(Versão revista e ampliada de texto sobre a Copa de 1974, dentro da série especial publicada em 2022 sobre a história da Holanda nas Copas do Mundo)
Agora é relativamente fácil comentar sobre como a seleção da Holanda (Países Baixos) impressionou na Copa de 1974. Até porque, normalmente, só se lembram dos bons momentos que ela protagonizou já no Mundial, na Alemanha. O que pouco se sabe é como o trajeto dela até ali foi tortuoso. A começar pelas eliminatórias da Copa. A geração que misturava nomes já experientes - Wim Suurbier (1945-2020), Willem van Hanegem, Piet Keizer (1943-2017), Johan Cruyff (1947-2016) - a jovens como Johan Neeskens e Johnny Rep causava furor em clubes: é quase desnecessário lembrar que os quatro campeões anteriores da Copa dos Campeões Europeus eram dos Países Baixos (Feyenoord em 1969/70, Ajax nas três edições seguintes - 1970/71, 1971/72 e 1972/73). Só que na seleção... ela não disputava Copas desde 1938! E a trajetória no limbo era tanta, incluindo vexames, que poucos apostavam que ela seria a sensação da Copa.
A capacidade daquela geração seria colocada à prova nas eliminatórias, iniciadas em 1972, no grupo 3 da qualificação europeia, enfrentando Noruega, Islândia e Bélgica. Comandada desde 1970 pelo tcheco Frantisek Fadrhonc (1914-1981), a Laranja iria tentar a vaga na Copa com alguns nomes que não chegariam a ela. O goleiro Jan van Beveren (1948-2011), do PSV; os zagueiros Barry Hulshoff (1946-2020), do Ajax, e Aad Mansveld (1944-1991), do ADO Den Haag - então, FC Den Haag; e o atacante Theo Pahlplatz, do Twente. Bastou o primeiro jogo daquelas eliminatórias para que a Holanda mostrasse seu valor: no dia 1º de novembro de 1972, em De Kuip (Roterdã), 9 a 0 na Noruega. Simplesmente a maior goleada que a seleção masculina holandesa conseguira até então, nos 67 anos de história que tinha até ali - recorde que duraria até 2011.
O tcheco Frantisek Fadrhonc conduziu a seleção da Holanda por todo o tortuoso caminho nas eliminatórias - e seguiria na Copa de 1974, mas subjugado a Rinus Michels (Arquivo/Fotocollectie Anefo) |
Contudo, se havia alguma adversária capaz de fazer frente naquele grupo da qualificação, era a vizinha Bélgica, o rival mais conhecido, velha conhecida de eliminatórias (disputara vaga em 1934 e em 1938). Em matéria de Copas, inclusive, a tradição dos Diabos Vermelhos era bem maior àquela altura - para citar só um motivo, porque os belgas haviam jogado o Mundial de 1970. E boa parte da geração deles ainda estava firme e forte na seleção, tendo o goleiro Christian Piot, o meio-campo Wilfried van Moer e os atacantes Paul van Himst e Raoul Lambert como destaques. Além do mais, se os neerlandeses ainda começavam a campanha nas eliminatórias, os principais adversários já tinham três jogos e três vitórias - duas contra a Islândia, uma contra a Bélgica. Em suma: Holanda e Bélgica fariam jogos muito equilibrados. E começariam a provar isso em 19 de novembro de 1972: no estádio Bosuil, em Antuérpia, a Laranja foi visitante numa partida igual. Em atuações e no resultado: 0 a 0.
1972 passou, 1973 chegou, e a Holanda teve dois amistosos para respirar - uma derrota para a Áustria (1 a 0 em Viena, em 28 de março), uma vitória contra a Espanha (3 a 2 no Estádio Olímpico de Amsterdã, em 2 de maio de 1973). Justamente nesses amistosos, Frantisek Fadrhonc começou a dar chance a muitos jogadores que vinham barbarizando no antológico Ajax - o meio-campo Arie Haan e os citados Neeskens e Rep tiveram suas primeiras partidas pela Laranja justamente nesses amistosos. Mas se sabia: o que importava eram as eliminatórias da Copa. E a Holanda, embora merecesse respeito, apenas cumpria o esperado, sem impressionar. Foi assim nas duas vitórias contra a Islândia - duas goleadas, diante da seleção mais fraca do grupo 3 das eliminatórias europeias: 5 a 0 em Amsterdã, em 22 de agosto de 1973; 8 a 1 em Deventer (sim, a Islândia sequer tinha estádio capaz de receber jogos oficiais, e foi "mandante" numa cidade dos Países Baixos), uma semana depois.
O sinal de alerta ficou mais intenso para a Holanda no penúltimo jogo daquelas eliminatórias: fora de casa, em Oslo, contra a Noruega, em 12 de setembro de 1973. Com somente cinco titulares escalados que estariam na Copa (Krol, Jansen, Van Hanegem, René van de Kerkhof e Cruyff - Haan substituiu Van Hanegem aos 81'), a Laranja até saiu na frente: Cruyff fez 1 a 0 já aos sete minutos da etapa inicial. Todavia, os visitantes levaram a maior parte dos 90 minutos em ritmo lento demais, apenas administrando a vantagem. Quase tiveram o pior dos castigos: aos 77', o atacante Harry Hestad ganhou disputa de bola com o goleiro Van Beveren, e empatou o jogo em Oslo. Ali a Holanda poderia perder pontos que a tirariam da Copa de 1974. Mas não os perdeu: a três minutos do fim, Cruyff ajeitou, e o zagueiro Hulshoff invadiu a área e chutou para o 2 a 1 salvador. Ainda assim, a impressão foi preocupante. Em reportagem para a edição de 21 de setembro de 1973 da revista Placar, diretamente do jogo em Oslo, o jornalista Raul Quadros (1942-2016) foi desconfiado: "A fraquíssima Noruega perdeu-se em campo, e só não sofreu mais gols porque os holandeses - fora Cruyff - são tecnicamente medíocres. (...) Aí é que está o problema da Holanda: será que o futebol deles é suficiente para aparecer sem o concurso do gênio?".
Um amistoso para recuperar fôlego no meio do caminho (1 a 1 contra a Polônia - outra seleção que faria sucesso na Copa de 1974 -, em Roterdã, em 10 de outubro de 1973), e um mês e oito dias depois, chegou o momento. Estádio Olímpico de Amsterdã, 18 de novembro de 1973, um domingo. Empatadas em pontos (9) no grupo 3 das eliminatórias, Holanda e Bélgica fariam a "final" pela vaga na Copa, na última rodada. A Laranja só se aliviava por ter saldo maior de gols do que os Diabos Vermelhos - +22 a +12 -, mas convinha não abusar da sorte: afinal, uma vitória dos visitantes, e seriam eles os classificados, sem nem repescagem para dar uma "segunda chance".
O tempo foi passando em Amsterdã. O 0 a 0 seguia no placar, enervando o time; enervando Frantisek Fadrhonc, no banco; enervando toda a torcida que lotava o Estádio Olímpico. Até que, justamente no último minuto, uma falta foi marcada, na esquerda. Cobrada para a área, a defesa holandesa fez a linha de impedimento. Mas à direita da grande área, o belga Jan Verheyen estava a postos - e completou para o gol. Bola na rede. 1 a 0. Poderia ser o gol da Bélgica na Copa de 1974, o gol que frustraria o Reino dos Países Baixos, com aquela geração esplendorosa de jogadores. Mas não foi: o juiz búlgaro Pavel Kazakov anulou o gol, alegando impedimento de Verheyen. Acréscimos dramáticos depois, a partida acabou 0 a 0. Alegria no Estádio Olímpico de Amsterdã: ambas as seleções ficaram com dez pontos, mas pelo maior saldo de gols, a Holanda voltava a uma Copa do Mundo, após 36 anos. Por trás do que a Oranje faria no Mundial, porém, ficou uma dúvida até hoje esquecida: Verheyen estava mesmo impedido?
Os jornais foram claros em suas manchetes no dia seguinte sobre o tamanho do sufoco por que a Laranja passara no Estádio Olímpico de Amsterdã para garantir vaga no Mundial. O Het Parool estampou: "Nu flink aan de slag" (em holandês, "agora é colocar mãos à obra de verdade") - e ainda acrescentou num quadro "Het einde van een lijdensweg" (em tradução, "o fim de um caminho sofrido"). No Algemeen Dagblad, o reconhecimento da classificação e do sofrimento, numa coluna de comentários: "Ondanks alles" ("Apesar de tudo"). Em outro jornal não identificado, manchete até mais sintética: "Gelukt! Maar adem stokte even..." ("Deu certo! Mas foi de prender a respiração...").
Enfim: a Holanda estava de volta à Copa. Mas precisaria melhorar muito, todos sabiam. E isso ocorreria no primeiro semestre de 1974. A duras penas.
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