sexta-feira, 22 de junho de 2018

30 anos da Euro 1988 - parte 1: escrevendo certo por linhas tortas

Esta Holanda fez história na Euro 1988. Da esquerda para a direita, na primeira fileira: Monne de Wit (fisioterapeuta), Gerrit Steenhuizen (roupeiro), Nol de Ruiter (auxiliar técnico), Rinus Michels (técnico), Bert van Lingen (auxiliar técnico) e Guus de Haan (auxiliar técnico). Na segunda fileira: Ronald Koeman, John Bosman, Wim Kieft, Wilbert Suvrijn, Joop Hiele, Hans van Breukelen, Hendrie Krüzen, Frank Rijkaard, Sjaak Troost, Wim Koevermans e Ruud Gullit. Na terceira fileira: Marco van Basten, Adri van Tiggelen, Berry van Aerle, Jan Wouters, Aron Winter, Arnold Mühren, John van't Schip, Gerald Vanenburg e Erwin Koeman (Cor Mulder/Arquivo ANP)

Antes da Copa de 1974, a Holanda fazia parte de uma escala menor, quase ignorada no futebol europeu e mundial. Não era plenamente inexperiente em grandes cenários (já participara dos Mundiais de 1934 e 1938), mas também era um time inofensivo. Como se sabe, 1974 mudou o modo como a seleção holandesa é vista mundo afora. Só que aquela competição também iniciou o estereótipo trágico: a Holanda joga bonito e perde. Isso foi visto à exaustão. Nas Copas do Mundo, em 1990, 1998, 2010, 2014... nas Eurocopas de 1992, 2000, 2008, 2012... enfim, várias vezes esperava-se o “agora vai” que traria o título tantas vezes merecido. Mas o “agora vai” só foi uma vez: na Euro 1988. E nesta época atual, em que a Oranje anda distante do destaque internacional, longe de Euros e Copas do Mundo (e sem dar a impressão de que logo voltará), nada mais lógico do que lembrar essa vez em que a Oranje “foi”, há 30 anos. 

Além de ser o único título da história da seleção adulta, a Eurocopa de 1988 marcou a vida do país. Movimentou-o a ponto de provocar grandes comoções populares e levar músicas às paradas de sucesso. Mas o sentido mais importante da conquista foi mesmo o futebolístico. Afinal, ela uniu aquela que é considerada a segunda grande geração de jogadores da história do país. Transformou os destaques dessa geração em estrelas, na Holanda e fora dela. E foi o símbolo de como 1988 é o grande ano da história do futebol holandês: além da vitória da seleção, o PSV conquistou a Tríplice Coroa (Copa dos Campeões, Campeonato Holandês e Copa da Holanda), e o Ajax chegou à final da Recopa - perdeu para o Mechelen, da Bélgica, é verdade, mas o campeão tinha quatro holandeses em sua escalação, mais o técnico Aad de Mos.

Enfim, por todos esses motivos, a coluna fará um especial até a próxima segunda-feira, 25 de junho, data exata dos 30 anos do título. É uma versão revista e ampliada do especial já publicado na Trivela, em 2013, por ocasião dos 25 anos da conquista. Serão quatro textos mostrando como foi a trajetória na Euro 1988, quando a Holanda teve a certeza de que podia ganhar algum dia, que não estava condenada a ser a eterna perdedora. Hora de começar a viagem de volta.

Um começo com turbulências

Durante a década de 1980, a Holanda sofreu com uma palavra: entressafra. Não havia mais a sabedoria tática de Ruud Krol, o esforço de Johan Neeskens, a elegância de Robert Rensenbrink e acima de tudo, a genialidade de Johan Cruyff. Ao mesmo tempo, por mais que seu talento técnico fosse indiscutível, a geração que surgia desde o início daquela década ainda não se mostrara capaz de desabrochar em campo. Um bom exemplo disso é que a Chuteira de Ouro já até fora ganha por Wim Kieft (1981/82) e Marco van Basten (1985/86). 

Mas algo continuava interrompendo o caminho de volta a uma grande competição. O duro caminho até que a nova geração ganhasse experiência suficiente incluiu duas dolorosas experiências em eliminatórias. Na qualificação para a Euro 1984, a vaga para a Espanha foi perdida no número de gols pró, após a Roja golear Malta por 12 a 1, na última rodada do grupo 7. Nas eliminatórias para a Copa de 1986, a Oranje foi para a repescagem contra a Bélgica, rival histórica. E perdeu o lugar no Mundial, por um gol, que os Diabos Vermelhos marcaram fora de casa. Na ida, em 16 de novembro de 1985, a Bélgica fizera 1 a 0, beneficiada pela expulsão rápida do atacante Wim Kieft (aos quatro minutos de jogo!). Quatro dias depois, na volta, em Roterdã (claro, De Kuip), a Laranja vencia por 2 a 0, mas um gol do zagueiro belga Georges Grün, a cinco minutos do fim, deu aos visitantes o lugar na Copa.

Foi o sinal definitivo de que faltava ainda algo àquela geração de jogadores. Treinador na campanha das eliminatórias, Leo Beenhakker deixou o cargo criticando a falta de esforço daquela geração de jogadores. À revista Voetbal International, "Don Leo" fulminou: "No intervalo daquele jogo [na volta da repescagem], eles pareciam animadinhos. Ninguém estava cansado, sem fôlego [de tanto correr], nem tinha qualquer lesão.  Num gramado desses [a grama em De Kuip estava castigada pelo inverno]. Como você pode não ter nada num gramado desses? Isso foi o que me chateou: a falta de senso de realidade. Ninguém estava naquele clima de "ou vai ou racha".

O time do fracasso holandês na repescagem das Eliminatórias europeias da Copa de 1986. Em pé: Wijnstekers, Houtman, Gullit, Spelbos, Rijkaard e Van Breukelen. Agachados: De Wit, Van Tiggelen, Van der Korput, Tahamata e Valke (VI Images)
Para tornar a situação ainda mais confusa, havia discordâncias sobre os rumos táticos do futebol do país. Isso ficou claro num congresso, organizado pela federação holandesa em janeiro de 1986. Nele debateram Leo Beenhakker - que colocou parte da culpa do fracasso em seu antecessor, Kees Rijvers, que comandara a Laranja entre 1981 e 1984; Rinus Michels, diretor técnico da federação holandesa; e Johan Cruyff, já despontando como treinador no Ajax, oposto a Michels e Beenhakker quanto às ideias sobre futebol. Tanto que, num dos dias do congresso, após o debate, Cruyff se surpreendeu ao ler num jornal, no dia seguinte, que os técnicos de Ajax, PSV, Groningen e Utrecht estavam de acordo quanto ao futuro do futebol holandês. Cruyff chegou aos debates já furioso: "Li que estamos todos de acordo e levei um susto. Só estamos de acordo no fato de que não há uma maneira única de as coisas serem feitas. Somente nisso".

Se havia um consolo, ele estava no fato de que a Holanda já tinha uma geração em plena evolução. Na defesa, enfim Hans van Breukelen se consolidara como goleiro titular, enquanto Ronald Koeman e Frank Rijkaard começavam a formar uma zaga de muito respeito na Europa; no ataque, Marco van Basten começaria a viver os grandes momentos de sua carreira exatamente naquele momento, enquanto Ruud Gullit partia da frente para começar a aparecer em todas as partes do campo. Ou seja: era uma base com a qual dava para se fazer um trabalho promissor. E os que haviam decepcionado Leo Beenhakker nas eliminatórias da Copa - Simon Tahamata, Michel van de Korput, Peter Houtman - começaram a dar lugar a gente que vinha para ficar por alguns anos: Adri van Tiggelen, Erwin Koeman, Jan Wouters.

Antes das eliminatórias para a Eurocopa, em 1986, Rinus Michels recebeu a tarefa de acumular o cargo de diretor técnico da federação holandesa com o comando da Oranje. E os comandados de Michels tiveram seus percalços. O começo foi bom, com a vitória por 1 a 0 sobre a Hungria, em 15 de outubro de 1986. Mas o empate sem gols com a Polônia, em 19 de novembro, em casa, na segunda rodada, já trouxe problemas. Pelo menos, o terceiro jogo deu margem a algum alívio: em 21 de dezembro, 2 a 0 sobre o Chipre, o membro mais fraco do grupo. Só que, na quarta rodada, veio mais um empate em casa: 1 a 1 contra a Grécia, em Roterdã, em 25 de março de 1987. Eram resultados perigosos. A situação melhorou com duas vitórias por 2 a 0 (contra a Hungria, em casa, no dia 29 de abril; e contra a Polônia, fora, em 14 de outubro). A Holanda continuava na frente do grupo 5, e estava invicta, perto da vaga na Euro. Mas qualquer falha podia ser fatal. 

E essa falha veio em 28 de outubro de 1987, na penúltima rodada das eliminatórias, numa goleada por 8 a 0, contra o Chipre, em Roterdã: quando o placar estava em 1 a 0, um rapaz de 21 anos, presente nas arquibancadas do De Kuip, atirou uma laranja, que acertou a cabeça do goleiro cipriota, Andris Charitou. Este teve de deixar o campo, e os companheiros de time também o fizeram, alegando falta de condições para continuarem jogando em segurança.


Depois, houve o retorno, e o jogo seguiu até os 8 a 0. Mas a Uefa acompanhou o incidente e anulou a vitória. Drama à vista: com 10 pontos, um à frente da Grécia, a Oranje teria de passar por um duríssimo confronto direto contra os helênicos, em Rodes, na última rodada, para assegurar sua classificação. Aí entrou a influência de Jacques Hogewoning, presidente da KNVB, a federação holandesa. Ainda durante a partida, Hogewoning mandou Co Greep, especialista médico da federação, para verificar as condições de Charitou. E lá viu que o goleiro estava em boas condições – algo confirmado pelo médico da seleção cipriota.

A equipe da KNVB trouxe tal informação no julgamento da Uefa em relação ao incidente. E deu certo: uma pena que poderia ser de vitória por 3 a 0 “dada” ao adversário transformou-se na obrigação de jogar uma nova partida contra o Chipre, com portões fechados, além do pagamento de uma multa. Algo contornável. Tão contornável que a Holanda fez tranquilos 4 a 0 nos cipriotas, em Amsterdã, no De Meer, em 9 de dezembro de 1987, e garantiu a classificação para a Eurocopa. Na última rodada, ainda houve a vitória sobre os gregos, por 3 a 0, em 16 de dezembro. E só aí a preparação para a Eurocopa pôde começar.


A escolha dos jogadores

Na fase final da preparação, em três amistosos ocorridos já em 1988, os jogadores convocáveis já estavam praticamente definidos. Algumas presenças constantes nas eliminatórias da Euro foram perdendo espaço. Na zaga, Sonny Silooy e Ronald Spelbos ficariam fora da fase final do torneio continental; no ataque, René van der Gijp fracassou nos testes. Já outras novidades agradaram pelo esforço, e conseguiram ser premiados com a convocação. Foi o caso dos atacantes John van't Schip e John Bosman, dos zagueiros Wilbert Suvrijn e Wim Koevermans, do meio-campo Hendrie Krüzen.

O técnico Rinus Michels chegou a algumas conclusões, que levaram à formação do time titular. A primeira era óbvia: os jogadores que vinham sendo convocados eram inegavelmente talentosos, mas não tinham o nível de compreensão tática da geração de 1974. Sozinhos, não conseguiriam concretizar uma revolução tática, como se vira havia 14 anos. Logo, o esquema tático deveria ser mais básico, já em sua origem. E assim foi, com a Holanda escalada num 4-4-2.

A segunda conclusão: sabia-se que Michels era um técnico absurdamente rígido em suas convicções. Sendo assim, a convocação do grupo de 20 jogadores que viajou à Alemanha para a Euro obedecia unicamente a seus critérios. Stanley Menzo, do Ajax, era um goleiro mais afeito ao jogo com os pés, que tanto fazia parte do Futebol Total? Michels não queria saber: como o titular Hans van Breukelen tinha mais capacidades debaixo das traves, o reserva também teria de ser assim. Logo, Menzo ficou de fora, e Joop Hiele, do Feyenoord, foi convocado. Hiele até jogara uma partida nas eliminatórias (Van Breukelen foi poupado por problemas psicológicos), mas certamente seria o reserva: titular absoluto na temporada da Tríplice Coroa do PSV, Van Breukelen se recuperara.

A terceira e mais importante conclusão também tem algo de óbvio: como um dos ideólogos do Futebol Total, Michels exigia dedicação ao lado coletivo da equipe. Sempre. Se houvesse algum jogador altamente habilidoso, mas sem compromisso, certamente iria para o banco de reservas. Essa era a razão principal para o atacante Marco van Basten, talvez o grande jogador holandês daquela geração, ficar entre os suplentes, a princípio: Rinus Michels não gostava de Marco. Achava-o um jogador preciosista, uma vedete, que preferia o gol bonito e as luzes dos refletores à ajuda estóica para o time. Exatamente a grande virtude de John Bosman, atacante titular da equipe. Discreto, Bosman era jogador bem mais ao gosto de Michels.

O outro motivo para Van Basten não ser a grande estrela do time era a já presente propensão dele a lesões. No final de 1987, o tornozelo que o faria encerrar a carreira precocemente passou pela primeira cirurgia, forçando o atacante a ficar cinco meses sem jogar. Além disso, Van Basten sofreu uma microfratura num osso próximo ao olho, e precisou de algum repouso na concentração holandesa para a competição, em Noordwijk. O próprio reconheceu que precisaria mostrar talento aos poucos: “Eu estava machucado, no Milan. Precisava entrar em forma novamente, e foi lógico, da parte de Michels, pensar na base do ‘em time que está ganhando não se mexe’”.

E a escalação do time também foi sendo montada para privilegiar o esforço, pedindo o talento apenas quando ele fosse necessário. No miolo de zaga, Ronald Koeman e Rijkaard sabiam avançar com habilidade para o ataque – e Rijkaard poderia até ser improvisado como volante. Sendo assim, era quase obrigatório que os laterais fossem mais defensivos, como eram Berry van Aerle, na direita, e Adri van Tiggelen, na esquerda.

Também foi para evitar que o espírito ofensivo dos dois zagueiros vitimasse sempre o goleiro Van Breukelen que Michels escalou Jan Wouters e Arnold Mühren, dois volantes mais afeitos à marcação, no seu 4-4-2. O veterano Mühren, de 37 anos, ainda tinha a capacidade de ser bom nos lançamentos longos, podendo ajudar Erwin Koeman e Vanenburg, que ficaram na armação. 

E aí, no ataque, enquanto Bosman faria o serviço sujo de marcar a saída de bola adversária, haveria a grande estrela: Ruud Gullit. Eleito o melhor jogador do ano em 1987, pelas revistas France Football e World Soccer, Ruud era o capitão da Oranje. Além de exuberante tecnicamente, era o homem de confiança de Rinus Michels em campo. Gullit era o camisa 10, literalmente. Era a grande esperança, com Van Basten à meia-bomba.

Assim Rinus Michels decidiu a escalação holandesa que começaria a Euro: pela lesão ocular e por ser julgado pouco esforçado, Van Basten deu lugar a John Bosman na estreia (lineupbuilder.com)
Van Breukelen; Van Aerle, Koeman, Rijkaard e Van Tiggelen; Wouters, Mühren, Erwin Koeman e Vanenburg; Gullit e Bosman. Eis a escalação com que a Holanda voltaria a uma competição de grande fama. E alcançou o sucesso. Mas não sem dificuldades. Nem sem mudanças.

5 comentários:

  1. O FUTEBOL HOLANDES REVOLUCIONOU O FUTEBOL ! E FAZ MUITA FALTA NA COPA DE 2018 .

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  2. Parabéns pelo texto. Ansioso pela próxima parte...

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  3. Esta Holanda tinha tudo para levar a Copa de 90, mas se perdeu em problemas internos. Tinha o Trio que fez do Milan dos anos 90 um dos melhores times da historia do fuyebol

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  4. Parabéns pelo blog, incrível, não pare as postagens, por favor, eu sempre estou acompanhando.

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