sábado, 23 de junho de 2018

30 anos da Euro 1988 - parte 2: a sorte conspira a favor

Van Basten recebeu a chance de Rinus Michels, após a derrota na estreia. E saiu do banco para ser aclamado na Euro 1988 (Bongarts/Getty Images)
Escalada para a primeira fase da Euro 1988, a Holanda teria dificuldade considerável no grupo B. Embora o nível técnico dos favoritos não fosse tão grande quanto o que Alemanha e Itália tinham, no grupo A, havia times elogiáveis. O principal favorito a liderar a chave era a União Soviética. Em seu último grande momento no futebol, os soviéticos traziam uma equipe com jogadores já experientes das Copas de 1982 e 1986, como o goleiro Rinat Dasaev e o zagueiro Anatoli Demianenko. Juntos a eles, gente que vivia a melhor fase da carreira, como os atacantes Vassili Rats, destaque soviético na Copa de 1986, Igor Belanov, eleito o melhor jogador da Europa em 1986, e Alexei Mikhailichenko, que faria parte da equipe soviética medalha de ouro no torneio olímpico de futebol, nos Jogos de Seul, dali a alguns meses.

Embora com um time sem tantas novidades, a Inglaterra ainda sabia que Gary Lineker, Peter Beardsley e John Barnes tinham muito a contribuir, no ataque – e ainda havia Peter Shilton, já um estandarte do English Team, no gol. Finalmente, a Oranje teria a incógnita Irlanda como última adversária. Jogando a primeira grande competição de sua história, a seleção irlandesa era guiada pelo ideário do técnico inglês Jack Charlton, que pedia muita dedicação na defesa. Ou seja: embora Frank Stapleton, Tony Cascarino e John Aldridge dessem algum brilho ao ataque, o que impressionava no Eire era o esforço hercúleo na marcação, expresso em gente como o zagueiro Mick McCarthy e o volante Paul McGrath – na verdade, zagueiro adiantado.

E a Holanda? Já estava com a sua escalação definida, como se leu na primeira parte deste especial. Todavia, as opções de Rinus Michels desagradavam alguns personagens importantes. Um deles, claro, era Johan Cruyff: em sua coluna para o jornal espanhol El Periodico, o já então técnico do Barcelona elegeu a Laranja como sua favorita ao título da Euro: "Se o time jogar com três atacantes, garantirá o pânico em toda defesa adversária". Era um bom augúrio que continha crítica implícita: a opção de Michels por dois atacantes. Claro que o treinador holandês entendeu. E replicou duramente a opinião do principal jogador que treinou em campo: "Eu não faria isso com um colega de trabalho. Cruyff está sempre falando, em todos os canais (...). Ele diz que já somos campeões europeus. É muito fácil [falar isso] quando não se tem responsabilidade". Mas pelo sim, pelo não, o fato é que Michels ainda apostou num esquema com três atacantes para a estreia: além de Gullit e Bosman, John van't Schip começou jogando.

A Holanda que estreou na Euro 1988, contra a União Soviética, em Colônia, no dia 12 de junho. Em pé: Van Tiggelen, Rijkaard, Ronald Koeman, John Bosman, Gullit e Van Breukelen. Agachados: Wouters, Mühren, Vanenburg, Wouters e Van't Schip
A Oranje chegou para a estreia contra a União Soviética, no dia 12 de junho, em Colônia, com um certo temor (aqui, o jogo na íntegra).  No que daria aquele time meio desequilibrado taticamente, contra a equipe determinada e coesa de Valeri Lobanovsky? Deu numa partida dominada pelos de camisas laranjas. Mais impressionante: nenhum dos armadores destacou-se no ataque. Mais impressionante ainda: esse destaque não foi de Ruud Gullit. Foi da dupla de zaga. Avançando como elementos surpresas, Ronald Koeman e Rijkaard impressionaram. Ao mesmo tempo, a dedicação de Van Tiggelen, Van Aerle e Mühren impediu que a defesa ficasse absolutamente desguarnecida.

Aqui, faz-se necessário um parêntese: entre os dois “líberos” que a Holanda tinha, Rijkaard foi ainda mais impressionante. Marcou bem, saiu bem com a bola nos pés, trouxe perigo em chutes de fora da área, em trocas de passes... enfim, a atuação do camisa 17 foi classuda a ponto de impressionar o técnico argentino Cesar Luis Menotti, que estava em Colônia: “Eu nunca vi um líbero tão técnico na minha vida”. 

Rijkaard chegara àquela Euro em baixa: após sair do Ajax brigado com o técnico Johan Cruyff, no meio de 1987, fora contratado pelo Sporting-POR. Mas a transação se deu fora do prazo, e o volante/zagueiro não poderia atuar pelos Leões. O jeito foi repassá-lo ao Zaragoza-ESP, ainda em 1987. Mas ele não impressionara ali. Até aquela partida contra a União Soviética. No estádio, estava Arrigo Sacchi, técnico do Milan. Impressionado, ali Sacchi decidiu pedir a contratação de Rijkaard a Silvio Berlusconi, já então o mecenas milanista. E o resto é história.

Mas voltemos ao jogo: a Holanda estava bem, até que houve uma falha de marcação de Van Tiggelen, pela esquerda, aos sete minutos do segundo tempo. Ele somente cercou o meia Vagiz Khidiatullin, sem dar o bote. E o soviético pôde inverter o jogo para Rats, que entrava pela área, do outro lado. O atacante bateu, de voleio, e fez 1 a 0 para a URSS. Nem com toda a ajuda de Koeman e Rijkaard ao ataque, a Oranje conseguiu vazar a meta de Dasaev. Rinus Michels, então, decidiu usar a arma que tinha no banco: tirou Vanenburg, apagado, e colocou Van Basten. O camisa 12 tentou. A insistência ofensiva foi grande: Dasaev defendeu um chute de Koeman, um cabeceio de Gullit, contou com a sorte ao ver a bola vinda da cabeça do próprio colega Vagiz Khidiatullin bater no travessão. E a União Soviética segurou o 1 a 0, saindo na frente, no grupo A da Euro.


Claro, a boa atuação na estreia já deixara uma impressão de que era possível ir longe na Euro. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas realmente era preferível vencer a Inglaterra. Ela fora derrotada por 1 a 0 pela Irlanda, começara pessimamente, mas era bom não brincar com um time experiente como o inglês. Mais uma derrota e a Holanda estaria eliminada. Ao mesmo tempo, após reconhecer o peso da derrota ("Certamente foi um golpe duro", falou à emissora pública de tevê NOS), Rinus Michels reconheceu os erros próprios ao escalar o time no 4-3-3 tipicamente holandês: "Achei que alguns tiveram timidez demais, não jogaram livres".

Era necessário ter alguém que trouxesse mais técnica ao ataque. Era necessário ter alguém que trouxesse mais temor à zaga adversária. John Bosman não causara muito tormento entre os soviéticos, na estreia. Enfim: mesmo que ele não estivesse em perfeita forma, Van Basten tinha de iniciar a partida. Era preciso correr riscos. Rinus Michels decidiu corrê-los.

Rinus Michels voltou ao 4-4-2 que pensara para a Euro 1988. E a esperada estreia veio no segundo jogo pelo torneio, contra a Inglaterra, em Dusseldorf. Em pé: Van Basten, Rijkaard, Ronald Koeman, Erwin Koeman, Gullit e Van Breukelen. Agachados: Vanenburg, Wouters, Van Tiggelen, Van Aerle e Mühren (Professional Sport/Popperfoto/Getty Images)
Entrou quem faltava: Van Basten

Em Dusseldorf, no dia 15 de junho, Van Basten substituiu Bosman na escalação que começou o jogo contra o English Team (a íntegra aqui). E que início cheio de sustos. No primeiro deles, Van Breukelen saiu mal do gol e foi driblado por Lineker, que chutou na trave. E a bola voltou ao goleiro holandês. No segundo susto, Glenn Hoddle cobrou falta na mesma trave que Lineker acertara. A bola bateu no poste, rolou próxima à linha do gol e foi dominada pela defesa holandesa.

A sorte estava virando. Prova disso foi o que se viu aos 44 minutos do primeiro tempo: após cruzamento de Gullit, da esquerda, Van Basten dominou na área, deu um drible humilhante em Tony Adams e bateu na saída de Shilton para abrir o placar. Eis ali a prova de que o camisa 12 tinha a habilidade que John Bosman não possuía, por mais esforçado e dedicado ao time que fosse.

No segundo tempo, aos seis minutos, Bryan Robson empatou para o English Team. Só que, aos 26 minutos, Van Basten novamente apareceu livre, recebeu passe de Gullit na área e recolocou a Oranje na frente. E, aos 30, em jogada ensaiada (cobrança de escanteio, desviada na área para o complemento na segunda trave: lembram da Copa de 2010?), Van Basten emplacou o terceiro gol na partida. Definitivamente, com três gols em um jogo, o atacante mostrava a Michels que estava pronto para ser titular.


No meio do caminho tinha uma orelha: Kieft

Caminho encontrado, a Holanda ganhava cada vez mais confiança. Mas não estava garantida nas semifinais da Euro. Afinal, a Irlanda era uma incógnita cada vez mais perigosa: ganhara da Inglaterra, e arrancara um empate por 1 a 1 contra a União Soviética. Tinha três pontos, um a mais do que a Oranje. Novamente, era vencer ou vencer. Mesmo que o nível técnico da seleção de Rinus Michels fosse superior ao dos irlandeses (e houvesse sido ampliado com a explosão de Van Basten), o jogo em Gelsenkirchen, no dia 18 de junho, era mais um caso em que a Holanda teria de matar um leão para seguir no torneio - a íntegra, aqui.

A seleção da Holanda que sofreu, mas conseguiu chegar às semifinais contra a Irlanda - contando com a sorte no gol. Em pé: Van Tiggelen, Ronald Koeman, Rijkaard, Van Basten, Gullit e Van Breukelen. Agachados: Mühren, Van Aerle, Wouters, Vanenburg e Erwin Koeman (Getty Images)
Novamente, houve sustos no começo: nos primeiros minutos de jogo, McGrath mandou uma bola na trave, de cabeça. Depois, só a Oranje trouxe perigo. Mas, por mais que se esforçasse, a dedicação irlandesa na defesa vencia as tentativas de ataque. Hora de Rinus Michels agir: aos cinco minutos do segundo tempo, ele colocou Wim Kieft no lugar de Erwin Koeman. Ainda que a seleção estivesse agora armada num 4-3-3, a insistência resumia-se a cruzamentos para a área prontamente afastados de cabeça, ou a chutes de fora da área defendidos pelo goleiro Pat Bonner. A Holanda ia se cansando. A semifinal impensável chegava para consagrar a Irlanda. Mas tinha uma orelha no meio do caminho.

37 minutos do segundo tempo. Gullit cruza da direita, e Paul McGrath, zagueiro, tirou de cabeça. De primeira, Ronald Koeman arrisca o voleio. Pega fraco. A bola saltita, Kieft voa para cabecear e dá com a orelha na bola. O destino dela muda, e ela continua saltitando, até morrer no canto esquerdo de Bonner. O 1 a 0 esperado viera, para explosão de Rinus Michels, no banco. Após o jogo, Kieft se mostrou até incrédulo, para a revista Voetbal International: "O chute errado de Ronald Koeman teve tanto efeito que, quando eu desviei, a bola continuou girando sobre seu eixo. O goleiro também não esperava que ela chegaria até mim, e deu um passo para o lado".

Na transmissão da TV Globo para aquele jogo (era sábado de manhã, no horário de Brasília), o narrador Luiz Alfredo mencionou "o abraço e a alegria de Rinus Michels" e a "bola toda, toda, cheia de veneno (...) surpreendendo Pat Bonner". Raul Plassmann também citou o desvio em seus comentários. E sintetizou bem o que significava a vitória: "Premia um futebol de mais técnica, mas que teve muita dificuldade".


Enfim, com o destino e a habilidade conspirando a favor, a Holanda chegava à semifinal da Euro, aos trancos e barrancos. E enfrentaria a Alemanha, sua eterna arquirrival, sua algoz costumeira.

Seria um jogo à parte. E foi.

Com Van Basten, além de manter a mobilidade, o ataque holandês ganhou em técnica (lineupbuilder.com)


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