sexta-feira, 3 de março de 2017

Abrindo o caminho

O lance do erro que Zoet que definiu o clássico: se não fosse a tecnologia... (Pim Ras)

A imagem correu o mundo nesta semana, mas convém lembrá-la novamente, aqui: domingo, 26 de fevereiro, De Kuip, Roterdã. Empatado em 1 a 1, válido pela 24ª rodada do Campeonato Holandês, o clássico entre Feyenoord e PSV encaminhava-se para um final dramático: caso o Ajax conseguisse a esperada vitória sobre o Heracles Almelo (e conseguiu: 4 a 1 para os Amsterdammers), a vantagem do Feyenoord na liderança da Eredivisie cairia para três pontos – o que obviamente reabriria a disputa pelo título holandês.

Até que aos 37 minutos do segundo tempo, Bilal Basaçikoglu (substituto de Eljero Elia) cobrou escanteio, e o zagueiro Jan-Arie van der Heijden cabeceou firme para a meta. O goleiro Jeroen Zoet conseguiu manter a bola em cima da linha, impedindo o gol num primeiro momento. Aí deu-se o erro incrível do arqueiro do PSV: convencidos de que não havia sido gol, os jogadores do Feyenoord já voltavam frenéticos, quando Zoet abraçou a bola para repô-la em jogo, sendo que seu tronco estava atrás da linha do gol. Foi o bastante para soar o sinal no aparelho que o árbitro Bas Nijhuis trazia em seu bolso: a bola tinha entrado. Nijhuis prontamente apontou o gol. 

Os jogadores do Feyenoord puderam correr atrás de Van der Heijden, que saiu comemorando como se fosse o autor do gol, antes da confirmação de que Zoet havia cometido um gol contra. Pouco depois, a transmissão da FOX Sports holandesa deixava claro que a bola passara totalmente da linha do gol – por muito pouco, mas passara, graças ao erro do goleiro do PSV. Era o gol da vitória que faria o Feyenoord passar da “primeira fase” de seu vestibular: não só mantinha a vantagem na liderança (cinco pontos em relação ao Ajax), mas também deixava um rival praticamente fora da disputa do título – agora, o time de Eindhoven está onze pontos atrás do Stadionclub.

Todavia, a vitória no fervilhante clássico tornara-se menos importante até do que o marco tecnológico. Uma partida importantíssima para os rumos do Campeonato Holandês havia sido decidida por meio da tecnologia. E rendia a primeira e necessária prova de que a aposta na tecnologia como meio de auxílio ao árbitro, cada vez mais disseminada no futebol holandês, poderia dar certo e merecia mais aprofundamento. Mais do que isso: pode ser uma forma do futebol holandês representar a vanguarda para o mundo, como algumas vezes já fez.

Essa capacidade ficou clara em outro fator: a sabedoria de todos os envolvidos em reconhecer que, sem a tecnologia do “olho-de-gavião”, um gol válido teria sido deixado de lado. Embora a demora na validação do gol de Van der Heijden pudesse render alguma polêmica, ela não resistiu. O próprio Zoet reconheceu: “Azar o meu, e sorte do Feyenoord, porque eles tinham a tecnologia aqui”. Bas Nijhuis mostrou humildade, ao reconhecer que os aparatos o haviam ajudado a tomar a decisão certa: “Estou muito aliviado”.

É até curioso pensar que esse fascínio que a Holanda tem mostrado pela introdução da tecnologia no auxílio à arbitragem tenha se dado mais por birra do que por qualquer outra coisa. Afinal de contas, Michael van Praag, presidente da KNVB (federação holandesa), foi apoiador de primeira hora, quando o International Board anunciou que, enfim, começaria a abrir caminho para o árbitro assistente de vídeo. Não deixava de soar como se Van Praag estivesse dizendo a Joseph Blatter, então ainda presidindo a Fifa (e a quem o holandês se opunha cada vez mais), que ele desejava a modernidade e a transparência.

Porém, o gosto pelo brinquedo foi tamanho que superou quaisquer pinimbas políticas – até porque Blatter se tornou carta fora do baralho, após maio de 2015 (e ficou claro que Van Praag não tinha grandeza política para realizar a aspiração de se tornar presidente da Fifa). E já na temporada passada, extraoficialmente, a FOX Sports holandesa – detentora dos direitos de transmissão – começou a dar subsídio para os testes da federação: o quinteto de arbitragem atuava, e um trio de arbitragem assistia aos jogos no caminhão de edições de imagem, no próprio estádio, com câmeras e mais câmeras à disposição.

Não houve grande influência, mas o primeiro passo já havia sido dado. E nesta temporada, a KNVB decidiu usar o “árbitro assistente de vídeo” nas partidas da Copa da Holanda – e em alguns estádios, adotar a tecnologia para lances em que a bola tenha ou não passado da linha. Deu certo, como mostrou o lance do domingo passado em Roterdã. E serviu para que o diretor de futebol profissional, Gijs de Jong, se orgulhasse no início desta semana, em sua coluna no site da federação: “Até onde se sabe, somos o único país onde pode se testar [o auxílio tecnológico à arbitragem] em jogos oficiais, junto da MLS. (...) O esporte melhora com isso, e estou orgulhoso que nós, na Holanda, estejamos um passo à frente neste desenvolvimento”.

De Jong ainda lembrava dos jogos pelas semifinais da Copa da Holanda, que ocorreriam nesta semana: “Pela primeira vez, testaremos a videoarbitragem não num caminhão perto dos estádios em Alkmaar e Roterdã, mas num estúdio em Hilversum”. Mal sabia o diretor que uma das partidas da KNVB Beker daria novos motivos para orgulho. Não o 2 a 1 sobre o Sparta Rotterdam, que levou o Vitesse à final do próximo dia 30 de abril. Mas o 0 a 0 do AZ contra o Cambuur, nesta quinta. Porque, aos 49 minutos do segundo tempo, Stijn Wuytens marcou o gol que daria a vitória ao time de Alkmaar. Daria, se Levi Garcia não tivesse cometido falta no goleiro do Cambuur, Leonard Nienhuis. Juiz no campo, Kevin Blom não viu, validando o gol. No estúdio, Dennis Higler viu a falta de Garcia, aconselhou Blom, e este o anulou. E o AZ precisou esperar até os pênaltis para eliminar o Cambuur (3 a 2 nas cobranças, com Tim Krul defendendo o último chute) e passar à final da copa holandesa.

Claro, a Holanda ainda tem muito o que aprimorar. Quando nada, porque a própria decisão da anulação do gol de Wuytens demorou bastante. Sem contar que a própria federação já advertiu: a Amsterdam Arena não contará com a tecnologia do “olho-de-gavião” no clássico ainda mais decisivo contra o Feyenoord, em 2 de abril. Ainda assim, o objetivo continua: a federação pretende implantar o "árbitro auxiliar de vídeo" em todos os jogos da Eredivisie, a partir da temporada 2018/19. Enfim: não dá para não reconhecer que, se é questão de tempo para a tecnologia entrar de vez no auxílio à arbitragem, a Holanda está abrindo o caminho nesse aspecto. Talvez, sendo até pioneira.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 3 de março de 2017)

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