segunda-feira, 15 de maio de 2017

Homens com uma missão. Cumprida

O Feyenoord tinha um conjunto de nomes experientes para tentarem lavar a alma de uma sofrida torcida. Liderados por Kuyt (à frente, em destaque), eles conseguiram: trouxeram o título da Eredivisie, após 18 anos (Dean Mouhtaropoulos/Getty Images)
Certo, a dor dos anos de crise já estava relativamente cicatrizada no Feyenoord. Depois dos 10 a 0 sofridos para o PSV, na temporada 2010/11 do Campeonato Holandês, o Stadionclub tivera John Guidetti e seus gols, mais uma jovem legião de promessas e o técnico Ronald Koeman, que levaram ao vice-campeonato em 2011/12. Guidetti saiu, chegou Graziano Pellè, os gols continuaram... e seguiram-se campanhas boas, com o 3º lugar na Eredivisie 2012/13 e outro vice-campeonato, em 2013/14. Aí, mais gente saiu: Daryl Janmaat, Stefan de Vrij, Bruno Martins Indi, os próprios Pellè e Koeman... E não houve como evitar certa queda, vista no 4º lugar de 2014/15.

Isto é: embora o clube de Roterdã já se houvesse restabelecido como um dos três grandes holandeses, ainda faltava algo. Para trazer isso, alguns homens começaram a chegar, com uma missão: trazer esse “algo”, o título que faltava, o título que encerraria um longo jejum, que faria o Feyenoord ser definitivamente respeitado de novo, na Holanda e no mundo. Enfim, neste final de semana que se passou, esses homens cumpriram o que se pedia deles: após 18 anos, enfim o Feyenoord pode gritar, de novo, que é o maior da Eredivisie.

O primeiro desses homens já estava no clube desde sua carreira de jogador, a bem da verdade: lateral esquerdo nascido e criado futebolisticamente em De Kuip, Giovanni van Bronckhorst correu mundo (Rangers, Arsenal, Barcelona), ganhou títulos notáveis, fez uma carreira elogiável... e voltou ao Feyenoord em 2007. Lá ficou até terminar a carreira, em 2010 – e fazendo seu último jogo profissional numa final de Copa do Mundo. Logo que se despediu, Gio passou imediatamente ao banco de reservas. Primeiro, trabalhando as categorias de base por alguns meses; depois, em maio de 2011, passando a auxiliar Ronald Koeman, junto de outro ex-jogador marcante no Feyenoord, Jean-Paul van Gastel (presente no título de 1998/99). 

Van Bronckhorst ainda trabalhou junto de Fred Rutten, durante grande parte da temporada 2014/15. Porém, com a crise vivida pela equipe no final daquele ano, o terceiro lugar que parecia garantido foi perdido, e Rutten também perdeu algo: seu emprego. Assim, uma transição precisou passar abruptamente ao seu último capítulo, já nos play-offs por vaga na Liga Europa, em 2014/15, com Van Bronckhorst sendo promovido a técnico principal, às pressas, tendo a seu lado Van Gastel como auxiliar. O técnico novato (e novo: tinha 40 anos, completos em fevereiro de 2015) fracassou em seu primeiro desafio: não conseguiu levar o Feyenoord à Liga Europa na temporada 2015/16. Contudo, sabia-se: até pelo status respeitável perante a torcida, Van Bronckhorst tinha salvo-conduto para começar seu trabalho. 

Porém, de nada adianta um técnico sem jogadores. E o outro homem com uma missão chegou a Roterdã justamente na metade de 2015. Assim como o técnico, Dirk Kuyt já tinha história na “banheira”: mesmo vindo de outro clube (começara a carreira no Utrecht), Kuyt já conseguira virar ídolo graças à primeira passagem pelo Feyenoord, entre 2004 e 2006, quando até goleador da Eredivisie foi (fez 29 gols em 2004/05), além de receber o prêmio de melhor jogador do campeonato em 2005/06. Deixara saudades, e fora fazer carreira tão elogiável quanto a de Van Bronckhorst: seus inquestionáveis profissionalismo e dedicação em campo tornaram o nativo de Katwijk figura querida em Liverpool e Fenerbahçe – sem contar o coadjuvante valioso que foi nas campanhas da seleção holandesa nas Copas de 2010 e 2014. Aos 35 anos, o atacante aceitou voltar. Para, quem sabe, ser o que Guidetti e Pellè já foram: um símbolo. Talvez um símbolo maior, com a salva de prata da Eredivisie nas mãos.

Havia mais alguns homens que foram se juntando. Como o zagueiro brasileiro Eric Botteghin, de postura séria em campo e carreira cuidadosamente construída na Holanda (do pequeno Zwolle para um pequeno-médio, o NAC Breda; de lá para um médio, o Groningen; e do Groningen para De Kuip). Como Tonny Trindade de Vilhena: considerado uma promessa talentosa desde que se destacou no título europeu sub-17 de 2011, ganho pela seleção holandesa, o jovem de ascendência angolana enfim ganhava espaço a partir de 2015/16. Como Eljero Elia: promissor na época em que integrou o elenco vice-campeão mundial na Copa de 2010, Elia decidiu voltar à Holanda em 2015 para recomeçar, após ter o filme chamuscado pelas passagens (no mínimo) discretas por Juventus, Werder Bremen e Southampton. Eles se somaram a gente que já estava lá: Jan-Arie van der Heijden, Karim El Ahmadi, Jens Toornstra, Michiel Kramer... Ah, sim: no banco, para ajudar a dupla Van Bronckhorst-Van Gastel, um personagem experimentado no campo e no banco: Jan Wouters.

Parecia que a redenção do Feyenoord na Eredivisie viria já na temporada 2015/16, com boas atuações no turno. Todavia, já no encerramento daquele ano, havia a perigosa tendência de queda – confirmada na volta da pausa de inverno, em janeiro e fevereiro de 2016: oito jogos sem vitória (sete derrotas e um empate). A missão não seria cumprida. Claro, a frustração foi gigante. Mas a missão continuava. Para aprender mais, Van Bronckhorst engoliu a contratação temporária de Dick Advocaat, para umas semanas de conversas e acompanhamento conjunto dos treinos. Bastou para ganhar mais conceitos, reerguer o moral do grupo, conseguir treze partidas sem perder na Eredivisie (garantindo a terceira posição) e, mais do que isso, conquistar o primeiro título do clube desde 2007/08: a Copa da Holanda. Era um bom prêmio de consolação, mas não era o que a torcida queria. Ainda.

Era preciso consertar os erros, nesta temporada. Para isso, veio da Dinamarca mais um homem com uma missão: Nicolai Jorgensen, artilheiro da temporada 2015/16 pelo Kobenhavn. Também chegou da Inglaterra, por empréstimo, um daqueles holandeses que surge bem mas se sai discretamente num grande centro: Steven Berghuis, bom por Twente e AZ, apagado no Watford. Simultaneamente, perdeu-se um personagem importante: o goleiro Kenneth Vermeer, tirado de combate pelo rompimento do tendão de Aquiles. Por sorte, o experiente australiano Brad Jones estava solto após o fim do contrato com o NEC -  veio de graça para o Feyenoord. 

E assim começou a temporada. Com tudo: nove vitórias seguidas – incluindo 1 a 0 sobre o PSV, em Eindhoven. Mas as dúvidas continuaram. Continuariam com a primeira derrota, 1 a 0 para o Go Ahead Eagles. Continuariam sempre. Ainda mais quando combinadas com os problemas de cada um daqueles homens. Como Vilhena, que passou tempos dificílimos com a morte da mãe, Jeannette, que o tirou de campo por algumas rodadas – sem contar as suspensões que o afastavam algumas vezes. Como Dirk Kuyt, até: se a ausência do capitão em campo era inimaginável no turno, aos poucos fez-se necessário colocá-lo no banco durante a maior parte do returno, com a maior velocidade que Toornstra oferecia. Kuyt deixava clara sua discordância. Mas nunca arranjou uma briga. Afinal, havia uma missão maior.

As vitórias seguiam-se. Com brilhantismo (6 a 1 no Sparta Rotterdam, 8 a 0 no Go Ahead Eagles) ou com dificuldades (que virada foi o 2 a 1 no Heerenveen, fora de casa, na 27ª rodada... e a arbitragem eletrônica decidindo o 2 a 1 no PSV, na 25ª?). Desde a primeira rodada, o Stadionclub jamais se descolou da primeira posição. Mas as dúvidas também continuavam: qualquer derrota (do magro 1 a 0 imposto pelo Sparta no returno ao duro impacto do 2 a 1 para o Ajax no Klassieker) bastava para fazer crer que o Feyenoord fracassaria, que de novo não daria, que o ascendente Ajax atropelaria. Como capítulo final das desconfianças, o 3 a 0 inapelável do Excelsior na penúltima rodada. 

Então, o Feyenoord se focou. O fim do calvário estava perto demais para que se permitisse qualquer erro contra o Heracles Almelo. E foi o que se viu: De Kuip se transformando em “De Kuyt”, com uma das maiores atuações da carreira do veterano. O nível de concentração altíssimo, como visto na maior parte da temporada. E um 3 a 1 para confirmar o inquestionável título, que foi festejado pela torcida do começo ao fim. Aliás, foi festejado, não: está sendo, como mostram as 150 mil pessoas presentes à avenida Coolsingel nesta segunda, quando o sonho da exibição da salva de prata foi realizado.

O que será? Ninguém sabe. Apesar de já ter certa experiência, Van Bronckhorst possui apenas dois anos de carreira como técnico; tem muito o que aprender antes de saltos mais ambiciosos. Vilhena renovou contrato até 2020 – e ofereceu o título “a toda a torcida, e a uma pessoa em especial”, lembrando a mãe que lhe falta. Toornstra não sabe o que fará: se renova ou se deixa o clube. Brad Jones tem várias opções: pode até ficar, mas com a recuperação do titular original Vermeer, clubes da Inglaterra ou Turquia são alternativas a serem consideradas. O emprestado Berghuis quer ficar. Já Elia quer sair: “Quero atuar num nível mais alto”. E Kuyt, entronizado na galeria de grandes ídolos do Feyenoord, é enigmático: pode seguir ou pode terminar a carreira, em alta. Seja como for, Martin van Geel, diretor geral do Feyenoord, já declarou: o clube conta com ele.

E seja como for, agora não é hora disso. É hora de ver Van Bronckhorst, Kuyt, Vilhena, Elia, Jorgensen, Brad Jones, Berghuis, todos eles voltarem as costas e caminharem rumo ao horizonte, com o sol poente, como no fim de um filme de faroeste. Como velhos pistoleiros seguros. Afinal, eles tinham uma missão. E a cumpriram.

(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 15 de maio de 2017)

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