quarta-feira, 29 de abril de 2020

Pieters Graafland, o melhor antes do melhor

Pieters Graafland foi o grande goleiro da Holanda entre as décadas de 1950 e 1960 (Arquivo ANP)

Certo, quando se fala em goleiros vindos da Holanda, o nome considerado melhor deles é Edwin van der Sar - e é uma escolha justificada. O que não quer dizer que nenhum outro arqueiro dos Países Baixos tenha sido marcante antes do atual diretor geral do Ajax. Vários nomes podem ser citados. Nos anos 1990, Ed de Goey; nos anos 1980, Hans van Breukelen; nos anos 1970, Piet Schrijvers, Jan van Beveren e até mesmo o discutível Jan Jongbloed... e um dos principais guarda-metas da história holandesa pré-Van der Sar, em clubes e seleções, faleceu nesta terça-feira, aos 86 anos: Eddy Pieters Graafland, o grande arqueiro da Holanda entre os anos 1950 e 1960.

A carreira de "Eddy PG", como ficou mais conhecido ao longo dos 20 anos de carreira, tinha tudo para ser extremamente ligada ao Ajax. Afinal, ele nasceu em Amsterdã, em 5 de janeiro de 1934, e já aos 11 anos de idade era sócio do clube - a idade mínima era 12 anos, é verdade, mas o pai possibilitou a "exceção", membro da direção Ajacied que era. Bastou: lá Pieters Graafland foi jogando, nas categorias de base. E lá chegou ao time principal, em 1950, jogando - e paralelamente desenvolvendo uma carreira na área audiovisual (o futebol na Holanda era amador até 1956).

Alto, Pieters Graafland foi ganhando carisma, ganhando espaço no time do Ajax... e viveu seu primeiro auge em 1957. Não só por ser titular absoluto do primeiro título holandês do clube de Amsterdã em dez anos, mas também por ter imposto no gol sua firmeza, sua calma, sua capacidade de defender pênaltis (sempre andava com um caderninho, trazendo batedores potenciais dos adversários e o canto em que preferiam bater). A ponto de também ganhar sua primeira chance na seleção holandesa, estreando num amistoso contra a Bélgica, em 28 de abril, naquele ano.

Na Laranja, o goleiro ainda demorou um pouco para assumir a titularidade, se alternando em seus primeiros anos de seleção com o veterano Frans de Munck. Mas em clubes, Pieters Graafland já provara seu valor. Valor tão grande que proporcionou uma das transferências mais faladas da história do futebol holandês, em 1958. Afinal de contas, mudar de Ajax para Feyenoord sempre será algo polêmico, em qualquer década. Será ainda mais falado se se trata da transferência mais cara da história do país. Foi exatamente o que aconteceu com Pieters Graafland: por 134 mil florins, maior quantia já gasta até então dentro do futebol holandês, o goleiro rumou do Ajax ao arquirrival Feyenoord, sem escalas.

Nos pênaltis ou na bola alta, Pieters Graafland (pulando à esquerda) foi soberano na meta do Feyenoord e da Laranja na década de 1960 (Arquivo ANP)

Se fracassasse, poderia ter sido o fim. Como o próprio Pieters Graafland celebrou, "foi só o começo: quando fui para lá, só tive momentos bons". Porque a virada de década - e os anos 1960 - marcaram sua melhor fase. No Feyenoord, foram quatro títulos holandeses (1960/61, 1961/62, 1964/65 e 1968/69) e duas Copas da Holanda (1964/65 e 1968/69 - configurando duas duplas coroas para o Stadionclub). Mais do que isso: sem Frans de Munck para disputar posição, "Eddy PG" assumiu de vez a titularidade do gol na seleção da Holanda. Em tempos nos quais a seleção ainda era de segundo escalão, esteve em momentos sofridos - como a queda para Luxemburgo, nas eliminatórias da Euro 1964. Ainda assim, Pieters Graafland era um dos titulares absolutos da Laranja naquela década, entre 1960 e 1966.

E mantinha boa dose de seu respeito, dentro e fora de campo. Aliás, um lado até influenciava o outro. Em 1962, o seu fã-clube oficial decidiu iniciar uma votação sobre qual havia sido o melhor jogador do Campeonato Holandês na temporada 1962/63. Outro nome foi o mais votado - o meio-campista Reinier Kreijermaat, colega de Pieters Graafland no Feyenoord -, mas a semente foi colocada ali. A partir de 1966, a emissora de tevê NOS e a revista Revu assumiram o comando da votação. E a eleição organizada pelo fã-clube do goleiro deu origem à premiação ao melhor jogador da temporada da Eredivisie. Por sinal, já aos 33 anos, em 1967, Pieters Graafland foi o primeiro goleiro a ser escolhido o melhor do Holandês - recebendo seu troféu ao lado de um novato Johan Cruyff, eleito a revelação daquela temporada, aos 20 anos.

O melhor jogador da Eredivisie em 1966/67 não foi Cruyff (à esquerda), foi Pieters Graafland (Arquivo ANP)

O tempo passou, e naturalmente Graafland foi decaindo. Parou com a seleção em 1967, após 47 jogos, abrindo espaço para a geração de Jan van Beveren, Piet Schrijvers e "Pim" Doesburg. No Feyenoord, a partir de 1968, foi cedendo a titularidade progressivamente a outro Eddy, o Treijtel (que seria terceiro goleiro da Holanda na Copa de 1974). Ainda assim, sua experiência era inquestionável e valiosa. A tal ponto que, quando o Feyenoord chegou à final da Copa dos Campeões em 1969/70, para enfrentar o Celtic, o técnico austríaco Ernst Happel nem se importou com a titularidade habitual de Treijtel: perguntou a Pieters Graafland, 36 anos então, se ele se intimidaria ao jogar a decisão. O já veterano pediu umas semanas para pensar, e mesmo com a esposa Teddy receosa, deu a resposta positiva a Happel. Pois bem: Eddy PG entrou, jogou, e na última partida de sua carreira, ajudou o Feyenoord a ser o primeiro clube dos Países Baixos a ser campeão europeu, em 6 de maio de 1970.

Carreira encerrada nos campos, carismático que era, Pieters Graafland seguiu sua vida na área de negócios. De quebra, mostrou um tesouro que colecionara ao largo da carreira de jogador: amante da área audiovisual, com uma câmera portátil, o ex-goleiro filmara eventos esportivos importantes no país ao longo dos anos 1950 e 1960 - parte do arquivo foi doada à televisão holandesa, e exibida em 2003. Além do mais, conseguira o feito de se fazer respeitado tanto no Ajax quanto no Feyenoord. Principalmente em Roterdã, é verdade: os vários títulos lá conquistados o transformaram num ídolo do Stadionclub. E ele sabia disso, como celebrou certa vez: "Quando eu leio agora notícias da época, é que eu me dou conta: vivi tempos de auge, no Feyenoord e na seleção".

Está certo, Edwin van der Sar é quase inquestionável como maior goleiro a ter saído da Holanda. Mas outros fizeram por merecer reconhecimento no país. Eddy Pieters Graafland foi um desses "melhores" antes do melhor.

Eddy Pieters Graafland
Data de nascimento: 5 de janeiro de 1934, em Amsterdã
Morte: 28 de abril de 2020
Clubes: Ajax (1950 a 1958) e Feyenoord (1958 a 1970)
Seleção: 47 jogos e 73 gols sofridos, entre 1957 e 1967

sábado, 25 de abril de 2020

O fim triste e a desordem

O diretor geral Mark Rutte mostrou ar triste desde antes da reunião com os clubes. Simbolizou bem as trapalhadas que encerraram a temporada 2019/20 do futebol nos Países Baixos (ANP)

Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, após o então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain assinar o Pacto de Munique com Adolf Hitler, um acordo de não-agressão mútua, Winston Churchill cunhou as célebres palavras que se tornariam verdade: "Entre a desonra e a guerra, você escolheu a desonra, e terá a guerra". Claro que definir os destinos de um campeonato de futebol é algo muito menos grave (embora em meio a um cenário, sim, grave, como o cenário em que a pandemia do novo coronavírus colocou o planeta). Entretanto, o modo como a federação holandesa resolveu as coisas para a primeira e a segunda divisão na temporada 2019/20 faz crer: entre um fim triste, arrastado, e a desordem, ela escolheu a desordem - e terá um fim triste, o que é bem pior.

E a postura da federação holandesa já era negativa, antes mesmo da reunião desta sexta, em videoconferência com os 36 clubes (18 da Eredivisie, 18 da Eerste Divisie - a segunda divisão). Num pronunciamento na terça passada, o premiê Mark Rutte anunciou que a Holanda ficaria sem eventos públicos, no mínimo, até 1º de setembro. Depois, na quinta, a UEFA flexibilizou sua postura aos países filiados na quinta - quem quisesse, poderia cancelar sua liga sem prejuízo das vagas nas competições continentais ou mesmo ameaças de sanções. E a KNVB partiu para o encontro cibernético já sabendo: viria chumbo grosso. O diretor esportivo Mark Rutte reconheceu, falando à imprensa nesta sexta: "É um dia muito negativo, nunca aconteceu na história do futebol profissional. Não temos regulamentos ou jurisprudências a nos ajudar. Uma coisa é certa: não há solução que vá agradar a todos. Aqui e ali teremos de evitar tristezas e situações dolorosas". 

De fato: num cenário de exceção como o atual, jamais haveria solução que contentasse completamente a todos. Porém, até pelo estatuto da entidade - que prevê a decisão final apenas e tão somente para o Departamento de Futebol Profissional -, esperava-se mais peso da federação. Que, no entanto, preferiu dividir a responsabilidade com os clubes: deixou a eles a opção de votos para as duas decisões necessárias. Nem tanto para a parte de cima na tabela: com a recomendação da UEFA, já se imaginava que as vagas em competições europeias seriam distribuídas em função da posição na tabela quando o campeonato parou. Mas, sim, para a parte de baixo: haveria rebaixamento/promoção?

Era a senha para o desastre: clubes como o Ajax já haviam se colocado a favor do encerramento simples do campeonato (houve até conversa dizendo que o Ajax pensava em deixar a Eredivisie caso ela seguisse). Heerenveen e PSV, pela vez deles, nem queriam muita discussão - Cees Roozemond, diretor geral do clube da Frísia, disse que "não podia definir o destino de um co-irmão", enquanto Toon Gerbrands, diretor-geral dos Eindhovenaren, disse que "sequer votou". Já os diretamente interessados - Utrecht, Willem II em cima; Fortuna Sittard, ADO Den Haag e RKC Waalwijk abaixo - queriam saber quais seus destinos.

Numa votação já desorganizada (a caixa de mensagens de um dirigente estava lotada, atrasando o processo), o resultado foi: 16 clubes querendo o rebaixamento/acesso, 9 em neutralidade e 9 contrários às quedas/promoções. Aí veio a pior decisão: arbitrariamente, a federação holandesa colocou neutros e contrários no mesmo balaio. 18 a 16: nada de rebaixamento, nada de acesso, nada de campeões na Eredivisie e na segunda divisão da temporada 2019/20.

Sim, torcedores do Willem II foram às ruas para festejarem a vaga na Liga Europa (Jan van Eijndhoven)

Claro, bastou para o começo das revoltas. Principalmente do Utrecht, o grande prejudicado: estava perto de uma disputa por vaga na Liga Europa (fosse pela final da Copa da Holanda em que enfrentaria o Feyenoord, fosse pelos play-offs), e viu as duas vagas caírem no colo de Feyenoord e Willem II. Torcedores dos Utregs queimaram camisas da seleção, em represália contra a KNVB; o presidente Frans van Seumeren anunciou em nota que o clube vai à Justiça e à UEFA querendo mudar o rumo das coisas (e segundo advogados, com certa chance de sucesso). O AZ, mesmo na Liga dos Campeões - segundo colocado que era -, também se disse desapontado com uma resolução que, indiretamente, privilegiou o Ajax. Mesmo o Feyenoord, na Liga Europa, sequer comemorou: "Ainda é cedo demais, e nada está decidido", se acautelou o diretor Mark Koevermans. Só o Willem II comemorou a vaga na Liga Europa: alguns torcedores até ousaram ir às ruas em Tilburg, dentro dos carros, para festejarem a reaparição dos Tricolores num torneio europeu, a primeira desde 2005/06.

Na parte de baixo da tabela, a mesma coisa: alívio nos "salvos" ADO Den Haag e RKC Waalwijk, ira no Cambuur, líder da segunda divisão - o técnico Henk de Jong falou na "maior vergonha da história do esporte holandês". E o Ajax, que "terminou" líder pelo saldo de gols, saiu pela tangente: o diretor geral Edwin van der Sar mordeu e assoprou com um "é chato terminar assim, mas é compreensível".

Talvez, o melhor resumo de tudo que se viu tenha vindo da boca de Adriaan Visser, o presidente do Zwolle - 15º colocado, o primeiro salvo na Eredivisie, com ou sem interrupção: "Ainda bem que nosso clube estava fora do circo". Um circo montado pela incompetência da KNVB, a federação holandesa. Que escolheu a desordem, sem considerar possibilidades de encerramento em campo (ainda que fragilizadas pela incerteza da pandemia) - e teve um fim triste e forçado para a temporada 2019/20.