quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Laranja Mecânica, primeira e única: 7º capítulo: o maior momento

Cada vez mais confiante em campo, cada vez mais relaxada fora dele, a Holanda viveu o grande momento de sua campanha na Copa de 1974 goleando a Argentina (Sepia Times/Universal Images Group/Getty Images)

Introdução







Quase toda grande equipe da história do futebol - masculino, feminino, não importa - tem um grande jogo em sua história. Uma daquelas atuações que justificam (e até exemplificam) plenamente a razão dela ser tão reconhecida ao longo da trajetória do jogo de bola. Para se dar um exemplo: qualquer comentário sobre a Seleção Brasileira da Copa de 1970 cita normalmente o 1 a 0 sobre a Inglaterra, exemplo da competitividade dela, e os 4 a 1 da final contra a Itália, apoteose técnica daquele time. O Barcelona campeão europeu duas vezes em três anos (2008/09 e 2010/11) será exemplificado, principalmente, pelos 3 a 1 contra o Manchester United, na final de 2011. Pois bem: no caso da Holanda (Países Baixos) da Copa de 1974, para sempre o maior exemplo em campo daquela campanha histórica será a goleada por 4 a 0 sobre a Argentina, na estreia da Laranja na segunda fase da Copa.

Talvez uma atuação tão brilhante seja exemplificada pelo ambiente vivido pela delegação no Waldhotel-Krautkrämer, quartel-general da Holanda na Copa, sediado na cidade alemã de Hiltrup. No dia 24 de junho, o dia seguinte à goleada sobre a Bulgária, permitiu-se a visita de algumas esposas de jogadores. Algumas delas, muito marcadas pela proximidade que tinham de seus companheiros, como Danny Cruyff, companheira fiel de Johan desde 1968 até que a morte deste os separasse em 2016. Outras, menos citadas, como "Titia" Haan e Trudy Rep. Não que as famílias estivessem constantemente juntas, ou até hospedadas com os 22 convocados. Mas a convivência periódica existia, e era inegavelmente mais aberta, por exemplo, do que a concentração brasileira, na cidade de Feldberg, totalmente isolada.

Havia essa abertura, no aspecto de comportamento. No aspecto futebolístico, a Holanda estava cada vez mais confiante. A vitória contra a Bulgária deixara clara a escalação a seguir. Com isso, o entrosamento aumentava. Com o entrosamento crescente, era facilitada a troca de posições e a variação de jogadas, pontos-chaves daquela seleção holandesa. E isso seria colocado à prova contra um adversário acessível e já superado. Vale lembrar: em 26 de maio, semanas antes da estreia na Copa, num amistoso, a Laranja goleara a Argentina, por 4 a 1. E se a participação no Mundial mostrava uma Albiceleste razoável o suficiente para superar a Itália e ter uma das vagas do grupo 4 na segunda fase, ela também tinha seu lado confuso: havia bons jogadores, como o zagueiro Roberto Perfumo, o meia René Houseman e o atacante Héctor Yazalde, mas o time não embalava. Para piorar, no cenário social, a Argentina vivia o impacto da agonia do presidente Juán Domingo Perón, que morreria em 1º de julho de 1974, dias depois do jogo contra a Holanda.

Podia ser pior - para a Argentina

Bastou a bola rolar, ainda com dia claro no Parkstadion de Gelsenkirchen (lotado por uma torcida holandesa jovem e estridente, quase sempre cantando o "Hup, Holland, Hup", tema tradicional dos adeptos laranjas), para um lance mostrar o que a Argentina teria de encarar. Logo no primeiro minuto, o atacante Rubén Ayala dominou a bola após Johan Neeskens a perder - só que Neeskens a retomou com velocidade, antes mesmo de Ayala iniciar a jogada. Mais três minutos, e uma tabela já foi feita entre Neeskens e Cruyff. Aos 5', Robert Rensenbrink arriscou chute por cima do gol. Sim, a Argentina tinha alguma preparação para pegar os holandeses - tanto que até repetia a linha de impedimento que a Laranja fazia (por isso, até, Cruyff fez gol anulado por posição ilegal dele, aos 7'). Mas a velocidade holandesa era muito acima da equipe sul-americana. Tanto que, aos 9', após triangulação com Johnny Rep e Neeskens (este, como sempre, acelerando as jogadas no meio), Van Hanegem só não fez o gol porque o goleiro Daniel Carnevali se antecipou e pegou.

Numa de suas fotos mais conhecidas, eis Cruyff pronto para fazer 1 a 0 na Argentina, após driblar o goleiro Carnevali (STF/AFP/Getty Images)

Mas aos 11', não houve como a Argentina escapar. Um lançamento de Van Hanegem pelo alto enganou a linha de impedimento argentina, e Cruyff ficou livre para driblar Carnevali e, mesmo um pouco desajeitado, fazer 1 a 0. Era a senha para o melhor momento holandês naquela Copa de 1974: com espaço constante pela direita, as chances de gol se avolumaram. Aos 14', Neeskens cruzou, Cruyff demorou para finalizar e chutou em cima da defesa (a bola sobrou para Rensenbrink depois, mas seu chute foi afastado por Francisco Sá, em cima da linha). Aos 16', Neeskens driblou Carnevali e novamente cruzou, mas o cabeceio de Wim Jansen - aparecendo bem mais - foi bloqueado por Sá. Aos 21', Neeskens até fez gol, mas Rensenbrink, que cruzara a bola, estava impedido. E finalmente, aos 25', o 2 a 0 da Laranja: após um escanteio rebatido por Carnevali, Ruud Krol chutou forte na sobra. A bola passou por todos na área até estufar as redes.

Era injusto dizer que a Argentina estava retraída. Quando tinha a bola, a seleção alviceleste tentava acelerar contra-ataques - como fez aos 28', quando Carlos Squeo tabelou com Yazalde, chutou e forçou escanteio, que o goleiro Jan Jongbloed rebateu. Além do mais, era inegável o esforço que o meia-direita Enrique "Quique" Wolff fazia em campo, sendo quem mais aparecia entre os argentinos. Mas a defesa sul-americana se abalava à menor pressão. Basta lembrar um símbolo daquele jogo - e daquela Holanda: aos 20', Wolff cobrou falta (cometida por Haan), e quando a bola bateu na barreira holandesa, todos os jogadores dela foram pressionar até roubarem a bola. Momento imortalizado na foto abaixo. E também numa história vivida entre dois jogadores argentinos, ainda no 1º tempo.. Na hora de cobrarem tiros de meta, ora Carnevali fazia isso, ora os zagueiros se encarregavam da tarefa. Capitão da Argentina, Roberto Perfumo (1942-2016) - apelidado "El Mariscal" ("O Marechal"), nome histórico de Racing e Cruzeiro, zagueiro muito técnico - notou que Carnevali se apressava demais. E acalmou o goleiro. Algumas fontes dizem que Perfumo foi calmo, falando coisas do tipo "podia estar pior". Outras apontam que ele foi mais enfático com Carnevali: "Calma, quer que façam oito gols na gente?!". O fato é que o 2 a 0 podia estar bem pior para a Argentina. Para a Holanda, não podia estar melhor.

A pressão que a Holanda fez, apenas para recuperar a bola após uma cobrança de falta da Argentina na barreira, simboliza a volúpia da equipe (Sérgio Sade/Abril Imagens/Arquivo Placar)

Faltas e posse de bola

Ainda no primeiro tempo, além da pressão e da ofensividade, outra característica da Holanda na Copa de 1974 ficou clara: sim, aquele time se valia das faltas para parar jogadas - até para a defesa não ser tão testada. Tanto que a Holanda fez mais faltas do que a Argentina na partida (17 contra 11). E começou a fazer isso já no primeiro tempo, para impedir que o adversário ousasse mais do que tentou timidamente. Ruud Krol que o diga: aos 31', o lateral esquerdo entrou duro em "Quique" Wolff. Falta revidada, de certa forma, pelo zagueiro Ramón Heredia, que derrubou Neeskens aos 37', com violência tamanha que o meio-campo precisou ser atendido. Mas isso foi no primeiro tempo. No segundo, a Holanda mostraria outra coisa.

Até porque a Argentina passou por mudanças, com a entrada do zagueiro Rubén Glaria no intervalo. E melhorou, impedindo mais a Holanda de chegar ao ataque. Tentando sair mais para o jogo, os argentinos tiveram a entrada de mais um atacante - um jovem de 20 anos em 1974, chamado Mario Kempes, que seria mais importante contra a Holanda na Copa de 1978 (mas essa já é outra história). As chances laranjas vieram só em bolas altas, no começo do segundo tempo. Aos 47', Cruyff cobrou falta e Neeskens cabeceou para fora; aos 51', Rensenbrink cruzou, Carnevali antecipou a saída do gol e pegou. Mas foi aos 64', quando Perfumo saiu com a bola dominada até a área da Holanda, e só Arie Haan o desarmou, que a Holanda notou precisar de algo para impedir que a Argentina "gostasse do jogo". Ainda mais porque a chuva pesada sobre Gelsenkirchen, iniciada por volta dos 65', impediria a tremenda velocidade vista na etapa inicial.

Então, a Laranja apostou na posse de bola. Cadenciou o jogo, com Van Hanegem e Rijsbergen aparecendo um pouco mais, sempre mantendo a bola nos pés. Contou com um Cruyff crescendo ainda mais do que no primeiro tempo, comandando posicionamentos, apontando sempre aos colegas como a jogada deveria seguir, sendo uma "eminência parda" laranja de tão importante que era para aquele time. Tanto que partiu do camisa 14 - já encharcado de chuva, como todos os outros - a outra chance holandesa, após muito tempo: Johan puxou contra-ataque, chegou à área com a bola, mas Carnevali saiu do gol e rebateu a conclusão dele. E partiu dele o cruzamento para o terceiro gol - do jogo e de Johnny Rep na Copa: aos 73', Cruyff cruzou, e Rep passou por trás da marcação, aparecendo na pequena área e cabeceando sem que Carnevali pudesse fazer muito. Um gol muito comemorado pela comissão técnica, nas imagens que a tevê mostrou.

Com seu gol, Johnny Rep definiu de vez que a Holanda venceria a Argentina, minimizando de vez as tentativas alvicelestes (Masahide Tomikoshi)

Voltava na reta final o domínio inquestionável da Holanda - até porque a Argentina ficaria com dez em campo: já com as duas substituições permitidas na época feitas, a seleção sul-americana perdeu Roberto Telch, machucado seriamente aos 35 minutos, saindo de maca. Depois, vieram mais chances. Aos 81', Wim Suurbier cruzou, e a bola passou perto da trave. No minuto seguinte, Krol (que também apareceu mais no segundo tempo) chutou de fora e para fora. Aos 86', Cruyff quase marcaria, se não estivesse impedido. O capitão holandês faria o segundo gol só nos acréscimos: após tabelar com Jansen, Van Hanegem finalizou, Carnevali (o goleiro argentino se esforçou muito) rebateu, e o camisa 14 completou de cabeça, de primeira, quase sem ângulo.

Ótimo complemento para a melhor atuação de Cruyff naquela Copa, provavelmente - a tal ponto que Van Hanegem reconheceu, à revista Voetbal International: "Eu achava que Cruyff era um dos melhores jogadores de todos os tempos. Eu estava errado. Ele é o melhor. Ele é imprevisível". Era também a melhor atuação da Holanda naquela Copa. Tão melhor que a revista El Gráfico, talvez o mais histórico veículo vinculado a futebol na Argentina, reconheceu: "A Holanda passou por cima de nós". E a maioria da imprensa internacional também bradava coisas como "Depois do jogo de quarta-feira, só um time já se pode dizer na final: a Holanda" (Daily Express, jornal inglês).

Era o maior momento do Futebol Total, em termos de seleção.


COPA DO MUNDO FIFA 1974 - SEGUNDA FASE - GRUPO A

Holanda 4x0 Argentina

Data: 26 de junho de 1974
Local: Parkstadion (Gelsenkirchen)
Árbitro: Bob Davidson (Escócia)
Gols: Johan Cruyff, aos 11' e aos 90' + 1, Ruud Krol, aos 25', e Johnny Rep, aos 73'

HOLANDA
Jan Jongbloed; Wim Suurbier (Rinus Israël, aos 84'), Arie Haan, Wim Rijsbergen e Ruud Krol; Wim Jansen, Willem van Hanegem e Johan Neeskens; Johan Cruyff; Robert Rensenbrink e Johnny Rep. Técnico: Rinus Michels

ARGENTINA
Daniel Carnevali; Enrique Wolff, Ramón Heredia, Roberto Perfumo e Francisco Sá; René Houseman (Mario Kempes, aos 63'), Carlos Squeo, Rubén Ayala (Rubén Glaria, aos 46') e Roberto Telch; Héctor Yazalde e Agustín Balbuena. Técnico: Vladislao Cap

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