terça-feira, 30 de julho de 2024

Laranja Mecânica, primeira e única - 4º capítulo: o mais lindo acidente

Posando para fotos no estádio de Hannover, antes da estreia na Copa de 1974: contra o Uruguai, a Holanda já começaria a surpreender. Principalmente no segundo tempo (Getty Images)

Como se sabe, os amistosos da seleção da Holanda (Países Baixos) pré-Copa de 1974 não atraíam lá muita confiança no que a Laranja poderia fazer na Alemanha. Mas como também se sabe, as coisas começavam a mudar, nas conversas privadas que Rinus Michels tinha com Johan Cruyff, o diferenciado de sua equipe. E elas continuariam a mudar, até que se soubesse o que seria da equipe neerlandesa na estreia na Copa, em 15 de junho de 1974, contra o Uruguai, em Hannover. Uma mudança já era certa: Jan Jongbloed seria o goleiro titular. Mais pelo que jogava com os pés pelo que jogava com as mãos.

A mudança seguinte viria a partir dos dois amistosos seguintes. O primeiro, tão somente um jogo-treino: vitória por 2 a 1 sobre o Kickers Offenbach, time alemão, em 1º de junho de 1974, na cidade de Den Bosch. Já ali, se veria uma sugestão tática de Cruyff: uma defesa menos estática e mais hábil, podendo iniciar até as saídas de bola, com Arie Haan (meio-campista que nunca havia jogado como zagueiro) e Wim Jansen formando a dupla no miolo de zaga. Seria esta a dupla que também começaria o último amistoso oficial antes do Mundial: 0 a 0 contra a Romênia, 5 de junho de 1974, em De Kuip (Roterdã). Um jogo em que, de novo, a euforia foi inexistente: De Kuip tinha meia lotação, a Holanda ainda foi lenta, e a imprensa não se encantou - o De Telegraaf começou sua notícia no dia seguinte com "No seu último amistoso, a Holanda novamente não se impôs".

Nessa partida, o time laranja contou com escalação mista - sim, havia os citados Haan e Jansen, Ruud Krol, Johan Neeskens, Willem van Hanegem, Robert Rensenbrink, mas também o goleiro Eddy Treijtel, e os atacantes Theo de Jong e Ruud Geels. Este, inclusive, protagonista indireto de uma historieta: com a Holanda tendo suas camisas numeradas em ordem alfabética para a Copa, Geels ficaria com a camisa 14. Justamente a preferida de Johan Cruyff, a quem coubera a camisa 1. Cruyff usou de toda sua liderança naquele ambiente para, bem, persuadir Geels a lhe ceder a camisa 14. Persuasão bem sucedida, como se sabe. Pelo menos, Geels marcaria época para os holandeses: foi seis vezes artilheiro da Eredivisie.

Ruud Geels marcaria época dentro do futebol holandês... mas na Copa de 1974, ficaria na reserva. E teria de trocar o número de sua camisa - pedido de Cruyff (Rob Mieremet/Anefo)

No intervalo daquele 0 a 0 contra a Romênia, um novato substituiu Jansen no miolo de zaga: Wim Rijsbergen, jovem (22 anos) zagueiro do Feyenoord, fazendo naquele amistoso justamente a sua estreia pela seleção neerlandesa. Até melhorou o toque de bola com Haan. E se decidiu, no restante dos treinos em Hengelo, antes mesmo da viagem à Alemanha: Haan e Rijsbergen formariam a zaga da Laranja na Copa. Algo até compreensível. Mas também temerário, tendo em vista que Haan era desacostumado a jogar na defesa, e Rijsbergen era praticamente um estreante em seleção. Mais um fator a aumentar a incógnita com que a Holanda viajou à Alemanha - ao jornalista Auke Kok, Haan confessou que passou a viagem de ônibus pensando como era possível que a seleção fosse vista com tamanha desconfiança, sendo que os times holandeses (principalmente o Ajax) viviam fase tão boa. O guia da revista alemã Kicker para a Copa de 1974 era claro: "A Holanda espera por um pequeno milagre. A preparação da seleção para a Copa foi tão curta que os torcedores não têm expectativas (...) Apesar de estrelas como Johan Cruyff, Willem van Hanegem, Johan Neeskens e Piet Keizer estarem disponíveis, os habitantes do país das tulipas já se alegrarão só do país conseguir um lugar entre os oito classificados à segunda fase".

Em seu livro Futebol Total - a edição brasileira de Mundial 74, publicação espanhola na qual rememorou o que viveu naquele Mundial -, Cruyff reconheceu: "Estávamos muito nervosos. Além de nunca termos atuado juntos, cinco jogadores estreavam em novas funções. O goleiro Jongbloed era novo na equipe. (...) Haan e Rijsbergen nunca haviam atuado daquela maneira - formando a dupla de zaga. Jansen demorou a chegar ao elenco, e atuava como Neeskens, no meio. O próprio Neeskens teve de se sacrificar e fazer várias funções. Eu não estava 100% fisicamente... E tudo isso junto, num só jogo, o da estreia, contra uma seleção bicampeã mundial, quarta colocada na Copa anterior".

Triângulos de bermudas

Pois deu muito certo. Nos primeiros dois minutos, até que o Uruguai (time experiente, que contava com destaques conhecidos dos brasileiros - o goleiro Ladislao Mazurkiewicz, o lateral direito Pablo Forlán - sim, pai do recente Diego -, o meio-campo Pedro Rocha) tentou manter a bola. Mas no terceiro, Forlán já levou cartão amarelo, por falta dura em Neeskens. E aos 7', uma triangulação rendeu o 1 a 0: Cruyff dominou a bola, passou a Suurbier, este cruzou, e Johnny Rep completou de cabeça. Já valeu para empolgar a torcida holandesa - ainda pouca - presente em Hannover. Mesmo nem tão veloz assim, a Holanda mantinha a posse de bola, com os avanços de Jansen e Neeskens, dois dos melhores holandeses em campo. E ficava claro que, longe de ser uma "bagunça", o esquema tático estava definido numa espécie de "4-3-Cruyff-2", como cunhou o jornalista André Rocha. Na defesa, a linha Suurbier-Haan-Rijsbergen-Krol; no meio, enquanto Jansen e Neeskens corriam, Van Hanegem era o homem dos lançamentos; Rep era mais de finalizar, e Rensenbrink, de buscar a bola; e coordenando tudo, avançando, ajudando a defesa quando tinha de ajudar, criando ataques quando tinha de criar, Johan Cruyff, o centro daquilo tudo.

Indo e vindo do meio-campo para o ataque, dominando a bola, direcionando os ataques: Cruyff era um capitão na acepção da palavra. E já mostrou isso na estreia (Bob Thomas Sport Fotography/Getty Images)

A Holanda nem foi tão veloz assim desde o primeiro tempo em Hannover. Somente criou chances em chutes de fora da área (Wim Suurbier aos 32', muito de longe; Krol, mandando mais perto do gol, aos 36'). O Uruguai até trabalhou aos 23', num cruzamento que Jongbloed cortou. Mas aos 39', Van Hanegem deixou claro o time que andara mais perto do gol, quase marcando após cabeceio desviado. E de mais a mais, com os constantes avanços de Suurbier e Krol (pelos lados) e Neeskens e Jansen (pelo meio), notavam-se "triângulos" de bermudas e camisas laranjas a impedirem os uruguaios de criarem jogadas de ataque. Ainda assim, o 1 a 0 mostrava que faltava algo.

Segundo tempo: os primeiros sinais do Carrossel

Não faltaria mais no segundo tempo. Nele, sim, a Holanda mostrou por quê seria a sensação daquela Copa, criando chances e mais chances de gol. Já aos 50', uma cobrança de falta de Krol, ensaiada - Cruyff ajeitou e Van Hanegem bateu para fora; aos 53', num cruzamento de Neeskens, Rep escorou à queima-roupa, e Mazurkiewicz pegou. Era a chave: além dos avanços constantes, as jogadas pelas pontas aumentariam a pressão sobre o Uruguai. Avanços como os de Neeskens e Jansen: aos 59', os dois tabelaram, e o meio-campista da camisa 13 (incansável em campo) chutou para fora. No minuto seguinte, um lance que simbolizou aquela equipe da Holanda: numa cobrança de falta de Pedro Rocha, no meio-campo, bastou o camisa 10 uruguaio rolar a bola para dois, cinco, sete jogadores holandeses virem para cima de Mantegazza, que tentou dominar. Claro, roubavam a bola. Pressão incomum naqueles tempos do futebol.

E as chances continuaram até em maior número, na reta final do jogo. Aos 71', um chute de Rensenbrink, para fora; aos 72', Mazurkiewicz pegou outro, e na sequência, após cruzamento, Cruyff cabeceou para fora. Mais dois minutos, e um gol anulado de Cruyff, após bonita jogada de Van Hanegem. No minuto seguinte, em cobrança de falta ensaiada, Jansen bateu na trave, e quase Cruyff fez na sobra (Mazurkiewicz pegou em cima da linha). Diante de pressão quase irrespirável, até surpreendeu que o segundo gol só viesse a quatro minutos do fim, novamente com Rep - Van Hanegem lançou, Rensenbrink cruzou, Rep completou para o gol vazio.

Ao lembrar aquele dia, Pedro Rocha (1942-2013), considerado dos mais técnicos meio-campistas que o Uruguai já teve, reconhecia: "Somente duas vezes na minha carreira senti vontade de pedir socorro e gritar pela minha mãe: uma no primeiro clássico entre Nacional e Peñarol em que joguei, e outra quando enfrentei a Holanda em 1974". Já Cruyff, meses depois, no seu livro da época, se impressionava como tinha dado tão certo: "Até hoje não entendo como tudo daria tão certo (...) É impressionante ler e ouvir tudo que falavam de bom da gente durante o Mundial, que tínhamos um bloco homogêneo... como?! Até a Copa não tínhamos uma escalação, um time formado!".

Era um acidente que acontecia. O mais lindo acidente.


COPA DO MUNDO FIFA 1974 - FASE DE GRUPOS - GRUPO 3

Uruguai 0x2 Holanda

Data: 15 de junho de 1974
Local: Niedersachsenstadion (Hannover)
Árbitro: Karoly Pálotai (Hungria)
Gols: Johnny Rep, aos 7' e aos 86'

URUGUAI
Ladislao Mazurkiewicz; Pablo Forlán, Baudilio Jáuregui, Julio Montero Castillo e Pavoni; Walter Mantegazza, Victor Espárrago e Pedro Rocha; Luis Cubilla (Denís Milar, aos 64'), Fernando Morena e Juan Masnik. Técnico: Roberto Porta

HOLANDA
Jan Jongbloed; Wim Suurbier, Arie Haan, Wim Rijsbergen e Ruud Krol; Wim Jansen, Willem van Hanegem e Johan Neeskens; Johan Cruyff; Robert Rensenbrink e Johnny Rep. Técnico: Rinus Michels

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