A postura pensativa de Frank de Boer tomou conta do futebol holandês como um todo em 2020 (Laurens Lindhout/Soccrates/Getty Images) |
Antes de 2020 começar, o futebol na Holanda (Países Baixos) terminava 2019 com orgulho, pelo que se vira nos gramados - Ajax semifinalista da Liga dos Campeões, seleção masculina vice-campeã da Liga das Nações e de volta a um torneio grande (vaga na Euro garantida), seleção feminina vice-campeã mundial. E tinha esperanças pelo que viria em 2020. Esperanças que, se não foram dilapidadas por todos os efeitos da pandemia conhecida, foram bastante diminuídas. E que fazem com que este ano termine e 2021 comece com muitos pontos de interrogação. O maior deles, em uma pergunta: será que a Holanda voltará a ter dificuldades no processo de reação que seu futebol vivia, após o embalo dos últimos anos?
E nada simboliza tão bem essas dúvidas que o futebol neerlandês vive hoje em dia quanto a sua seleção masculina. Afinal de contas, a Laranja terminou 2019 classificada para a Euro, com um técnico elogiado (Ronald Koeman) e uma geração promissora personificada em vários nomes - de Virgil van Dijk a Georginio Wijnaldum, passando por Matthijs de Ligt e Frenkie de Jong, sem contar Memphis Depay (que estava lesionado e provavelmente perderia a Euro). Veio 2020. Veio a pandemia. Que trouxe como primeiras consequências o cancelamento de dois amistosos, contra Espanha e Estados Unidos, que ocorreriam em março. Depois, claro, o adiamento da Euro para 2021. Viriam consequências mais sérias.
A mais séria de todas nem entrou na conta da pandemia: no mata-mata da Liga dos Campeões jogado na "bolha" de Lisboa, em agosto, o Barcelona foi arrasado pelo Bayern de Munique. Para minorar os efeitos da crise, decidiu cortejar Ronald Koeman uma terceira vez - e aí, Koeman deixou a seleção ("Como acreditar que a Euro ocorrerá em 2021?"). Sem querer um técnico estrangeiro e resistindo a quem pudesse quebrar de forma brusca o que Koeman construíra, a federação tomou a controvertida decisão de apostar em Frank de Boer, vindo de maus trabalhos em clubes. Para piorar, no reinício do futebol europeu pós-"primeira onda", nas primeiras rodadas do Campeonato Inglês, Virgil van Dijk, o grande líder da Laranja em campo, sofreu lesão séria no ligamento cruzado anterior do joelho - e a participação na Euro ficou em risco.
Frank de Boer chegou já com partidas sérias à espera, principalmente na Liga das Nações. Nos primeiros jogos, a Laranja dos homens sofreu: atuações preocupantes (principalmente na derrota para a Itália e no empate com a Bósnia, na Nations League), falta de eficiência no ataque. Mas aí, Koeman sinalizou em uma entrevista que a seleção holandesa deveria entrar em nova fase. Frank de Boer fez experimentos válidos - como no 1 a 1 contra a Itália, em que um esquema com cinco zagueiros resultou em mais segurança. Alguns jogadores, como Wijnaldum, cresceram de produção. Memphis Depay voltou de sua lesão no joelho já sendo preponderante no ataque. E mesmo que a Laranja tenha caído na Liga das Nações, passa-se a impressão de que o time pode, sim, fazer papel digno na Euro.
A seleção feminina da Holanda se classificou à Euro 2022-que-era-2021 sem problemas. Mas precisa ser mais forte contra adversárias mais fortes (Twitter/KNVB Media) |
Tal impressão é um pouco mais enfraquecida em se tratando da seleção feminina, que tanto emocionou os Países Baixos (o mundo, até) em 2019, com o esforço e a habilidade que levaram à campanha altamente elogiável na Copa do Mundo. Claro, as Leoas Laranjas ainda seguem fortes. Bem ou mal, cumpriram o principal objetivo de 2020, ao terminarem as eliminatórias da Euro 2022-que-era-2021 com uma campanha perfeita - dez vitórias em dez jogos. Têm jogadoras de qualidade elogiada: Vivianne Miedema continua muito bem no Arsenal, sua colega de time Jill Roord viveu talvez o melhor ano de sua carreira, Lieke Martens retornou ascendente ao Barcelona após a lesão no pé. Sarina Wiegman, então, repetiu em 2020 a dose de 2017, sendo escolhida a melhor treinadora do mundo - escolha muito contestada, aliás. Mas a campanha irretocável na qualificação para defender o título europeu era praticamente uma obrigação, pela fragilidade do grupo. Rússia, Eslovênia, Turquia, Kosovo, Estônia: não só nenhuma dessas seleções era páreo para a Holanda, como as jogadoras adversárias tratavam as neerlandesas mais como estrelas do que como oponentes.
Sempre que a Holanda enfrentou adversárias de maior qualidade no futebol feminino neste 2020, ou empatou (Brasil, Canadá e França, todos esses jogos no torneio amistoso de março, quando a pandemia eclodia na Europa) ou perdeu (Estados Unidos - em amistoso no mês passado, mesmo após nove meses de inatividade, as norte-americanas fizeram 2 a 0 sobre as Leoas Laranjas, com até mais facilidade do que tiveram na final da Copa). De quebra, o anúncio da saída de Sarina Wiegman rumo à seleção da Inglaterra, depois do torneio olímpico de futebol feminino que ocorrerá (?) em Tóquio, deixou a impressão melancólica de um fim de ciclo. Se quiser continuar a ascensão e se confirmar como seleção de ponta no futebol feminino mundial, a Holanda precisará de boas atuações em Tóquio - e nos anos seguintes, sob nova direção - a sucessora de Sarina Wiegman deve ser anunciada em janeiro.
Até porque, na liga feminina, independentemente das dificuldades do PSV (as ambiciosas contratações da goleira Van Veenendaal e da zagueira Mandy van den Berg não trouxeram resultados desejados até agora) e da superioridade do Ajax (líder com 100% de aproveitamento), a fragilidade dos Países Baixos ainda é inegável, como provam as eliminações dos supracitados PSV e Ajax na Liga dos Campeões das mulheres. E no campeonato masculino, a pandemia descortinou um cenário coberto de dúvidas. Uma das dúvidas, eterna, já que a Eredivisie 2019/20 foi interrompida sem campeão nem rebaixados: quem ganharia entre Ajax e AZ, que estavam empatados na ponta? Depois, a consequência imediata mais urgente: qual será, exatamente, o dano financeiro causado aos clubes médios e pequenos pela interrupção da fonte de renda que eram as bilheterias? Mesmo agremiações um pouco mais robustas, como Heerenveen ou Vitesse, sofrem nos balanços com a ausência obrigatória de público nos estádios.
Obviamente, a pandemia tirou o público dos estádios holandeses. Eles sofrem com isso, até mesmo financeiramente. E pensam em até quando isso ocorrerá (Erwin Spek/Soccrates/Getty Images) |
Aliás, mesmo os clubes maiores dos Países Baixos ainda deixaram claro, nesta metade da temporada, que lhes falta condições de sonhar em repetir o que o Ajax fez em 2018/19. A começar pelo próprio Ajax: o apego crônico ao estilo de jogo, algumas falhas em momentos cruciais e a falta de alternativas confiáveis para as ausências vindas de lesão tornaram a eliminação na Liga dos Campeões inevitáveis. AZ e Feyenoord sonharam em avançar na Liga Europa, mas suas incompetências cobraram um duro preço. E até o PSV, que mostrou poder de reação para garantir a classificação na Liga Europa, ainda sofre com inconstâncias vez por outra - causadas até por fatores externos, como o surto de COVID-19 que vitimou o grupo de jogadores, em outubro, que deixou sequelas físicas só agora sendo superadas.
Enfim, 2020 jogou o futebol holandês num cenário cheio de pontos de interrogação - até inesperados, já que não havia pandemia antes do começo do ano. Tais dúvidas podem ter respostas negativas. Mas... também podem ter respostas positivas. Na geração masculina que trouxe a Holanda de volta a um Europeu sub-21, após oito anos, e que tem vários nomes capazes de aparecerem também na seleção adulta (Teun Koopmeiners, Abdou Harroui, Calvin Stengs, Myron Boadu). Nas jogadoras que, lentamente, começam a se destacar na seleção feminina - caso das atacantes Katja Snoeijs e Joëlle Smits. No surgimento das vacinas que podem, daqui a um tempo, possibilitar o retorno gradual do público aos estádios.
2021 revelará o teor dessas respostas.
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