sexta-feira, 27 de novembro de 2015

O médico e o monstro

Luuk de Jong voltou à Holanda e voltou a marcar. Sorte do PSV (Rene Bouwman)
Dr. Jekyll. Mr. Hyde. A maioria das pessoas que saiba o básico de literatura já ouviu falar da história escrita por Robert Louis Stevenson (lançada em 1886, e mais conhecida aqui no Brasil como “O médico e o monstro”). Na história, um advogado amigo de Dr. Jekyll investiga ocorrências incomuns entre este e a misteriosa figura de Mr. Hyde – para, depois, a história enveredar pelo assunto da dupla personalidade. Eis a principal descrição do PSV na temporada atual do futebol holandês: dupla personalidade.


A equipe de Eindhoven vive dois momentos claramente distintos, embora tenha um elenco de capacidade técnica reconhecidamente razoável. No Campeonato Holandês, por desatenções várias (principalmente na defesa), tropeçou duas vezes nas últimas quatro rodadas, e está na terceira posição, um ponto atrás do Feyenoord. Na Liga dos Campeões, de nível técnico bem mais difícil do que a Eredivisie, os Eindhovenaren não enchem os olhos, propriamente. Mas mostram precisão e segurança suficientes para só dependerem deles na disputa por uma vaga nas oitavas de final do torneio continental.

Claro, a situação da equipe é até desejável na liga nacional. Contudo, não só os tropeços são prejudiciais, por serem contra equipes do meio ou da parte de baixo da tabela. Por exemplo: sábado passado, pela 13ª rodada, houve empate em 2 a 2 com o Willem II, 16º colocado. Na rodada anterior, a vitória sobre o Utrecht (3 a 1, em Eindhoven) teve períodos de incerteza. E nada simboliza mais essa montanha russa do que os 6 a 3 sobre o De Graafschap, vistos na 11ª rodada.

Jogando contra o último colocado do campeonato, em 31 minutos os Boeren fizeram 3 a 0. Partida definida, certo? Errado: no minuto final do primeiro tempo, o escocês Andrew Driver fez o primeiro do De Graafschap. Está certo que Driver empurrou Andrés Guardado antes de dominar a bola e marcar o gol, mas o árbitro deixou passar. E o PSV não teria desculpas diante do que se viu no segundo tempo: motivado pela boa atuação de outro atacante, o belga Nathan Kabasele, os Superboeren foram à frente e conseguiram o empate em menos de vinte minutos. Em jogadas que tiveram participação (melhor dizendo, não tiveram) horrível do miolo de zaga dos PSV’ers.

O desastroso empate só foi evitado porque o ataque do time treinado por Phillip Cocu apareceu. Dois minutos após os mandantes fazerem 3 a 3, Luuk de Jong marcou o quarto gol, e depois Luciano Narsingh e Gastón Pereiro definiram o alívio. O triunfo fora conseguido, mas a impressão deixada fora bem preocupante. E Cocu expressou isso à FOX Sports holandesa, após aquele jogo maluco: “É inacreditável que às vezes nos coloquemos em situações tão ruins”.

Não era a primeira vez em que desatenções haviam cobrado o preço: na rodada anterior, recebendo o Excelsior, a equipe vencia por 1 a 0, mas tomou o gol de empate dos Kralingers no último lance do jogo, aos 49 minutos do segundo tempo. E nem seria a última: na rodada posterior, contra o Utrecht, a equipe levou o empate logo no início da etapa final. Passou de novo à frente, mas isso não significou que as falhas haviam acabado: Luuk de Jong perdeu o sétimo dos últimos onze pênaltis que o time já teve em 2015. Pelo menos, amenizou o erro da melhor maneira possível, fazendo o gol que definiu os 3 a 1.

Contra o Willem II, foi quase a mesma coisa. No primeiro tempo, atuação segura e placar aberto rapidamente (com Pereiro, aos 11 minutos). No segundo tempo, um período de “apagão”, e os Tricolores viraram para 2 a 1, com Erik Falkenburg marcando duas vezes. Novamente, De Jong teve de salvar a pátria, igualando de novo o placar. Ainda assim, o tropeço permitiu que o Feyenoord retomasse a segunda posição da Eredivisie, ao golear o Twente no domingo (5 a 0).

Por isso, quando se vê o PSV jogando pela Liga dos Campeões, salta aos olhos a alternância de desempenho. Na primeira parte da fase de grupos, excetuando-se a vitória sobre o Manchester United (que ainda teve a lesão de Luke Shaw como atenuante), os resultados foram “esperados”: derrotas para CSKA Moscou e Wolfsburg. Mas nos jogos “de volta”, o que se vê é um time seguro, que não quer jogar mais do que sabe. Concentrado ao extremo, para evitar erros bobos como os vistos no Holandês. E eficiente, para aproveitar as raras chances que tem.  Foi assim ao receber o Wolfsburg no Philips Stadion: jogando nos contra-ataques, o PSV aproveitou os espaços que os Lobos deram para fazer 2 a 0 e reanimar-se na disputa por um lugar nas oitavas de final.

Finalmente, na quarta passada, em Old Trafford, o time não só aguentou muito bem os momentos de pressão do Manchester United no ataque (com o goleiro Jeroen Zoet como destaque), mas animou-se mais nos contra-ataques do segundo tempo, e talvez até pudesse ter vencido. Seja como for, o 0 a 0 manteve a condição de só depender de uma vitória simples contra o CSKA para garantir a vaga.

E o mais curioso é que as atuações dos Boeren na Liga dos Campeões dão até mostra mais fiel das qualidades da equipe, no 4-3-3. Zoet, considerado goleiro de atuações irregulares durante a temporada, fechou o gol contra o United; Jeffrey Bruma e Héctor Moreno fazem uma dupla de zaga dura, que pode sofrer quando pressionada, mas que cumpre seu papel quando concentrada; Joshua Brenet, improvisado pela esquerda após lesão de Jetro Willems, aos poucos se acostuma mais à posição; e Santiago Arias oferece constante opção ofensiva pela lateral direita - às vezes, ofensiva até demais.

No meio-campo, Jorrit Hendrix aos poucos desenvolve bem sua capacidade de marcação, enquanto Andrés Guardado continua sendo o centro do time. Não há jogada que não passe pelos pés do mexicano, para começar a organizar as ações. E o auxílio de Guardado na marcação libera Davy Pröpper para ser o “elemento-surpresa”, chegando ao ataque e armando bem as jogadas e os contragolpes - coisa que fez contra o United, quando foi eleito um dos melhores do jogo. 

No ataque, lamentáveis problemas particulares ainda tiram Maxime Lestienne do elenco: após a morte repentina da mãe, poucas horas antes do clássico contra o Ajax, pela Eredivisie, o belga voltou a seu país, para cuidar da família. E no início desta semana, após longa enfermidade, foi a vez do pai falecer. Ainda assim, Lestienne já prometeu que retorna na próxima semana, após a justa liberação que recebeu do PSV. 

Com relação aos que ficaram, Luuk de Jong cumpre muito bem o papel de goleador: é o artilheiro da Eredivisie, com 11 gols. E sua eficiência nos cabeceios e na função de pivô fazem crer que ele passa pelo mesmo processo que Klaas-Jan Huntelaar encontrou quando chegou ao Schalke 04: após fracassar em campeonatos maiores, De Jong voltou a um torneio mais adequado a seu nível técnico. E faz gols a ponto de sonhar com uma boa e necessária competição com Bas Dost pelo posto de atacante nas convocações da seleção holandesa - posto que deve ser de titular em pouco tempo, dada a idade avançada de Robin van Persie e de Huntelaar.

Pelas pontas, na direita, o uruguaio Gastón Pereiro superou o período de adaptação. E desde a ótima atuação na vitória sobre o Ajax, cresceu a ponto de já ser o titular, desbancando Luciano Narsingh. Na esquerda, uma experimentação deu certo: brigado com Phillip Cocu no início da temporada, Jürgen Locadia quase deixou o PSV. Já tinha até um sonho: tomar o mesmo caminho de Memphis Depay, rumo ao Manchester United ("É minha primeira opção", comentou à revista Voetbal International). Só que o tempo passou, Locadia se acertou com a direção e com o técnico, e recebeu uma chance na ponta. E ali está se dando bem, com porte físico avantajado e habilidade decisiva, como na vitória por 3 a 1 sobre o Twente.

Ao fim e ao cabo, além de vencer o AZ pela 14ª rodada, no próximo domingo, o PSV tem uma obrigação maior na temporada. Manter na Eredivisie a concentração vista na Liga dos Campeões. Que o tem colocado muito perto de ser o primeiro holandês a chegar às oitavas de final da Champions desde 2006/07. Aliás, nunca esteve tão perto.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 27 de novembro de 2015)

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