quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Portas da esperança

Final feliz: a seleção masculina da Holanda sintetizou os (des)caminhos do futebol do país em 2021. Por sua própria desorganização, sofreu demais. Mas conseguiu os objetivos (KNVB Media)

Pode a seleção masculina de futebol de um país atrair desconfianças, ter decepcionado pesadamente no grande torneio do ano... mas poder considerar que a grande missão do ano foi cumprida? Pode a seleção feminina dessa mesma nação ser vista com um olhar também fortemente duvidoso, ainda que conte com algumas das melhores jogadoras do mundo? Pode o cenário de clubes do país seguir com a liga masculina tendo nível técnico questionável... e, ao mesmo tempo, ver todos os times presentes em competições europeias classificados para os mata-matas delas? Pode, tudo isso pode. Pelo menos na Holanda (Países Baixos). Por lá, o futebol segue sendo conduzido de uma maneira muito mais desorganizada do que possa parecer, mas certos movimentos trazem motivos para se pensar que o futebol neerlandês pode estar se preparando para subir de nível nos próximos anos.

Seleção masculina: por enquanto, o alívio

Nada mostrou melhor esse vai-e-vem em 2021 do que a trajetória da seleção masculina. Bastou começar o ano com derrota logo na estreia pelas eliminatórias da Copa de 2022 (4 a 2 para a Turquia, em março) para que a desconfiança crônica sobre o trabalho de Frank de Boer no comando chegasse a níveis irrespiráveis. Nem mesmo vencer Letônia (2 a 0, em casa) e golear Gibraltar (7 a 0, fora) nas rodadas seguintes diminuía a impressão de que o único modo do substituto de Ronald Koeman ser perdoado por torcida e imprensa era... ganhar a Euro que vinha. Para tanto - e para superar problemas como a previsível ausência de Virgil van Dijk -, De Boer fazia o que podia. Como, por exemplo, decidir a mudança polêmica para três zagueiros, pouco antes da estreia no torneio continental. Por um lado, isso permitiu um melhor aproveitamento de nomes como Stefan de Vrij e Wout Weghorst, que vinha em boa fase na época. Por outro, não melhorou muito as coisas em campo, como se viu em amistosos como o 2 a 2 contra a Escócia e o 3 a 0 contra a Geórgia.

Sob Frank de Boer, a Laranja só tinha um jeito de vencer as desconfianças: vencendo também a Euro 2020(+1). Começou bem na fase de grupos. Mas quando encarou adversidades, contra a República Tcheca... teve o final esperado e lamentável (Pim Ras Fotografie)

Enfim, a Laranja chegava à Euro sob a impressão pesarosa de que não iria muito longe. Medidas como o polêmico corte de Jasper Cillessen (infectado pelo coronavírus) no gol - possibilitando um inesperado retorno de Maarten Stekelenburg - deixavam Frank de Boer sob desconfiança quase insuportável. A fase de grupos minorou isso, é verdade: a Holanda mostrou alguma segurança, venceu seus três jogos, ficou com um caminho aparentemente acessível rumo às semifinais, e até exibiu destaques inesperados, personificados em Denzel Dumfries. Mas... ela não havia sido testada de verdade na primeira fase. Jogara sem ter de enfrentar muitas adversidades. Quando as enfrentou, contra a República Tcheca, nas oitavas de final - o gol perdido por Donyell Malen no começo do segundo tempo, a expulsão de Matthijs de Ligt, poucos minutos depois -, desmilinguiu inacreditavelmente, sendo eliminada de modo inquestionável. A queda brusca na Euro, e as queixas de familiares de jogadores à esposa Helen, ainda no estádio, deixaram claro: Frank de Boer era uma demissão esperando para acontecer. Aconteceu, dois dias depois da eliminação.

Entre uma variedade de nomes holandeses à disposição que não empolgavam muito (e os que empolgavam estavam empregados) e uma dúvida sobre a hipótese de um técnico estrangeiro (e se a experiência válida terminasse com a Holanda fora da Copa?), a federação preferiu fazer o que não fizera após a saída de Ronald Koeman: trazer Louis van Gaal para a "terapia de choque". E Van Gaal saiu da confortável "semiaposentadoria" em sua casa do Algarve, em Portugal, para tentar mostrar que sua inegável competência não se enferrujara. Teria três rodadas decisivas nas eliminatórias, em setembro, contra os três principais concorrentes por vaga na Copa (Noruega, Montenegro e Turquia) e não poderia perder nenhum jogo. 

Pois bem: duas vitórias e um empate sinalizaram que Van Gaal conseguiria cumprir a tarefa. Nomes como Virgil van Dijk, Frenkie de Jong, Georginio Wijnaldum e Memphis Depay jogavam suficientemente - sem brilhar, mas com correção. Havia até como Van Gaal abrir espaço para novidades (Justin Bijlow no gol; Arnaut Danjuma, Cody Gakpo e Noa Lang, nas pontas). Houve um tropeço assustador na penúltima rodada, contra Montenegro, é verdade. Mas a Holanda se aprumou, venceu a Noruega e, por paus ou por pedras, conseguiu voltar a uma Copa, após oito anos. Mas se sabe: há muito o que melhorar, até o Mundial começar. Tempo para isso, Van Gaal terá. Os amistosos e a fase de grupos da Liga das Nações indicarão se isso será feito. Por enquanto, o que há é o alívio.

Na seleção feminina, a queda progressiva desde 2019 continuou - e nem a mudança de técnico tirou a incômoda impressão de que o tempo passou (Pim Ras Fotografie)

Seleção feminina: o carro bom precisa de conserto

Nem mesmo estar classificada para a Euro das mulheres, a ser disputada na Inglaterra em 2022, tirava a incômoda impressão de que a seleção feminina da Holanda vivia um fim de ciclo. Aliás, literalmente, já que a disputa do torneio olímpico, nos Jogos de Tóquio, marcaria os últimos jogos da marcante passagem de Sarina Wiegman como treinadora das Leoas Laranjas. Sarina faria falta, claro: a estátua de sua imagem, inaugurada pouco antes das Olimpíadas, era a prova de como seus quatro anos de trabalho haviam mudado o status neerlandês no futebol de mulheres. Porém, de nada adiantaria se não houvesse uma despedida honrosa em terras japonesas. 

Bem, quase houve. A campanha holandesa foi recheada de dificuldades, em campo (o corte traumático de Sherida Spitse, com o joelho lesionado a 48 horas da estreia contra Zâmbia) e fora dele (as restrições causadas pela pandemia de COVID-19 perturbavam as jogadoras, a ponto de Sarina Wiegman ter pedido a flexibilização de circulação para que pudessem ir à parte de fora do hotel). E bastaram os 10 a 3 na estreia contra Zâmbia, em 21 de julho, para se notar os dois pontos principais que a equipe laranja tinha. Pelo lado positivo, a força de seu ataque - personificada em Vivianne Miedema, que comprovou ser craque, precisando de apenas quatro partidas para ser a maior goleadora de um só torneio olímpico - 10 gols! Pelo negativo, a fragilidade da defesa, já exposta contra as zambianas. Reforçada no empate com o Brasil (3 a 3). E consolidada até nos 8 a 2 contra a China, último jogo da fase de grupos.

Mas pior do que a fragilidade defensiva - já conhecida há algum tempo - foi notar que a Holanda, apesar de seu crescimento notável no futebol feminino, ainda não consegue se valer em momentos difíceis. Foi o que se viu nas quartas de final do torneio olímpico. Era possível superar a seleção dos Estados Unidos, ainda que ela tenha superado com facilidade as neerlandesas no primeiro tempo. O pênalti perdido por Lieke Martens, ainda no tempo normal, com 2 a 2 no placar, foi um incômodo sinal de que a vitória norte-americana viria. Como veio, nos pênaltis. Menos do que a derrota, doeu mais perder saber que havia capacidade para avançar.

E essa incapacidade de provar o valor quando necessário segue, de certa forma, nas eliminatórias da Copa. Azar de Mark Parsons: já pressionado só por ser o sucessor de Sarina Wiegman, o técnico inglês tem comandado uma equipe que lidera seu grupo na qualificação. Mas que sofre: não se espera de uma seleção vice-campeã mundial dificuldades como as tidas contra a República Tcheca (dois empates), ou no jogo que já aconteceu contra a Islândia (2 a 0, só na reta final de jogo). Até por isso, Parsons reconheceu, em entrevista à revista Voetbal International: a Holanda está em situação inferior a Alemanha, Suécia, Espanha, Inglaterra... e também pela mesma razão, já tenta fazer, aqui e ali, mudanças na escalação já habitual há pelo menos dois anos. Até porque ela se mostrou repetitiva. Enfim: no futebol feminino, a Holanda é um bom carro. Mas que passa por consertos necessários. Ainda mais porque a Euro que vem aí pode responder se a fase vivida desde 2017 é apenas um sonho que está acabando - ou se está apenas começando um novo capítulo dele.

Com Antony e Haller, o Ajax imperou em seu grupo na Liga dos Campeões, sintetizando a boa fase dos clubes holandeses - mas na liga nacional, o líder é o PSV... (Getty Images)

Os times: sintetizando as alternâncias

Mas é possível que o principal símbolo do ano estranho - no bom sentido - tenha sido o que se viu nos clubes dos Países Baixos. O Ajax segue sendo o mais badalado do país; e, no entanto, o líder do Campeonato Holandês é o PSV, com muito menos dificuldades de se impor a times defensivos do que os Ajacieden. Que passaram às oitavas de final da Liga dos Campeões, como era plausível - mas como líderes do grupo, com seis vitórias em seis jogos, algo inesperado.

Por falar em torneios europeus, como imaginar que todos os times do país avançariam aos mata-matas em seus respectivos torneios - PSV "caindo" da Liga Europa para a Conference League, onde tiveram êxito Feyenoord, AZ e Vitesse? Falando mais precisamente do Feyenoord: como imaginar que um time que andava desanimado, que fora "alvejado" pela perda do principal jogador nos últimos anos (Steven Berghuis) para o arquirrival (Ajax), conseguiria uma temporada tão animadora?

Enfim, por linhas tortas, com muito ainda a melhorar, o futebol da Holanda (Países Baixos) chegou a algumas portas da esperança em 2021. Será interessante ver se ele, e seus personagens principais, terão competência para abri-las em 2022.


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