domingo, 27 de maio de 2018

Os 30 anos da Tríplice Coroa do PSV: uma vingança involuntária

Este grupo do PSV começou a temporada desacreditado. O técnico Guus Hiddink, sem muita experiência prévia. Pois foram estes da foto os responsáveis por dar o impulso decisivo na história do clube de Eindhoven, com a Tríplice Coroa que ganharam (Foto: Paul Vreeker/Arquivo ANP)
Contra o ADO Den Haag, na penúltima rodada do Campeonato Holandês desta temporada 2017/18 - já conquistado -, o PSV jogou estreando seu novo uniforme de visitante: todo branco, com pequenos detalhes em azul. O motivo do modelo: foi vestindo um exatamente igual que o clube de Eindhoven conquistou a Copa dos Campeões, há 30 anos, contra o Benfica. Mais do que isso: com o título europeu, os Boeren conseguiam a Tríplice Coroa – campeões nacionais, no campeonato e na copa, e a conquista continental (ainda hoje, a Holanda é o único país europeu com dois clubes que conseguiram a Tríplice no futebol). Atuação histórica. E até impressionante, tendo em vista o que o PSV passou do começo da temporada 1987/88 até o glorioso fim naquele 25 de maio de 1988, no então Neckarstadion, em Stuttgart, local da final europeia.

Gullit sai. E nem o bicampeonato diminui a crise 

A rigor, o projeto de tornar o PSV um clube definitivamente forte estava estabelecido desde que Jacques Ruts assumiu a presidência, em 1983. Justo: mesmo tendo conquistado a Copa Uefa em 1977/78, e já com quatro títulos holandeses até aquele ano, os Boeren nem de longe eram conhecidos mundialmente, ou mesmo respeitados, como o Ajax ou o Feyenoord. Tratava-se de um clube relativamente respeitável, até tradicional, até grande, mas não chamava a atenção fora das fronteiras nacionais.

Ruts esclareceu o projeto, em declaração ao livro “PSV 1988: reconstructie van een gouden jaar” (“Reconstruindo um ano de ouro”), do jornalista Jeroen van den Berk, lançado há uma década: “Tínhamos três variantes que poderiam ser escolhidas, incluindo as projeções financeiras a partir delas. A primeira era: continuar do jeito que estávamos, o que significava que periodicamente venceríamos títulos nacionais, mas que em termos internacionais raramente nos destacaríamos. A segunda variável já era mais ambiciosa: num espaço de três anos, ganharmos a Eredivisie ou a Copa da Holanda uma vez, e chegarmos alguma vez às quartas de final da Copa dos Campeões. O terceiro cenário previa que o PSV se tornaria um clube de ponta na Europa, jogando regularmente semifinais ou finais continentais. Então, escolhemos a segunda opção. Não só esportivamente, mas também por causa do aspecto organizacional”.

A seu lado, Ruts tinha os diretores Kees Ploegsma e Harry van Raaij. Ainda escolheu um experiente nome, Hans Kraay, para ser diretor técnico do clube, auxiliando o treinador Jan Reker. Já em 1984, o PSV trouxera um jogador que seria pilar na ascensão que viria: o goleiro Hans van Breukelen, voltando do Nottingham Forest. Na metade de 1985, o clube ainda garantiu mais experiência. Na defesa, deu ao lateral direito belga Eric Gerets a chance de recuperar espaço no futebol de alto nível. Gerets caíra em desgraça após a suspensão de um ano, sofrida por se envolver em caso de suborno quando jogava pelo Standard Liège: precisou deixar o Milan, onde jogava, e recomeçava o caminho no MVV Maastricht, campeão da segunda divisão holandesa em 1984/85. No meio-campo, viria o enorme ganho técnico da chegada de Frank Arnesen: vindo do Anderlecht, o dinamarquês chegava a Eindhoven com a função de ser a referência que já fora no Ajax. Por último, e mais importante, o PSV deu o pontapé decisivo para tornar o clube da Philips respeitável na Holanda: tirou do Feyenoord Ruud Gullit, já então cobiçado Europa afora pelo talento que começava a mostrar no ataque.

O projeto começou bem: em 1985/86, o clube trouxe para Eindhoven o quinto título holandês de sua história, com Gullit como o grande destaque na campanha. A conquista serviu para ousadias maiores na janela de transferências rumo à temporada 1986/87: o PSV enfraqueceu bastante os dois colegas no Trio de Ferro. Do Feyenoord, chegou o zagueiro dinamarquês Ivan Nielsen, voluntarioso na marcação. Mas seriam do Ajax os dois grandes ganhos técnicos para aquele time que se formava: o meio-campista Gerald “Vaantje” Vanenburg e, principalmente, o zagueiro Ronald Koeman. Sem muito espaço em Amsterdã, Koeman acharia no novo clube o espaço para se desenvolver e se tornar um dos melhores zagueiros da Europa.

Gullit foi o protagonista no bicampeonato holandês do PSV, em 1986/87. Mas preferiu sair rumo ao estrelato no Milan - e a saída foi conturbada (Paul Vreeker/Arquivo ANP)
Mas o PSV nada teria a comemorar na temporada 1986/87, a despeito do bicampeonato holandês. Mesmo com esse título, a campanha foi perturbada pela grande polêmica da transferência de Ruud Gullit para o Milan. No começo, ainda em 1986, as sondagens eram mais discretas – como em 19 de novembro, quando o recém-chegado mecenas Silvio Berlusconi e o diretor esportivo Adriano Galliani conversaram com o atacante num quarto do Amstelhotel, em Amsterdã, horas depois do atacante ter atuado pela Holanda no 0 a 0 contra a Polônia, pelas Eliminatórias da Euro 1988.

Em janeiro de 1987, o interesse começou a ficar claro. O jornal La Gazzetta dello Sport revelou que Gullit fora visto em Milão, passando por exames comandados por Giovanni Battista Monti, médico do Milan, numa noite. Como não havia mais voos para Amsterdã do aeroporto de Linate perto da meia-noite, quando tudo terminou, Gullit embarcou rumo a Bruxelas, e da capital belga foi direto para Eindhoven, para não perder o treino no PSV. Ao chegar a De Herdgang, o centro de treinamentos do clube, a imprensa holandesa já ansiava por suas declarações. Que desconversaram: “Sim, estive em Milão. Por quê? Isso é da minha conta. Talvez pelo futebol, talvez para comprar uma jaqueta nova, talvez para cortar o cabelo: escolham a razão. Já fui acompanhado por outros clubes na minha vida”. Indagado sobre o encontro com Berlusconi e Galliani em novembro de 1986, o jogador negou: “Conversa mole, nunca vi Berlusconi, só em fotos”.

Porém, aos poucos Gullit foi assumindo seu desejo de jogar num centro maior. Começou falando: “Eu ficarei muito triste se tiver de jogar a próxima temporada na Holanda”. Depois, Kees Ploegsma e Harry van Raaij receberam o contato do Milan. Finalmente, na edição da revista Nieuwe Revu lançada em 11 de março de 1987, o destaque do PSV abriu o jogo, com a dolorosa declaração aos jornalistas Frits Barend e Henk van Dorp: “Eu quero sair, eu preciso sair, porque já sei que o PSV nunca alcançará o topo da Europa. Não tenho mais nada a procurar aqui como jogador, parei meu desenvolvimento. Eu quero jogar futebol de alto nível, e no Milan posso fazer isso”. Respondendo antecipadamente às críticas, o jogador desmentiu ser mercenário: “Não é só pelo dinheiro. Claro que é importante, mas vem em segundo lugar. Não vou para a Itália por causa do dinheiro, mas pela promoção esportiva”.

Mas a crise dentro do PSV foi aberta mesmo quando Gullit direcionou as palavras a Hans Kraay – então, além de diretor técnico, treinando a equipe naquela temporada 1986/87: “Eu já escrevi uma carta dizendo como deveríamos jogar, mas vou parar por aqui. Já joguei como atacante, como meia-direita, como meio-campo. O time fica inseguro, e isso me tira do sério”. Hans Kraay fez menção de suspender Gullit, na reta final da disputa do título holandês, mas o presidente Jacques Ruts proibiu a sanção. Desprestigiado, Kraay pediu demissão. Às pressas, foi promovido ao comando do time principal do PSV um auxiliar, que ocupara a mesma função no De Graafschap em que já fora jogador: Guus Hiddink, 39 anos.

Por fim, o PSV ainda tentou aumentar o valor do passe de Gullit – que, por sua vez, ameaçou entrar na Justiça Desportiva holandesa. No fim de março, o clube capitulou, e o Milan acertou a compra de Gullit, por 16,5 milhões de florins, a maior transferência da história do futebol holandês até então. Mas a cizânia já havia sido instalada no grupo – que até concordava com o teor das críticas de Gullit ao trabalho que Hans Kraay desenvolvera, mas discordava do tom personalista do jogador.

Paralelamente, um importante jogador daquela equipe sofria. Hans van Breukelen passava por sérios problemas psicológicos. As críticas de torcedores e jornalistas o perturbavam, o goleiro cometeu algumas falhas na campanha do PSV, a titularidade na seleção chegou até mesmo a ser ameaçada (o reserva Joop Hiele jogou algumas partidas em 1987). Van Breukelen se recompôs com auxílio do psicólogo Ted Troost, o PSV também, e o bicampeonato holandês foi garantido com duas rodadas de antecedência. Mas a saída traumática de Gullit fazia com que aquele título fosse comemorado mais com alívio do que com festa. Àquela altura, parecia irreal a promessa do capitão Eric Gerets, na festa da vitória, em frente à torcida em Eindhoven: “No ano que vem, voltaremos aqui com a taça da Copa Europeia!”.

Sob Hiddink, a força coletiva começa com tudo 

O triunvirato que comandava o clube (Jacques Rits-Kees Ploegsma-Harry van Raaij) hesitava em deixar a dura tarefa de pacificar o clube sob a responsabilidade de Guus Hiddink, ainda inexperiente. Pensou-se em Georg Kessler, treinador do AZ campeão em 1980/81. Pensou-se até em trazer Rinus Michels, para fazê-lo acumular o comando da seleção holandesa e do PSV. Mas por fim, Hiddink foi efetivado – e coube a ele escolher Hans Dorjee, então diretor esportivo do Vitesse, para ser seu auxiliar no banco. A dupla Hiddink-Dorjee, então, formou o time com uma meta na cabeça: a grande qualidade do grupo do PSV teria de ser a força coletiva. Não haveria espaço para gente com queixas, como Gullit tivera sobre o antecessor, nem para excesso de individualismos em campo.

Por isso, assim como o camisa 10 que fora marcar época no Milan, também saiu do clube o atacante René van der Gijp, amigo próximo de Gullit e mais afeito a dribles, que rumou para o Neuchâtel Xamax, na Suíça. Para lá também iria Frank Arnesen. Iria: o meio-campista dinamarquês já preparava os exames médicos para ter aprovada a contratação pelo clube suíço, quando recebeu um telefonema. Era do amigo e compatriota Soren Lerby, com quem saíra do Fremad Amager para abrir caminho no Ajax, na década anterior. Lerby trazia a notícia: estava deixando o Monaco para rumar ao PSV, e queria recompor a parceria. Arnesen aceitou, desfez o negócio quase certo com o Xamax, renovou por mais um ano com os Boeren e pôde ter o confrade Lerby ao lado.

A vitalidade de Lerby na marcação era fundamental para a ideia tática de Hiddink. Assim como ter uma referência no ataque. Para cumprir esse papel, voltou da Itália Wim Kieft, disposto a retornar ao país natal após as passagens por Pisa e Torino, para buscar o protagonismo técnico que tivera em seu fulgurante começo no Ajax, quando não só foi artilheiro da Eredivisie, mas também Chuteira de Ouro na Europa, em 1981/82. Para dar a velocidade e a habilidade no ataque, também foi contratado Hans Gillhaus, vindo do Den Bosch. E mesmo reclamando por ter de voltar do empréstimo ao Royal Antwerp – afinal, no clube belga era titular, coisa que nunca conseguira no PSV, onde começara em 1981 -, Berry van Aerle foi reintegrado ao clube, a pedidos de Hiddink.

Ainda houve maus resultados num torneio amistoso em Manchester, antes da temporada 1987/88 começar (num dos jogos desse torneio, o Atlético Mineiro até ganhou do PSV: 3 a 1, dois gols de Sérgio Araújo e um de Chiquinho). Mas os últimos amistosos antes do início da temporada, contra clubes belgas – empate em 1 a 1 com o Anderlecht, vitória de 2 a 1 contra o Mechelen -, indicaram alguns caminhos: Van Aerle iria para o meio-campo, cobrindo o espaço na zaga para que Ronald Koeman avançasse. Enquanto Gerets se recuperava de uma lesão, o veteraníssimo Willy van de Kerkhof, 36 anos, seria improvisado na lateral. Ivan Nielsen era puro esforço na zaga, também cuidando da marcação enquanto Koeman avançava. No meio-campo, tarefas bem divididas: Lerby desarmava, Arnesen cuidava da saída de bola, Vanenburg atacava - para ajudar Kieft e Gillhaus, a dupla de atacantes. A única discrição no time era do dinamarquês Jan Heintze, na lateral esquerda.

Assim o PSV começou a disputa do Campeonato Holandês. Com tudo: 6 a 1 no Den Bosch, 3 a 2 no Twente, 9 a 0 no Utrecht (nesta goleada, com um chute fortíssimo, Koeman marcava o primeiro dos 19 gols que faria naquela temporada), 4 a 2 no clássico contra o Ajax em casa... era o começo do melhor primeiro turno que já se viu na história do Campeonato Holandês: 17 jogos, 17 vitórias. Melhor presságio não havia para o PSV tentar cumprir a segunda parte do objetivo da diretoria: fazer papel digno numa competição europeia. No caso, na Copa dos Campeões.

O susto contra o Galatasaray ensina a lição

Até que o adversário da primeira fase do torneio europeu foi bem recebido: diante de outras possibilidades, o Galatasaray era um rival superável. Não deveria ser desprezado: seu destaque, o atacante Tanju Çolak, fora terceiro colocado na Chuteira de Ouro, em 1985/86 – sem contar o goleiro iugoslavo Zoran Simovic e o zagueiro Erhan Önal, capitão da seleção da Turquia naquela época. Mas os Boeren fizeram questão de impor respeito no Philips Stadion, em 16 de setembro de 1987, no jogo de ida: 3 a 0 no time de Mustafa Denizli (supervisionado pelo alemão Jupp Derwall). Gillhaus abriu o placar no começo do segundo tempo, com Koeman novamente impressionando e marcando 2 a 0 aos 30 minutos. No penúltimo minuto, um chute forte do volante reserva Adick Koot – substituto de Willy van de Kerkhof – fechou o placar. Seria um gol valioso.

 

Valioso porque o PSV viajou a Istambul mais relaxado, acreditando que a vantagem era inalcançável. Em depoimento ao livro publicado em 2008, Soren Lerby comentou o ambiente antes do jogo de volta: “Parecia uma quermesse. Pensávamos que nada iria nos acontecer, era como se fosse um dia de folga”. As distrações eram permitidas, porque se achava que nada tiraria do PSV o lugar nas oitavas de final da Copa dos Campeões.

Não tirou mesmo, mas passou muito perto. O ambiente previsivelmente fervilhante no Ali Sami Yen motivou os Leões, naquele 30 de setembro de 1987: Tanju Çolak fez 1 a 0 logo aos cinco minutos do primeiro tempo, e Nielsen cometeu gol contra aos 42. Com 2 a 0, o Galatasaray tinha toda a etapa complementar pela frente para buscar o gol que lhe renderia a prorrogação. Tentou, mas Guus Hiddink colocou Koot no lugar de Van de Kerkhof, aumentando a marcação no meio-campo, e o PSV se aguentou. Nielsen compensou o erro no 2 a 0 ao salvar uma bola de cabeça, em cima da linha, e os visitantes de Eindhoven seguraram a desvantagem que ainda rendeu vaga nas oitavas. Mas ficava a lição. No vestiário, Lerby comentou com Gillhaus: “Agora você sabe como é o futebol nas competições europeias”.

Contra o Rapid Viena, rara tranquilidade

Tudo seguia tranquilamente na Eredivisie, com vitórias e mais vitórias. Também começou sem problemas na Copa da Holanda, com fácil goleada no amador De Treffers (6 a 0), avançando à fase seguinte. Estava cada vez mais visível: o PSV, de fato, se fortalecia coletivamente. As apostas de Guus Hiddink se revelavam certeiras. Internamente, a união de várias personalidades fortes e experientes – Van Breukelen, Gerets, Koeman, Lerby – era fundamental, conforme Hiddink comentou no prefácio escrito para PSV 1988: reconstructie van een gouden jaar: “Houve muitos fatores para o sucesso, mas um dos mais importantes foi o de serem personalidades muito fortes. Todas se ensinavam muito, e isso os fazia trazer o melhor deles à tona. Todos os jogadores sabiam o que fazer, mas também sabiam o que não fazer. Era um coletivo no qual todos estavam conscientes de suas tarefas, defensiva e ofensivamente”.

Bom que fosse assim. Afinal, por mais que o adversário das oitavas de final também fosse de nível técnico semelhante – o Rapid Viena, da Áustria -, o sufoco no jogo de volta contra o Galatasaray deixava claro que os Boeren ainda não eram um time acima de qualquer suspeita. Além do mais, o time vienense trazia uma invencibilidade doméstica também respeitável: 33 jogos sem perder. Em 21 de outubro de 1987, o começo foi promissor para o time holandês: Van Aerle fez 1 a 0. Mas aos 25 minutos, Zlatko Kranjcar empatou para a equipe de Viena, de pênalti. E o alívio só veio no fim do jogo, aos 32 minutos do segundo tempo, com Gillhaus fazendo o gol da vitória.
 

Na volta, em 4 de novembro de 1987, a coisa foi mais tranquila. Já aos 14 minutos, Lerby fez 1 a 0, contando com a sorte – a bola cruzada por Koeman bateu no meio-campo e entrou. Depois, Van Breukelen teve de fazer apenas uma defesa. O PSV se preocupou mais em manter a vantagem, e foi até vaiado pela torcida no Philips Stadion. Mas no fim (39 minutos do segundo tempo), Gillhaus marcou o segundo gol e assegurou: pela primeira vez em dez anos, o PSV “superaria o inverno” e iria às fases decisivas de um torneio europeu. Nas quartas de final, o Bordeaux representava o obstáculo seguinte.

 

A ideia de ser campeão europeu ainda era tratada como piada. Para se ter uma ideia: durante a pausa de inverno, num evento, Van Breukelen encontrou outro holandês, Leo Beenhakker, treinador do Real Madrid, também quadrifinalista da Copa dos Campeões. Se o caminho do PSV fora tranquilo, o dos madridistas havia sido terrível: primeiro eliminaram o Napoli, que fazia história na Itália com a dupla Maradona-Careca; depois superaram o Porto, então dono da principal taça europeia; e já sabiam que teriam pela frente nas quartas de final o Bayern de Munique. O goleiro provocou: “Vocês eliminaram o Napoli, o Porto, eliminarão o Bayern... e aí cairão para o desconhecido PSV, de Eindhoven!”. “Don Leo” foi lacônico até na resposta: “Vai sonhando, Hans”.

Porém, um evento ocorrido em janeiro de 1988 fez com que a autoconfiança daquele grupo aumentasse a sério. Foi até inesperado: afinal de contas, a princípio, nenhum dos jogadores via muita graça ou mesmo sentido em jogar um torneio amistoso de futebol de salão, organizado pelo Bayern de Munique, em grama sintética. Só aceitaram a viagem porque a diretoria prezava o dinheiro a receber. Pois o PSV aproveitou muito bem a participação: 5 a 3 no 1860 Munique, 7 a 2 no Atlético Mineiro (sim, o Galo também era convidado do torneio!), 6 a 1 no Bayern, 5 a 0 na decisão contra o Nürnberg. Título ganho, na viagem de volta a Eindhoven, o mesmo Gerets que havia prometido o título europeu à torcida foi além, falando aos colegas: “Vamos ganhar tudo nesta temporada”.

Aumentam as dificuldades, aumentam os destaques

Para a segunda metade da temporada, algumas mudanças já se faziam necessárias. O ataque sofria com algumas lesões: Gillhaus sentia dores no joelho, e o norueguês Hallvar Thoresen, seu reserva imediato, também sofria com os problemas no mesmo local – problemas até mais graves, que fariam Thoresen perder espaço no banco, decidindo praticamente encerrar a carreira ao aceitar voltar à Noruega após aquela temporada, para jogar no Frigg Oslo. Para que o ataque tivesse opções, chegou às pressas Anton Janssen, vindo do NEC.

Também com lesões renitentes no joelho estava Frank Arnesen (no livro de 2008, Arnesen disse que jogava com dores havia pelo menos quatro anos). Como o reserva imediato Van de Kerkhof não era mais nenhum garoto, Guus Hiddink também agiu rapidamente: promoveu dos juniores Edward Linskens, de 19 anos. Para evitar as mesmas dores de cabeça vividas com Gullit, os destaques do grupo tiveram seus contratos renovados – assim como Hiddink e o auxiliar Dorjee, ambos ainda tendo sobre eles a sombra da possibilidade de contratar Rinus Michels, sonho que Jacques Rits teve por muito tempo.

Com as três competições cobrando seu preço, o PSV começou a tropeçar: no primeiro jogo pelo Campeonato Holandês em 1988, perdeu pontos pela primeira vez (2 a 2 com o Twente, na 18ª rodada, a primeira do returno). Mas se recompôs plenamente nas duas rodadas seguintes: 9 a 1 no Den Haag, e 1 a 0 no Ajax em Amsterdã, suportando a pressão da torcida em De Meer: em protestos contra a diretoria que causara a saída do técnico Johan Cruyff, os adeptos Ajacieden atiraram bombas, sinalizadores e até ovos na área defendida por Van Breukelen, atrasando o começo do jogo e o interrompendo depois.

 

Nas oitavas de final da Copa da Holanda, em 10 de fevereiro, a classificação só veio na prorrogação: 1 a 0 sobre o Den Bosch, com gol de Kieft. Mas todos sabiam: o jogo mais importante viria só em 2 de março, no Parc Lescure, contra o Bordeaux. Parecia um adversário tão acessível quanto haviam sido Galatasaray e Rapid Viena, mas o time francês tinha experiência continental muito maior nos anos anteriores (semifinalista da Copa dos Campeões em 1984/85, e semifinalista da Recopa em 1986/87), além de ter jogadores reconhecidos – para ficar em apenas um nome, Jean Tigana.

E o PSV começou aquela partida em dificuldades, de fato. Os girondinos começaram a partida bem mais ofensivos. Lesionado, Arnesen deu lugar a Gillhaus já no primeiro tempo. Aos 22 minutos, Gerets cometeu falta – e recebeu bronca de Lerby, já que bolas paradas eram um dos pontos fortes da equipe treinada por Aimé Jacquet. Dito e feito: José Touré cobrou com perfeição e fez 1 a 0. Parecia um duro golpe. Mas aos 41 minutos, também numa bola parada, o PSV consertou: em escanteio, a bola passou por Ivan Nielsen, mas não por Kieft, que completou na segunda trave para o empate. Aliviados, os Eindhovenaren controlaram o jogo no segundo tempo. Lerby foi unanimemente elogiado como melhor do jogo, se desdobrando no meio-campo para ajudar a defesa, enquanto Koeman comandava as ações. E o empate com gols fora de casa orgulhou não só a torcida, mas toda a Holanda. A revista “Voetbal International” deixava claro, na manchete sobre o jogo, na edição seguinte: “O PSV corresponde às expectativas – a Holanda tem de novo um clube de alto nível”.

 

No caminho para o jogo de volta, em 13 de março, enfim o PSV capitulou no Campeonato Holandês: sofreu sua primeira derrota, num clássico para o Feyenoord (2 a 1 em De Kuip, pela 26ª rodada). Mas a vantagem na liderança seguia segura. Curiosa e surpreendentemente, recebendo o Bordeaux no Philips Stadion, em 16 de março, os Eindhovenaren sofreram mais: preferiram se defender, contendo a previsível pressão dos alvimarinhos. Foram fundamentais as atuações de Van Breukelen e Adick Koot – colocado na zaga daquela vez. E o clube holandês segurou o 0 a 0 em casa, avançando às semifinais.

 

Estava iniciada a fase mais difícil do caminho do PSV rumo à Tríplice Coroa. Afinal, enfim o sorteio colocou os Boeren frente a frente com um rival dificílimo: justamente o Real Madrid treinado por Leo Beenhakker. Campeão da Copa da UEFA em 1985/86. Semifinalista da Copa dos Campeões na temporada anterior. Sem o título europeu havia 22 anos, embora já o tivesse ganho seis vezes. Cheio de destaques – José Antonio Camacho, Rafael Gordillo, Martín Vázquez, Michel, Emilio Butragueño, Hugo Sánchez... enfim, não faltavam razões para se acreditar que era areia demais para o caminhão de Eindhoven. Sem contar as partidas cada vez mais decisivas na Holanda, tanto no campeonato quanto na copa.

Começou no dia 6 de abril de 1988, uma quarta-feira, uma das semanas mais agradáveis da história do PSV. Cada vez mais respeitado no grupo pelo destemor incomum para um jogador de 19 anos, Edward Linskens recebeu tarefa respeitável: após conversar com Lerby e Koeman, Guus Hiddink decidiu escalá-lo para marcar Gordillo, no meio-campo, no jogo de ida das semifinais, num Santiago Bernabéu lotado. A pressão da torcida madridista era quase irrespirável. E a semifinal começou da pior maneira possível para os PSV’ers: logo aos cinco minutos, um toque errado de Arnesen foi interceptado, e a bola parou nos pés de Hugo Sánchez. O mexicano foi derrubado por Van Breukelen na área, o juiz George Courtney marcou pênalti, e “Hugol” fez o que sempre se esperava dele: bola num canto, Van Breukelen no outro, converteu para o 1 a 0 e comemorou com suas habituais cambalhotas.

Parecia o fim. Não foi. Porque, aos 19 minutos, justamente a novidade do PSV marcou um dos gols mais lembrados dos quase 105 anos de história da agremiação da Philips. Arnesen lançou em profundidade, Linskens se viu livre na área após falha da marcação e chutou. Fraco, mas o goleiro Buyo permitiu que a bola passasse por ele. 1 a 1, e o gol foi muito comemorado pelo jovem volante, que marcava em seu primeiro jogo numa competição continental – e começava ali a ostentar o status de “talismã” que sempre teria para a torcida, nos oito anos passados no PSV.

Começou ali também o crescimento dos visitantes em campo. Se Lerby recebeu os elogios nas quartas de final, estes foram para Koeman naquela semifinal em Madri: controlou a defesa, ousou avançar, não deixou Butragueño jogar, tirou uma bola em cima da linha, enfim, ali o zagueiro de 25 anos se consolidou como um dos melhores de sua posição na Europa – embora suspeito, o “Mundo Deportivo” disse que a atuação do camisa 4 do PSV fora “uma lição de futebol”. Van Breukelen não deixou por menos, com defesa milagrosa em cabeceio de Hugo Sánchez. E o time holandês, que parecia ter ali seu ponto final, saiu aplaudido tanto pelos torcedores quanto pela imprensa: o De Telegraaf falou “PSV formidável”, o Algemeen Dagblad optou por “PSV maduro”... enfim, nada ali fazia lembrar o time alquebrado de 1986/87. Era uma equipe pronta para ser campeã europeia.

 

Mas primeiro, havia que garantir o título holandês que estava encaminhado. E ele veio em 10 de abril de 1988, a quatro rodadas do fim do campeonato, com a vitória sobre o AZ (1 a 0), graças a um tardio gol de Kieft. A festa foi discreta para os jogadores, ainda com várias decisões pela frente, mas a torcida já se empolgava, gritando pelas ruas “We gaan naar Stuttgart” (“Nós vamos a Stuttgart”), preconizando a final europeia.

Mas havia ainda um drama à vista. Para descrevê-lo, é preciso voltar às quartas de final da Copa dos Campeões: depois dela, Koeman concedeu uma entrevista ao jornalista Henri van der Steen, para a revista Sport International. A conversa foi publicada com o título: “Die doodschop van Gillhaus tegen Tigana was klasse” (em holandês, “a entrada de Gillhaus sobre Tigana foi ótima”). Trocando em miúdos: o zagueiro elogiava uma falta do colega de time sobre o meio-campo do Bordeaux, na partida de ida – com o tornozelo lesionado, Tigana teve de começar no banco em Eindhoven. As críticas à opinião de Koeman foram notáveis, e o PSV chegou a multá-lo.

Mas o problema parecia pacificado. Até a Uefa chamar uma comissão do clube para uma reunião em Zurique. Lá, o comitê disciplinar informou: Koeman estava suspenso por três partidas, “por não seguir os princípios comportamentais de um desportista”. Ou seja, um dos grandes responsáveis pelo sucesso do PSV em campo não jogaria mais na Copa dos Campeões. Obviamente, o clube entrou com recurso contra a sanção da entidade. E a tensão aumentou para o jogo de volta das semifinais.

Além da disputa europeia, ainda havia uma Copa da Holanda a ser buscada. E o PSV superou o RBC Roosendaal com facilidade nas quartas de final – 2 a 0, em 13 de abril, com o próprio Koeman marcando um dos gols. Ainda em meio à incerteza sobre Koeman, horas antes do jogo de volta das semifinais, em 20 de abril, Guus Hiddink definiu com os outros líderes do grupo de jogadores: Willy van de Kerkhof, um desses líderes, seria o substituto na zaga. Justamente enquanto a delegação ia ao Philips Stadion, vinha o alívio: a pena inicial de Koeman caía para um jogo, após o julgamento do recurso do PSV. Ou seja: ele só ficaria ausente daquele jogo prestes a começar.

Ainda assim, a partida contra o Real Madrid foi extremamente tensa. Novamente, os Boeren optaram por um estilo reativo, buscando os contra-ataques. Tais oportunidades surgiram só no segundo tempo: Lerby acertou a trave com um chute, e Vanenburg quase marcou o gol da vitória. Porém, no último minuto, Van Breukelen é que salvou, com ótima defesa em bicicleta de Hugo Sánchez. Segundos depois, o juiz suíço Bruno Galler apitou o fim do jogo – para irritação dos madridistas, que pediam mais tempo de descontos. Não adiantava: com o 0 a 0, era o PSV que iria à final do principal torneio continental europeu.

 

O fim: duas decisões, dois títulos dramáticos, Tríplice Coroa garantida

 Naquela reta final de temporada, as tarefas do PSV eram tão sucintas quanto complicadas: ganhar a Copa da Holanda, encerrar a Eredivisie sem problemas, ganhar a Copa dos Campeões. Na KNVB Beker, o título veio com algum sofrimento. Na semifinal (26 de abril de 1988), contra o RKC Waalwijk, o PSV chegou a ficar com desvantagem de 2 a 0, mas virou para 3 a 2 e alcançou a decisão. Esta, por sua vez, também teve algum drama. Em 12 de maio de 1988, no campo neutro do estádio do Willem II, em Tilburg, o PSV saiu atrás do Roda JC (gol de Huub Smeets). Aí, Eric Gerets empatou, num chute cruzado, e os Boeren equilibraram mais a partida.

Só que o Roda JC voltou à frente, com Raymond Smeets – e mesmo tendo ficado com dez jogadores, já que Eugene Hanssen cometeu um pênalti e foi expulso, viu Koeman acertar a trave na cobrança. Parecia o fim do sonho de ter três conquistas. Mas como em tantas outras vezes naquela temporada, o time de Eindhoven buscou a reação: aos 40 minutos, desviando voleio de Koeman, Gerets fez 2 a 2. O jogo foi para a prorrogação, e nela Lerby decidiu: 3 a 2. A segunda taça estava garantida. Faltava a terceira. A mais cobiçada.

 

No entanto, a última rodada do Campeonato Holandês trouxe uma péssima notícia ao PSV: na goleada por 4 a 0 sobre o DS’79 (último colocado da Eredivisie), em 8 de maio, Frank Arnesen quebrou a fíbula e rompeu os ligamentos do tornozelo. Titular absoluto quando as dores no joelho permitiam, Arnesen perderia a final da Copa dos Campeões. Perderia a Euro 1988, último torneio que faria pela seleção da Dinamarca. Pior: seria aquele o ponto final da carreira do meio-campista. Só restou a Guus Hiddink escalar Linskens na lacuna deixada.

De mais a mais, o Benfica chegava a Stuttgart também com um desfalque, até mais sério: craque dos Encarnados, o meio-campista Diamantino também estava fora da final, com os ligamentos do joelho rompidos contra o Vitória de Guimarães, na última rodada do Campeonato Português. Ainda assim, havia preocupação sobre a dupla de ataque benfiquista, Rui Águas-Mats Magnusson. Assim como as Águias também pensavam no que poderiam fazer Wim Kieft (goleador da Eredivisie, com 29 gols) e Hans Gillhaus.

A foto posada do PSV que conquistou a Copa dos Campeões em Stuttgart, confirmando a Tríplice Coroa. Em pe: Heintze, Koeman, Nielsen, Lerby, Kieft e Van Breukelen. Agachados: Linskens, Van Aerle, Vanenburg, Gerets e Gillhaus (Bob Thomas/Getty Images)
Assim, aquela decisão em Stuttgart foi mais tensa do que boa. 120 minutos e poucas chances de gol – a mais concreta, de Vanenburg, já na prorrogação. Os destaques foram mais defensivos. No PSV, Koeman e Lerby; no Benfica, Mozer e Pacheco. A não ser pelos torcedores dos Boeren e dos Encarnados, talvez ninguém tenha achado emocionante aquela partida – exibida no Brasil, pela TV Globo. Ficava a decisão para os pênaltis. Ali, valeria muito a pena o presente que Van Breukelen recebera de Jan Reker, seu treinador no PSV: um caderno, compilando os cantos onde vários jogadores do futebol europeu cobravam seus pênaltis. Porém, os chutes benfiquistas foram excelentes – assim como os dos Boeren. 5 a 5. A série alternada seria necessária. Anton Janssen converteu o sexto chute. Aí, Veloso foi bater para o Benfica. E Van Breukelen afastou de vez os seus traumas: defendeu.

 

Era o título. A Tríplice Coroa. A coroação do projeto do trio Jacques Ruts-Kees Ploegsma-Harry van Raaij, que enfim tornava o PSV uma equipe grande na Europa. A consagração que faria o nome de Guus Hiddink despontar como um dos grandes treinadores de sua época. A confirmação de que aquela firme e calejada equipe precisava para ficar na história do futebol europeu. O início da festa que se ampliaria para alguns holandeses dela – Van Breukelen, Van Aerle, Koeman, Vanenburg, Kieft, todos membros da seleção campeã europeia dali a exatamente um mês. O início de um processo que se mantém, 30 anos depois, com o PSV já conhecido mundialmente, referência de um clube grande e organizado na Holanda, sem tantas crises internas como Ajax ou Feyenoord. E, involuntariamente, uma vingança involuntária àquelas duras palavras de Gullit: sim, o PSV poderia alcançar o topo da Europa.

Só não alcançou o topo do mundo porque o Nacional não deixou, na final do Mundial Interclubes. Mas essa é outra história...

A festa pelo último título da Tríplice Coroa: quem diria? (Peter Robinson/Empics/Getty Images)
(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 25 de maio de 2018)

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