sábado, 27 de julho de 2024

Laranja mecânica, primeira e única - 2º capítulo: um treinador muda tudo

A Holanda terminou as eliminatórias para a Copa de 1974 sabendo: muita coisa precisava mudar. O catalisador dessa mudança foi Rinus Michels (Rob Mieremet/Anefo)


Como se soube no primeiro capítulo desta série - e quem não soube, fica a sugestão de leitura -, o alívio pela chegada da Holanda (Países Baixos) à Copa de 1974 não escondia a impressão geral: a Laranja precisava melhorar um bocado, se quisesse mostrar que era digna de crédito no torneio na Alemanha. Para o grupo de jogadores em questão, a mudança tinha um nome para começar: Frantisek Fadrhonc. Por melhor que o técnico tcheco fosse, internamente ele era considerado (por jogadores e pela própria federação) um nome "bonzinho", tímido, até "medroso" demais para comandar uma equipe cheia de jogadores de personalidade tão forte.

Coube a um dos jogadores externar essa necessidade de alterar o técnico: Barry Hulshoff (1946-2020). O zagueiro do Ajax foi claro sobre suas oposições numa entrevista concedida aos jornalistas Frits Barend e Henk van Dorp, para a revista Vrij Nederland, na edição de 15 de dezembro de 1973, um mês depois de garantir lugar no Mundial: "A cada hora do dia você dá de frente com um temperamento nervoso. (...) Você começa a sentir arrepios, você fica pensando em coisas que tiram sua concentração. No dia do jogo, ele se fecha completamente para os jogadores, fica horas voltado para si mesmo. Ele não é concreto nas instruções táticas. E a informação sobre o adversário é muito pobre. A preleção é mais um discurso emocionado dele [do que uma instrução]".

Coube a Barry Hulshoff externar a insatisfação latente com o trabalho de Frantisek Fadrhonc (Getty Images)

Outro nome daquela geração neerlandesa - este, bem mais preponderante no time - também comentou sobre as dificuldades de Fadrhonc para comandar a equipe: Willem van Hanegem. Ainda no fim de 1973, o meio-campista até colocou dúvidas se aceitaria a convocação para a Copa se o tcheco treinasse a Laranja: "Eu tenho minha opinião sobre Fadrhonc, e a mantenho (...) Não tenho nada contra o homem Fadrhonc; por mim, ele nem precisa sair completamente. Só acho que, na Alemanha, [o técnico] precisa ser um técnico melhor, um homem mais forte". O próprio treinador dizia: se fosse para o bem da seleção, não teria vaidade nenhuma em querer manter o cargo, abriria caminho para um sucessor. Aí começavam as dúvidas: quem? E aí também começavam as desconfianças e as desuniões. 

Na entrevista supracitada, Barry Hulshoff opinava que Rinus Michels (1928-2005) seria um bom nome; para Willem van Hanegem, o treinador da Holanda na Copa de 1974 deveria ser Ernst Happel (1925-1992). Nada mais previsível: um nome do Ajax, outro do Feyenoord, ambos trabalhando então na Espanha - Rinus Michels no Barcelona, Ernst Happel no Sevilla - escolhendo os dois técnicos que haviam guiado ambos os clubes às conquistas mais icônicas de suas histórias (Happel treinando o Feyenoord no título europeu de 1969/70; Michels, no Ajax que conquistou o mesmo título em 1970/71). Tão previsível quanto o distanciamento entre os grupos de jogadores dos dois arquirrivais do futebol holandês. Só que a federação já tinha o seu decidido, se precisasse trocar. A decisão tinha sido por eliminação: ainda em 1973, Ernst Happel concedeu entrevista coletiva na qual indicava oposição a jogadores que mantivessem sua vida familiar e até sexual ativa durante uma Copa. Valor extremamente caro a uma geração que tinha jogadores tão próximos de suas parceiras. Por isso, se alguém tivesse de suceder Frantisek Fadrhonc, seria Marinus Jacobus Hendricus Michels. Mas ele quereria? Michels até aceitaria, desde que ele fosse o comandante absoluto. A única voz a ser ouvida, até pela própria federação, quanto a organização, a maneira de jogar, enfim... a tudo.

Ah, se fosse esse o único problema da seleção da Holanda (Países Baixos) antes da Copa de 1974... entre os possíveis convocados, o clima de desconfiança era indisfarçável. Ainda mais quando determinados jogadores miravam um determinado grupo: Johan Neeskens e os citados Willem van Hanegem e Johan Cruyff. Para alguns, esses três jogadores se mobilizavam de modo a sempre colocar o dinheiro acima de tudo, em qualquer aspecto: comercial, esportivo... principalmente Cruyff, guiado em questões comerciais por seu sogro e agente, Cor Coster (1920-2008), que o ajudou a catapultar sua fortuna quando isso ainda era incomum no futebol mundial. Um desses jogadores verbalizou sua antipatia em relação a tal grupo, mesmo sem citá-los nominalmente: Jan van Beveren (1948-2011), goleiro do PSV, considerado um dos melhores da posição que os Países Baixos já tiveram. Já em 1970, Van Beveren deixava claro seu aborrecimento: "Muitos jogadores se esquecem da importância de um torneio como uma Copa do Mundo. Eles só falam em dinheiro. Grana. Eles querem ver a bufunfa diretamente nas mãos".

Rinus Michels tinha a mesma impressão. Ele tinha sido o único treinador holandês presente à Copa de 1970, quando vários dos titulares em 1974 (Wim Suurbier, Wim Jansen, Willem van Hanegem, Robert Rensenbrink, o próprio Johan Cruyff) já eram titulares no fracasso holandês nas eliminatórias. Michels pensou: se a Holanda tivesse estado no México, não faria feio, com os jogadores talentosos que tinha. Só era necessário ter mais foco. Pensar no dinheiro, sim, mas pensar mais ainda no aspecto esportivo. E ele aceitaria ser o treinador (nomeado como "supervisor técnico"), em fevereiro de 1974, a quatro meses da Copa começar. Já Frantisek Fadrhonc "cairia para cima": seguiria dentro da delegação da Holanda na Copa do Mundo, nomeado como "técnico" - mas todos sabiam que, na Copa do Mundo, o treinador seria Rinus Michels. E ele deixou claro numa frase: "Quem não quiser vir junto, seguindo minhas regras, pode falar agora, e ficará em casa". O apelido de "General" não era à toa.

Frantisek Fadrhonc seguiu na delegação, mas todo mundo sabia: Rinus Michels (à esquerda) comandaria a Holanda com mão de ferro na Copa de 1974 (Bert Verhoeff/Anefo)

Depois de um primeiro amistoso - 1 a 1 com a Áustria, em Amsterdã, em 27 de março de 1974 -, testando um esquema com quatro no ataque (seria abandonado), Marinus Jacobus Hendricus Michels soube quem queria vir junto dele. 

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