Em campo, mesmo sem brilhar como contra a Argentina, a Holanda dominou e venceu a Alemanha Oriental, ficando perto da final da Copa de 1974 (Bert Verhoeff/Anefo) |
O começo da segunda fase da Copa de 1974 tinha sido o melhor possível para a seleção da Holanda (Países Baixos). Afinal de contas, a goleada contra a Argentina havia mostrado categoricamente que a Laranja era o time que melhor estava jogando no torneio. Só que nada havia terminado ainda. Vale lembrar: ao invés de ser um mata-mata comum - com oitavas de final, quartas de final e semifinais -, ela era disputada como uma segunda fase de grupos. Com 16 seleções na Copa, as oito classificadas à segunda fase eram separadas em dois grupos de quatro, com os vencedores indo à final - e os segundos colocados, à decisão de 3º e 4º lugares. Ou seja: restavam duas partidas ainda para a Oranje. E o segundo jogo do grupo A viria trazendo a Alemanha Oriental, no domingo, 30 de junho de 1974.
A confiança dos neerlandeses crescia. Em relação ao jogo, Van Hanegem minimizou até a necessidade de vitória, falando ao diário Algemeen Dagblad do dia anterior: "Nós nem precisamos vencer. A Alemanha Oriental precisa. Isso torna nossa posição muito melhor". De fato: se viera da primeira fase empolgada como líder do grupo 1 (com direito à vitória contra a Alemanha Ocidental, por 1 a 0), a equipe da República Democrática da Alemanha já fora derrubada pelo Brasil no primeiro jogo da segunda fase (1 a 0, gol de Rivellino, de falta). E ficaria sem quatro titulares, todos machucados: os defensores Joachim Fritsche e Siegmar Wätzlich, o meio-campo Erich Hamann e o atacante Eberhard Vogel. De destaque, somente o atacante Jürgen Sparwasser. Por mais que a seleção alemã oriental tivesse sua qualidade (tinha sido medalha de prata no torneio olímpico de Munique-1972, e seria ouro em Montreal-1976, com muitos dos jogadores da Copa), ela precisava vencer.
A Holanda, nem tanto. No começo, o ambiente do Waldhotel-Krautkrämer, na cidade de Hiltrup, aborrecia os jogadores: em um diário que manteve durante a Copa, o goleiro Jan Jongbloed (1940-2022) escrevia várias vezes que "desejava que tudo acabasse logo". Contudo, vieram as vitórias. O ambiente começou a ficar mais aberto, como deixavam claras as visitas de algumas esposas ao Waldhotel. Ao supracitado Algemeen Dagblad, Rensenbrink reconhecia: "Realmente, o time está melhorando".
Tudo isso se notaria nos dias que cercaram a vitória contra a Alemanha Oriental.
Respiro dentro de campo: ritmo menor, vitória mantida
No começo da partida, novamente no Parkstadion de Gelsenkirchen (em dia não tão chuvoso quanto contra a Argentina, mas chuvoso), de novo a Holanda mostrou o que fizera contra Bulgária e Argentina: na primeira chance de gol que já teve, fez o gol. Logo aos 8', num escanteio, Rensenbrink cabeceou, o volante Jürgen Pommerenke afastou a bola em cima da linha, mas Cruyff mandou a sobra para a área, e Neeskens completou para o 1 a 0. Um pouco mais, e Neeskens arriscou chute para fora, aos 12'. Seria o começo de novo domínio massivo, como visto contra os argentinos? Nem tanto. Em primeiro lugar, porque Cruyff já era mais marcado: mesmo andando todo o campo, o camisa 14 sempre foi perseguido de perto pelo zagueiro Konrad Weise. Logo, não conseguia acelerar o jogo, com passes em profundidade, como costumava fazer se mais livre.
E a Laranja só teve mais uma chance digna de nota naquele começo: aos 19', Rensenbrink cruzou, mas o goleiro Jürgen Croy se antecipou e pegou a bola antes que Neeskens chegasse. No mais, cercado, Cruyff pouco apareceu no jogo. Destacavam-se mais nomes como Neeskens (como sempre, rápido no meio-campo), Johnny Rep (o atacante saía da área para buscar a bola) e, principalmente, Rensenbrink. O camisa 15 estava se sacrificando naquela Copa: afinal, se era o destaque pleno no Anderlecht belga em que jogava, "Rob" tinha de se restringir na seleção, já que Cruyff tinha esse papel de destaque inquestionável. Mas como o capitão estava marcado, Rensenbrink começou a aparecer mais. Aos 36', quase marcou de cabeça, mas Croy pegou - no minuto anterior, Arie Haan tentara o gol, mas seu chute desviou no zagueiro Bernd Bransch e saiu. A Alemanha Oriental, bem mais defensiva do que na primeira fase, tinha praticamente só um nome atacando: o ponta direita Martin Hoffmann. Na única vez em que escapou da linha de impedimento, aos 39', ele trouxe a bola para o meio e bateu de fora da área, forçando a defesa de Jongbloed em dois tempos.
Com Cruyff um pouco abaixo contra os alemães orientais, Rensenbrink pôde jogar como estava acostumado no Anderlecht. E foi o destaque da vitória (Alamy Stock Photo) |
No segundo tempo, mesmo tentando (aos 51', após escanteio de Wim Suurbier, Neeskens tentou, mas Croy pegou), a Holanda seguia em marcha lenta. Até tomou alguns sustos. Aos 47', Jongbloed pegou chute do meio-campo Rüdiger Schnuphase; aos 53', o goleiro holandês saiu do gol precipitadamente, foi driblado por Hoffmann, mas este escorregou justamente quando cruzaria para a área vazia. A bola saiu pela linha de fundo.
Foi o suficiente para a Holanda voltar a ficar perto do gol. Aos 55', quando esteve livre da marcação de Weise, Cruyff carregou a bola até passá-la a Jansen, que ajeitou na área para que Rep chutasse na rede - pelo lado de fora. Quatro minutos depois, ela entrou: Neeskens aproveitou a bola, chegou à área, deixou que Rep a dominasse e a ajeitasse para Rensenbrink, que vinha pelo meio, bater cruzado, no canto esquerdo de Croy, para o 2 a 0 holandês. Muito comemorado por seu gol - Cruyff chegou para abraçá-lo primeiro -, ali o "Homem-Cobra" (apelido de Rensenbrink, por seus movimentos discretos e precisos) se confirmou como melhor do jogo em Gelsenkirchen.
Houve mais tentativas holandesas no jogo (um chute de Krol, de fora e para fora, aos 65'; uma tentativa de Neeskens afastada por Bransch, aos 81'; uma falta que Van Hanegem cobrou para fora, aos 82'). Mas, na prática, o segundo gol de Rensenbrink resolvera as coisas. A Holanda estaria numa das decisões da Copa do Mundo de 1974. Se seria a final ou a decisão de 3º e 4º, só o resultado do jogo contra o Brasil, último da segunda fase, decidiria. E nesta partida, a vantagem do empate seria da Laranja, pelo saldo de gols maior (+6, contra +2 do Brasil). De todo modo, o objetivo estava claro, como Johnny Rep disse ao Algemeen Dagblad depois do jogo: "O terceiro lugar já não me interessa mais. Agora que estamos jogando assim, também quero ser campeão do mundo".
As consequências eram as mais positivas.
Respiro fora de campo: a festa que trouxe dores de cabeça
Como dito no começo deste texto, o ambiente da delegação holandesa no Waldhotel-Krautkrämer de Hiltrup já era mais aberto. Tão aberto que os jornalistas de outros países começavam a frequentá-lo mais. E os holandeses começaram a atendê-los (reza a lenda que mediante alguns pagamentos, embora isso não seja oficialmente confirmado). Com relação aos profissionais da própria nação, os neerlandeses também eram receptivos... com uma exceção: Ben de Graaf, o correspondente do diário De Volkskrant, considerado crítico demais. A tal ponto que Rinus Michels, técnico fora de campo, e Cruyff, líder do grupo, o tinham chamado para uma conversa séria. E a ponto, também, de alguns jogadores reservas dos Países Baixos o terem derrubado na piscina do hotel, meio de brincadeira, meio a sério...
Conforme a Copa passava, o ambiente ficava mais e mais aberto. Até porque Rinus Michels, cada vez mais, diminuía a vigilância e a exigência que o fizeram ser apelidado inicialmente De Generaal ("O General"). Também, pudera: incrivelmente, o Barcelona - ainda treinado por Michels - disputava as fases decisivas da Copa do Generalíssimo (atual Copa do Rei) em meio à Copa do Mundo. Então, o treinador precisava ir e vir no trajeto Hiltrup-Barcelona para treinar o clube catalão - que seria derrotado na final, por 4 a 0, pelo Real Madrid, em 28 de junho de 1974, dois dias antes do jogo contra a Alemanha Oriental. Mesmo quando voltava, Michels seguia distante do grupo. Em campo, acabava deixando a responsabilidade mais por conta dos jogadores - que, como se nota, correspondiam bem em campo.
Aqui, no dia da chegada da delegação da Holanda (Países Baixos) para a Copa de 1974, o ambiente no Waldhotel-Krautkrämer podia até ser vigilante. Mas era aprazível (Rob Mieremet/Anefo) |
Tamanha distância de Michels fez com que os jogadores se sentissem mais à vontade, para alguns hábitos que não fariam na frente do treinador. Por exemplo, o fumo: Jongbloed, Cruyff e Keizer fumavam no hotel (Keizer, inclusive, tinha sido "liberado" pelo médico da delegação, Frits Kessel, na base do "deixa que eu me entendo com Michels). Ou então, a bebida: alguns jogadores tinham em seus quartos do Waldhotel-Krautkrämer garrafas de uísque ou até vodka. E nos jogos de cartas, os valores apostados iam além do que Michels recomendava. Até aí, fazia-se vista grossa a tudo isso.
Porém, uma festa na noite daquele mesmo domingo (30 de junho de 1974) da vitória sobre os alemães orientais renderia dores de cabeça à delegação neerlandesa, pelo resto da Copa do Mundo. A festa era oferecida pelo diário Algemeen Dagblad, seria no salão do Waldhotel-Krautkrämer, serviria como um "respiro" da pressão da Copa, e teria até apresentação musical - da banda The Cats, cujo hit "One way wind" era o maior sucesso na trilha sonora dos jogadores holandeses na Copa de 1974. A banda, inclusive, tinha até vinculações futebolísticas: Arnold Mühren, baixista e principal compositor, era sobrinho da dupla de irmãos Arnold e Gerrie Mühren, ambos do Ajax. Gerrie, inclusive, quase estivera na Copa de 1974.
O Algemeen Dagblad noticiava o show de The Cats na festa de confraternização da delegação da Holanda durante a Copa. A festa rendeu dores de cabeça (Arquivo) |
No show e na festa, tudo vinha bem - alguns jogadores até se arriscaram nos instrumentos. Os problemas vieram no decorrer dela. Primeiro, o auxiliar técnico Cor van der Hart exagerou na bebida, a ponto de derrubar vinho no vestido da esposa de Günter Krautkrämer, gerente do hotel (ambos brigaram). Depois, Van der Hart foi conversar com Cees Veerman, cantor e guitarrista da The Cats. A certa altura, Veerman fez menção de ir dormir, mas Van der Hart pediu ameaçadoramente que ele ficasse. Veerman saiu, e o auxiliar atirou garrafas pela janela do Waldhotel.
Depois, em meio ao jantar que também acontecia, Hans-Joachim Krautkrämer, filho do gerente - e ele mesmo futuro comandante do Waldhotel -, começou a tirar algumas fotos. Uma delas trazia Cruyff conversando com uma mulher, numa mesa. O jogador se irritou, pediu que Hans devolvesse o filme da máquina, e a briga só se acalmou quando a namorada de Hans-Joachim convenceu o "Número 14" de que as fotos não viriam a público. Não vieram, mesmo. Contudo, havia alguém ali que acabou tornando a festa pública.
Hóspede do quarto 111 do Waldhotel, o alemão Guido Frick foi se queixar do barulho da delegação holandesa se espalhando pelo hotel. O gerente disse a ele que dificilmente a situação melhoraria. Frick foi comunicado do que se tratava. Sentiu "cheiro" de notícia, por sua profissão: era jornalista do Stuttgarter Nachrichten, diário regional. Convenceu a recepcionista de que trabalhava como representante comercial, e teve acesso ao salão de festas. Mais ainda: já na madrugada de 1º de julho, Guido notou que um grupo de jogadores - foram citados como membros Cruyff, Rensenbrink, o zagueiro reserva Pleun Strik e o goleiro reserva Piet Schrijvers - foi para a sauna do hotel, com algumas mulheres. Para sempre, no Reino dos Países Baixos, ficou a pergunta: o que o grupo fez na sauna do Waldhotel? Tornou-se um anedotário do futebol de lá, semelhante ao caso da convulsão de Ronaldo antes da final da Copa de 1998. Talvez nunca se saiba o que fizeram. O que certamente se sabe é que Guido Frick comunicou a seu chefe no Stuttgarter Nachrichten. No dia seguinte, falou com Klaus Schlütter, jornalista do diário Bild. Klaus lhe ofereceu dinheiro pela matéria. Frick aceitou.
No dia 2 de julho de 1974, o Bild publicou em sua parte de esportes a matéria sensacionalista "Cruyff, sekt, nackte Mädchen und ein kühles Bad" ("Cruyff, sexo, mulheres nuas e uma banheira gelada"). No mesmo dia, Guido Frick assinava a matéria no Stuttgarter Nachrichten, intitulada "Superstar Johan lud zur nacktparty" ("A superestrela Johan participa de uma festa com gente nua"). Nela, sem saber que Frick era jornalista, Cruyff comentou que 1974 seria sua única Copa na carreira. E que a Holanda seria campeã mundial. Até mesmo se enfrentasse a Alemanha Ocidental, dona da casa.
As consequências do respiro da festa seguiriam. Mas o jogo seguinte traria o Brasil. Que merecia respeito.
A parte de esportes do diário Bild, trazendo com sensacionalismo supostos fatos na festa dos jogadores da Holanda na Copa de 1974: ficou a lenda sobre o que ocorreu (Reprodução) |
COPA DO MUNDO FIFA 1974 - SEGUNDA FASE - GRUPO A
Alemanha Oriental 0x2 Holanda
Data: 30 de junho de 1974
Local: Parkstadion (Gelsenkirchen)
Árbitro: Rudolf Scheurer (Suíça)
Gols: Johan Neeskens, aos 7', e Robert Rensenbrink, aos 59'
ALEMANHA ORIENTAL
Jürgen Croy; Gerd Kische, Konrad Weise, Bernd Bransch e Lothar Kurbjuweit; Reinhard Lauck (Hans-Jürgen Kreisch, aos 64'), Jürgen Pommerenke e Rüdiger Schnuphase; Martin Hoffmann, Jürgen Sparwasser e Wolfram Löwe (Peter Ducke, aos 54'). Técnico: Georg Buschner
HOLANDA
Jan Jongbloed; Wim Suurbier, Arie Haan, Wim Rijsbergen e Ruud Krol; Wim Jansen, Willem van Hanegem e Johan Neeskens; Johan Cruyff; Robert Rensenbrink e Johnny Rep. Técnico: Rinus Michels
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