem lançamentos, pelo alto ou por baixo. Para alcançar a bola, tanto Johan Neeskens quanto Johnny Rep sempre tinham fôlego a mais. E as chances de gol começaram a se avolumar. Algumas, afastadas pelo goleiro Staykov (aos 11', um chute de Neeskens, após escanteio; aos 13', desviando outro escanteio, cobrado por Cruyff). Outras, mais agudas: aos 14', Neeskens acertou a trave após passe de Cruyff, e aos 19', Rijsbergen lançou em profundidade, e Rensenbrink chutou cruzado, rente à trave.
Depois, no restante do primeiro tempo, a Holanda diminuiu o ritmo. Como se esperava, a Bulgária passou a pressionar em busca do empate. E ele quase aconteceu, por algumas vezes: o goleiro Jan Jongbloed fez boa defesa em finalização de Pavel Panov aos 22', Bonev mandou a bola na trave em cobrança de falta aos 26', Jongbloed apareceu de novo aos 28' ao defender outro chute de Panov. Mesmo tentativas mais leves faziam a defesa trabalhar: Rijsbergen afastou para escanteio uma tentativa de cruzamento de Voin Voinov, aos 25'.
Só então a Holanda voltou a aparecer. Com os dois "cérebros" de seu jogo, Van Hanegem e Cruyff: aos 32', este tabelou com aquele e bateu, da entrada da área, para Staykov pegou. E finalmente, conseguiu o segundo gol, de maneira até surpreendente: nos acréscimos (45' + 1), Cruyff puxou contra-ataque e passou a bola a Rep, que foi derrubado na área. Pênalti, Neeskens cobrando com a força de sempre, 2 a 0.
Domínio com mudanças
Para o segundo tempo, os dois times tiveram de mudar. Pelas dores - e por um cartão amarelo que já tinha no primeiro tempo, por reclamação -, Van Hanegem deu lugar a Rinus Israël. Naturalmente, isso já diminuiria o ímpeto holandês visto no primeiro tempo: zagueiro de origem, Israël ajudaria mais a defesa. E somente nos primeiros dez minutos da etapa final, a Bulgária já teve dois atacantes vindo a campo (Atanas Mihaylov e Krasimir Borisov - este cobrou falta para fora, aos 57', logo após substituir Panov).
Mas a Holanda teve até mais chances do que tivera no primeiro tempo. Johnny Rep que o diga: só nos primeiros minutos, o atacante da camisa 16 quase fez aos 47' (mandou para fora cruzamento de Cruyff) e aos 51' (outro arremate para fora). Com campo cada vez mais livre para os contra-ataques, outros nomes apareciam. Como Rensenbrink, que aos 55', mandou a bola na trave (após cruzamento de Wim Jansen, o camisa 15 demorou para driblar o goleiro), cabeceando-a para fora aos 60'. Mais seis minutos, e Cruyff fez tudo sozinho aos 66': puxou contra-ataque, chegou à área e finalizou - Staykov pegou em dois tempos.
No segundo tempo, Rensenbrink apareceu um pouco mais, perdendo duas boas chances de gol (Heinz Wieseler/picture alliance/Getty Images) |
Todavia, gol, mesmo, só aos 71': uma cobrança de falta, rebatida parcialmente pela defesa búlgara, foi bem aproveitada por Rep, que fez 3 a 1, de voleio. Mas as chances seguiam: Staykov espalmou chute de Neeskens por cima do gol aos 75', Suurbier perdeu a chance no minuto seguinte... e aí, com os espaços aparecendo, a Bulgária conseguiu o seu gol. Por sinal, gol contra: cruzamento da esquerda passou por Jongbloed, Krol tentou afastar na pequena área... e seu carrinho mandou a bola contra o patrimônio.
Nada que abalasse a Holanda - àquela altura, já com Theo de Jong no ataque. Mais alguns ataques, agora já com cruzamento, e veio o quarto gol, aos 87': Cruyff cruzou, De Jong cabeceou no canto esquerdo de Staykov, e a Laranja garantia a goleada. Mais do que isso: garantia o primeiro lugar no grupo 3. Mais ainda: garantia-se como uma sensação daquela Copa. Falando à uma emissora de rádio, Rinus Michels minimizava a quantidade de cartões que a Oranje tomara já naquela fase: "Cartões amarelos fazem parte. Se não tomássemos tantos cartões, num torneio desses, eu daria uma multa a todos, por não terem feito o que se deve".
Mas era melhor ler o que os jogadores falavam a respeito. Wim Rijsbergen exultava: "Do jeito como jogamos, podemos superar qualquer adversário aqui. Estamos em grande forma". Suurbier voltava atrás da opinião dada no capítulo inicial deste texto: "Assim seremos campeões do mundo". Cruyff era mais cauteloso, mas nem tanto: "Se mostrarmos este nível na segunda fase, podemos chegar à final". E muito tempo depois, em sua autobiografia, Johan Neeskens reconheceu: "Vendo em perspectiva, aquele jogo contra a Bulgária fez a gente se tocar que tínhamos um grande time".
Pois é. O Carrossel começara a girar.
COPA DO MUNDO FIFA 1974 - FASE DE GRUPOS - GRUPO 3
Holanda 4x1 Bulgária
Data: 23 de junho de 1974
Local: Westfalenstadion (Dortmund)
Árbitro: Tony Boskovic (Áustria)
Gols: Johan Neeskens, aos 5' e aos 45' + 1, Johnny Rep, aos 71', Ruud Krol (contra), aos 78', e Theo de Jong, aos 87'
HOLANDA
Jan Jongbloed; Wim Suurbier, Arie Haan, Wim Rijsbergen e Ruud Krol; Wim Jansen, Willem van Hanegem (Rinus Israël, aos 46') e Johan Neeskens (Theo de Jong, aos 79'); Johan Cruyff; Robert Rensenbrink e Johnny Rep. Técnico: Rinus Michels
BULGÁRIA
Stefan Staykov; Stefan Velichkov, Bozhil Kolev e Dimitar Penev; Voin Voinov, Ivan Stoyanov (Atanas Mihaylov, aos 45'), Georgi Denev, Tsonyo Vasilev e Kiril Ivkov; Hristo Bonev e Pavel Panov (Krasimir Borisov, aos 56'). Técnico: Hristo Mladenov
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