segunda-feira, 8 de junho de 2020

A Holanda na Copa de 1990: as vaidades destruíram o sonho

A foto oficial da seleção da Holanda para a Copa de 1990: após o título europeu de 1988, esta Laranja estava cotada para fazer história, mas fracassou na Itália, por problemas dentro e fora de campo (Arquivo ANP)

8 de junho de 2020. Há exatamente trinta anos, começava mais uma Copa do Mundo, na Itália. E era possível dizer: junto do tradicional quarteto Itália-Alemanha-Argentina-Brasil, a Holanda era considerada grande favorita ao título. Provavelmente, nunca mais teve tanto favoritismo antes de um grande torneio - talvez, somente na Euro 2000 em que foi um dos países-sedes. Os motivos sobravam. A Laranja vinha de seu único título, a Euro 1988, com uma campanha digna de conto de fadas (começo mediano, crescimento gradual, êxtase na vitória da semifinal sobre a Alemanha, apoteose na final). 

E a qualidade daquela geração de jogadores que enfim dera um troféu à Laranja era inegável. Coroada pelo trio Rijkaard-Gullit-Van Basten, três dos principais nomes de um Milan que fazia história então, como bicampeão europeu. Sem contar Ronald Koeman, então um dos principais zagueiros do mundo, no Barcelona. Vários nomes experientes e firmes, como Hans van Breukelen e Jan Wouters. E uma nova geração que despontava, simbolizada em nomes como Aron Winter, Bryan Roy e os irmãos Witschge, Richard e Rob.

Porém, veio a decepção na Itália: quatro jogos, três empates, uma derrota nas oitavas de final. Um time sem vontade, desmotivado, apático. E até hoje, 30 anos depois, torcedores holandeses (talvez no mundo todo) se perguntam: como uma das grandes gerações de jogadores que o país legou ao futebol, campeã europeia, pôde ser tão decepcionante? O título de um documentário com aquela campanha como assunto sintetiza: "1990, como pôde dar tão errado?". A resposta é mais fácil do que parece: além do parco nível de jogo mostrado em campos italianos, a unidade mostrada pelo elenco na Euro 1988 fora quebrada num espaço de dois anos, por traições e guerra de vaidades. São exatamente essa quebra de unidade, e as vaidades que destruíram o sonho do título mundial, os assuntos principais deste texto.

Seleção ofensivamente fraca nas Eliminatórias, jogadores contrários a seus métodos: Thijs Libregts teve vida dificílima à frente da Laranja nas Eliminatórias da Copa de 1990 (AFP)

A campanha nas Eliminatórias: um técnico indesejado


A primeira rachadura na harmonia interna trazida pela conquista da Euro (e no encantamento da torcida por aquela seleção) veio logo depois dela, por sinal. Acumulando o posto de treinador com o cargo de diretor técnico da federação, Rinus Michels já tivera a saída confirmada antes da Euro. Título continental conquistado, Michels partiu para o Bayer Leverkusen, deixando o comando da seleção para Thijs Libregts. Que teve péssima relação com os jogadores, em sua turbulenta passagem de um ano e meio como treinador da seleção holandesa. 

Com Gullit, Libregts tinha problemas ainda piores. Em 1984, quando este treinara aquele no Feyenoord, o treinador deu uma entrevista ao jornal De Volkskrant, elogiando-o, mas com uma advertência que seguia pela perigosa seara étnica: “Eu espero que a mentalidade dele [Gullit] continue boa. Negros, sabe como é...”. Antes mesmo da Euro, em fevereiro de 1988, entrevistado pela revista Voetbal International, Gullit já reconhecia: “Será difícil trabalhar com um treinador como Libregts”. E como foi. 

Além do mais, o grupo 4 em que os Países Baixos haviam caído nas eliminatórias europeias para a Copa de 1990 merecia alguma atenção. Primeiramente, porque um dos adversários era simplesmente... a Alemanha, rival histórica - e derrotada na semifinal da Euro, sedenta pelo reencontro. E mesmo que as duas arquirrivais fossem as favoritas óbvias às vagas no Mundial, era bom prestar atenção nos outros dois adversários da chave, País de Gales e Finlândia. Principalmente com os galeses, que tinham jogadores de destaque em sua história, com o goleiro Neville Southall e os atacantes Ian Rush e Mark Hughes à frente. 

As dificuldades já apareceram para a Laranja na estreia pela qualificação, contra o País de Gales, em 14 de setembro de 1988, no Estádio Olímpico de Amsterdã. Do time campeão da Euro, só o veterano Arnold Mühren (37 anos) estava fora, substituído por Hendrie Krüzen. Ainda assim, Southall segurou por muito tempo o 0 a 0, até Gullit marcar o gol da suada vitória, já aos 83'. A Holanda jogara para o gasto - e também seria assim no segundo compromisso pelas Eliminatórias, ainda em 1988. Até porque ele seria difícil: contra a Alemanha, dia 19 de outubro de 1988, no Estádio Olímpico de Munique, o mesmo da final da Euro. 

E a Alemanha tinha uma geração igualmente badalada, somando a relativa experiência de Andreas Brehme e Lothar Matthäus à novidade de Bodo Illgner, Olaf Thon e Jürgen Klinsmann. Além do mais, se a Holanda tinha uma vitória magra sobre Gales, o Nationalelf já estreara nas Eliminatórias com um 4 a 0 na Finlândia. Briga de cachorros grandes, com a Alemanha mordendo mais em Munique: mesmo com um 0 a 0 no fim, mandou até bola na trave, com Olaf Thon. Para piorar, a Laranja terminou seu 1988 com derrota: num amistoso contra a Itália, em novembro, 1 a 0 Azzurra.


1989 começou para a Holanda com duas vitórias em amistosos (2 a 0 sobre Israel, num amistoso em 4 de janeiro, e num reencontro após a final da Euro, 2 a 0 na União Soviética, em 22 de março). Tais resultados reanimaram a torcida. Até porque se sabia: o foco da Holanda estava todo no esperado reencontro com a Alemanha pela qualificação para a Copa, dia 26 de abril de 1989, em De Kuip. Novamente, partida equilibradíssima - com a Holanda tendo um goleiro diferente (ao invés de Van Breukelen, jogava Joop Hiele, do Feyenoord). E de novo, a Alemanha buscou mais o gol. Conseguiu o primeiro: aos 68', Karlheinz Riedle fez 1 a 0 em Roterdã. A Laranja parecia tímida e defensiva demais, preferindo os contragolpes para buscar o gol. Só ficou mais ofensiva com a desvantagem no placar. E no fim do jogo em De Kuip, Van Basten foi ao resgate: aos 87', fez 1 a 1 e evitou que a Alemanha disparasse rumo à vaga direta na Copa de 1990. Ambas tinham quatro pontos no grupo 4 das Eliminatórias - e chegar à Copa era assunto privativo delas: Finlândia e Gales só tinham um ponto.


Começaram aí os rachas. Após o empate com os alemães em Roterdã, Gullit escreveu uma coluna ao jornal De Telegraaf desancando o técnico, exatamente por seu estilo tático defensivo demais. Pior: Thijs Libregts passava recibo às críticas dos jogadores que convocava, agindo de maneira autoritária demais, no estilo do “quem manda aqui sou eu”. Para piorar a situação de Gullit, ele começava a sofrer com sérios problemas no joelho direito justamente naquela época. Por isso, a "Tulipa Negra" começou no banco contra a Finlândia, em Helsinque, no quarto jogo da Oranje pelas Eliminatórias da Copa, em 31 de maio de 1989, uma semana depois de jogar no sacrifício (e brilhar) pelo Milan na final da Copa dos Campeões. Outra partida mais difícil do que se supunha para a Laranja: com um Van Basten sem brilho, a Laranja sofria sem gols. Gullit só entrou aos 55', no lugar de Juul Ellerman, do PSV. E de novo, coube a ele ajudar a seleção batava a se salvar, no fim: aos 87', foi justamente Gullit o autor da jogada do gol da vitória, cruzando para Wim Kieft fazer 1 a 0. Uma vitória decisiva: naquela rodada, a Alemanha tropeçou contra o País de Gales (0 a 0), e a Holanda passou à frente no Grupo 4, com seis pontos, contra cinco dos arquirrivais.

Começou o segundo semestre de 1989, e os problemas foram aumentando para a Holanda. Primeiro, a lesão no joelho direito de Gullit se agravou, e uma cirurgia tirou o atacante e capitão dos campos pelo resto do ano. Outro era uma sombra a se avolumar sobre Thijs Libregts: Rinus Michels havia sido demitido do Bayer Leverkusen no fim da temporada 1988/89 - e sondava o retorno ao cargo de diretor técnico da federação holandesa. Paralelamente, a relação de Libregts com o grupo de jogadores piorava mais e mais. Na vitória contra o País de Gales, pela quinta rodada das Eliminatórias, que confirmou a classificação da Holanda à Copa de 1990 (2 a 1, em Wrexham, 11 de outubro de 1989), Van Basten entrou somente aos 27 minutos do segundo tempo, substituindo Rob Witschge. Segundo o atacante do Milan, não havia lesão nenhuma que o impedisse de jogar – algo raro, em se tratando de Van Basten. E nada de justificativas de Libregts. O que só arruinava mais e mais sua (não) aceitação no elenco. 

Bem ou mal, a Laranja voltava a uma Copa, após 12 anos. Com oito pontos, estava na primeira posição do grupo 4. Mas havia claros problemas quanto ao estilo de jogo, considerado conservador demais para um país que sempre teve gosto pelo ofensivo. Basta dizer que, em cinco jogos de qualificação, tinham sido apenas cinco gols. Menos do que a Alemanha, que na mesma rodada da classificação holandesa, goleara a Finlândia (6 a 1). Em sua defesa, Libregts podia dizer que tentava renovar o grupo de jogadores, com revelações e retornados: os zagueiros Adick Koot (PSV) e Graeme Rutjes (Mechelen-BEL), os volantes Rob Reekers (Bochum-ALE) e Henk Fräser (Roda JC), o meio-campista Rob Witschge (Saint Étienne-FRA), os atacantes Bryan Roy (Ajax), John van Loen (Roda JC) e Hans Gillhaus (Aberdeen-ESC). Mas era insuficiente para minorar a insatisfação da torcida e, mais importante, do grupo de jogadores.

Rinus Michels (à esquerda) volta à federação holandesa, após fracassar no Bayer Leverkusen. E a passagem de Libregts pela seleção começou a acabar, ainda em 1989 (Cor Mulder/ANP)

A resolução do problema foi brusca. Ainda em 1989, antes do último jogo pelas eliminatórias, houve uma reunião, na cidade de Oegstgeest. Os envolvidos eram Thijs Libregts, Nol de Ruiter (auxiliar técnico fixo da seleção), Martin van Rooijen (diretor de futebol profissional da federação), Rinus Michels e um grupo de “cardeais” do elenco - o capitão Gullit (presente, mesmo com a lesão no joelho que o mantinha longe dos campos), Van Basten, o goleiro Van Breukelen e Ronald Koeman. Ali ficou definido: Libregts seguiria treinando a Holanda, mas com Michels tornando-se um diretor técnico da federação, sendo interlocutor do treinador. Assim funcionou a Holanda  na última partida das Eliminatórias: 3 a 0, em De Kuip, no dia 15 de novembro de 1989, completando a campanha de qualificação com a primeira posição do grupo 4, tendo dez pontos, um acima da Alemanha.

1989 terminou para a Oranje com o amistoso que celebrou o centenário da federação, contra o Brasil (1 a 0 para a Seleção, em Roterdã, gol de Careca, em 20 de dezembro). Nenhum dos grandes destaques holandeses esteve em campo, fosse por cansaço (Van Basten e Rijkaard haviam acabado de disputar e ganhar o Mundial Interclubes pelo Milan, havia três dias) ou lesão (o problema no joelho de Gullit). Com todas essas faltas, Libregts experimentou mais: contra o Brasil, estrearam na seleção o lateral direito Edward Sturing (Vitesse) e o atacante Frank Berghuis (Volendam - Frank é pai do atual Steven Berghuis). Só que a derrota piorou a visão de torcida e imprensa neerlandesas sobre o trabalho do treinador da Laranja - o De Telegraaf trazia na manchete: "Ausência das estrelas quebra o poder de Libregts". Enfim, o clima não melhorou muito: todos desconfiavam de Libregts - que agora, ainda tinha a sombra de Rinus Michels, capacitado a assumir o comando da seleção.


Antes da Copa, a traição decisiva


Se 1989 terminara com um amistoso contra outro favorito ao título mundial, o ano da Copa começou com outro amistoso, contra o país-sede do torneio. Em 21 de fevereiro de 1990, contra a Itália, com o auxiliar Nol de Ruiter comandando a seleção (Libregts acabara de passar por uma remoção de hérnia de disco), quase todos os principais jogadores estavam disponíveis, só faltando Gullit - pessimista sobre suas chances de estar na Copa, o atacante alertou: "Não contem comigo". O que não significou que os resultados foram melhores: um empate sem graça em 0 a 0. Em março, outro amistoso da Holanda - e um desastre: derrota por 2 a 1 para a União Soviética, no dia 28, em Moscou, ainda sob o comando de Nol de Ruiter. Na derrota, pelo menos uma história muito triste: o convocado Marcel Peeper, atacante do Twente, estreava pela Laranja... mas só jogou 11 minutos: sofreu uma seríssima lesão no joelho, que encurtou bastante sua carreira.

O péssimo começo da Oranje num ano que deveria ser consagrador foi a gota d'água para o grupo dos convocados habituais. Já em abril, por meio de Van Basten, o elenco exigiu a Rinus Michels outro técnico para comandá-los na Copa. Um técnico que tivesse mais pulso firme e ascendência sobre os jogadores do que Libregts jamais teria. Após uma tensa reunião entre Libregts e os atletas, com Gullit confirmando que o elenco não o queria mais, o técnico deixou a seleção. E nova reunião foi feita, entre Michels, os líderes do grupo (Van Breukelen, Ronald Koeman, Gullit e Van Basten) e diretores da federação. 

Nessa reunião, os jogadores receberam uma lista com três sugestões de nomes para treinar a Oranje na Copa. Eram Aad de Mos (treinador do Anderlecht, com sucesso no futebol belga – treinara o Mechelen campeão da Recopa em 1987/88), Leo Beenhakker (então técnico do Ajax, com passagem pela seleção entre 1985 e 1986) e... Johan Cruyff, que dispensava qualquer comentário (e já reerguia o Barcelona, que seria finalista da Recopa Europeia em 1990/91). O resultado? 8 votos para Cruyff, 5 para Beenhakker e 2 para De Mos. Em abril de 2020, falando ao site da federação holandesa, Gullit justificou o desejo do grupo por Cruyff: "Sabíamos que precisávamos de alguém que tivesse o grupo na mão. Por isso votamos em Johan: ele conseguiria isso".

Os jogadores teriam o técnico que desejavam – e era de se imaginar o que um gênio como Cruyff faria com um elenco daquela qualidade. Teriam... se a federação não pensasse diferente. A KNVB traiu o combinado, ignorou a votação e anunciou Leo Beenhakker como treinador para a Copa. Rinus Michels justificou, em um livro sobre o torneio: “Tínhamos nossa própria visão sobre os três candidatos, na qual a relação pessoal não estava em discussão. Dependia mais de outras qualidades, e a direção de futebol profissional decidiu-se por Beenhakker em função delas. Foi uma comoção, sobretudo porque os partidários de Cruyff – com Van Basten à frente – disseram-se traídos. E traídos pelo homem de confiança deles – acho que falavam de mim. O que é injusto. (...) O trio do Milan não tinha autorização do grupo para nos comandar. Daí, imaginamos que poderíamos tirar nossas conclusões. Van Basten e seus representantes deveriam ter se tocado que a federação tem sua própria responsabilidade e deve, pois, seguir seu próprio caminho”.

Rinus Michels ficou isolado após sua decisão: ao ignorar o resultado de votação dos jogadores e fazer de Leo Beenhakker o treinador da Holanda na Copa (ao invés de Johan Cruyff), arruinou o ambiente da Laranja (Arquivo ANP)

Motivos? Nunca foram abertamente revelados. Mas fala-se em ciúme inconfesso de Rinus Michels. Afinal, se era Cruyff, e não ele, considerado o maior responsável pelo Futebol Total em 1974, o que aconteceria se o título mundial viesse em 1990? Por isso, supõe-se que o diretor técnico da federação decidiu “cortar o mal pela raiz”, evitando que o “Nummer 14” ocupasse um cargo que muitos lamentam não tê-lo visto ocupar. Além disso, sabe-se que Johan faria as coisas do jeito dele. E Michels talvez desejasse manter algum tipo de ascendência sobre a comissão técnica. Recentemente, dois destaques daquela seleção mantiveram essa suspeita. Na entrevista de abril de 2020, Gullit cogitou: "Talvez Michels tivesse a sensação de que seríamos campeões com Johan". E em maio de 2020, também falando ao site oficial da seleção holandesa, Van Basten pensou: "O porquê [Rinus Michels ignorou a votação], ninguém sabe. A única ideia que tenho é que ele pensou: 'Se Cruyff for campeão mundial, meu título pela Euro 1988 ficaria menos importante'. Penso assim. Talvez, realmente, essa decisão seja tão simples e tão infantil, assim mesmo. Não encontro outra explicação".

Fosse como fosse, houvera uma traição, uma quebra de confiança. O que já é ruim em qualquer relação. No futebol, então, “trairagem” é sinônimo de elenco rachado. Foi exatamente assim que o grupo de 22 jogadores começou a preparação para a Copa de 1990. Em qualidade técnica, não havia nada a questionar sobre os convocados por Beenhakker. Vários dos campeões da Euro 1988 estavam lá - Hans van Breukelen, Berry van Aerle, Adri van Tiggelen, Rijkaard, os irmãos Ronald e Erwin Koeman, Gerald Vanenburg, Jan Wouters, Wim Kieft, Van Basten... e Gullit, que vencera a corrida contra o tempo, se recuperara da cirurgia no joelho direito, voltou a jogar em abril de 1990 e foi incluído na lista. Além de todos eles, havia alguns novatos que faziam sucesso à época, como Bryan Roy e Richard Witschge (este, 21 anos, estreara na seleção já em 1990). Mas o rumo estava perdido.

Ao invés de acatar a votação e escolher Cruyff, Rinus Michels chamou Leo Beenhakker para treinar a Holanda na Copa de 1990. Mas "Don Leo" já chegou com seu trabalho comprometido (Arquivo ANP)

"Don Leo" já chegou à Laranja sem comando nenhum: com Rinus Michels simultaneamente auxiliando-o e sendo uma sombra, e um elenco que não o respeitava. Na verdade, o elenco não se dava bem nem com a federação: o lateral esquerdo Adri van Tiggelen chegou a dizer que “se formos campeões mundiais, vamos chutar os diretores de futebol profissional pra fora da festa”. Além do mais, os elogios e vaidades turbinavam o grupo. Afinal, Van Basten, Gullit e Rijkaard haviam acabado de ser bicampeões europeus com o Milan, e Ronald Koeman era considerado um dos melhores zagueiros do mundo, no Barcelona. Assim, as cisões já haviam se espraiado entre o próprio grupo: uns antipatizavam com o trio do Milan e com Koeman, julgando-os arrogantes, enquanto estes se irritavam com os colegas.

Já na reta final de preparação, os treinamentos para a Copa tinham o pior clima possível. Algo que se estendeu para os últimos amistosos holandeses antes do Mundial começar na Itália. Em 30 de maio de 1990, na cidade de Viena, a Áustria (considerada candidata a surpresa antes da Copa) fez 3 a 2 na Holanda - em atuação considerada "desastrosa" pelo De Telegraaf, a Áustria chegou a estar ganhando por 3 a 0. E nem mesmo a vitória dos Países Baixos no amistoso final - 2 a 0 na Iugoslávia, em Zagreb, em 3 de junho de 1990 - animou aquele grupo. Leo Beenhakker alertava: "Temos bons jogadores, mas não um bom time".

Ainda assim, havia ansiedade sobre o que a Holanda poderia fazer na Copa, com a fama de campeã europeia que tinha. Pelo menos, aqui no Brasil. Em seu guia para o Mundial, a revista Placar falava que a Holanda partiria para a "tentativa da segunda revolução": "O exército de Ruud Gullit, Van Basten, Rijkaard e Koeman pretende arrasar na Itália como seus antecessores de dezesseis anos atrás. E mais: conquistar o título inédito para seu país". No guia do Jornal do Brasil para a Copa em 28 de maio, Marcelo França ressaltou em reportagem os problemas físicos de Gullit e os problemas na escolha do técnico, mas amenizava: "Agora, tudo parece bem no barco Oranje. Pior para os adversários". E na Folha de S. Paulo de 4 de junho de 1990, Matinas Suzuki Jr. se embevecia em relação às chances da Laranja: "Não há dúvida de que a saga do futebol holandês, que começou nos [anos] 70 e atravessou os 80, está destinada a escrever mais uma página no país das maravilhas do fut no pontapé inicial dos 90".

E em 6 de junho, a Holanda chegou à cidade italiana de Palermo, onde ficaria durante a Copa, se concentrando no hotel Kafara e treinando no campo do clube Altavilla. Para tentar superar os adversários internos, antes mesmo de superar Egito, Inglaterra e Irlanda, os oponentes do grupo F.

Na estreia contra o Egito, a Holanda deu o sinal da decepção que seria na Copa de 1990 (Reprodução/fanpicture.ru)

Fase de grupos: como o Brasil, caos interno

Mesmo com todas as turbulências na preparação - o joelho direito que perturbou Gullit, a traição de Rinus Michels ao desejo de técnico que os convocados tinham, as más atuações -, chegara o 12 de junho de 1990, quando a Holanda estrearia na Copa, contra o Egito, no estádio Della Favorita, em Palermo (para evitar dores de cabeça dos hooligans holandeses e ingleses, o grupo F foi sediado nas ilhas da Sardenha, onde Cagliari está, e da Sicília, onde fica Palermo). E a surpreendente vitória de Camarões sobre a Argentina, na abertura daquele Mundial, já deixara os favoritos com as barbas de molho. A tal ponto que, desde a chegada a Palermo, a Laranja não fizera nenhum treino aberto.

Para a estreia, Beenhakker decidiu escalar um time conhecido. Dos onze escalados contra o Egito - que voltava a uma Copa em 1990, após 56 anos -, só Graeme Rutjes, volante, não estivera na Euro 1988. Tanto pelos resultados nos amistosos quanto para manter uma mínima receptividade no grupo, Beenhakker atendeu a um pedido dos cardeais do elenco, escalando Rijkaard na zaga e Vanenburg no meio-campo. E mesmo com Gullit ainda sem muito ritmo, havia expectativa sobre o que a Holanda faria em busca da vitória. Pois a Laranja fez pouco em Palermo, muito pouco. Foi lenta, pouco criativa no ataque, até irritante. A tal ponto que o Egito logo começou a ousar, a avançar, a sonhar com mais uma zebra naquela Copa.

No intervalo, Beenhakker mudou um pouco o ataque: tirou Vanenburg, inapetente, e colocou Wim Kieft, mais um da Euro-88. Mesmo sem tanta habilidade, Kieft tinha lá seu faro de gol. E ao abrir o placar, aos 58', num chute sem jeito, poderia ter acalmado as coisas em Palermo. Não acalmou: mesmo em vantagem, o time dos Países Baixos parecia desatento, apático. Van Basten errava as raras chances, chegava a chutar de bico para fora. Nada agradável, diante de uma seleção sonhadora e ousada como a do Egito - o meia Ibrahim Hassan chegou a colocar a bola entre as pernas de Ronald Koeman. E os Faraós tiveram o merecido prêmio no fim do jogo, aos 82'. Certo, Ronald Koeman puxou Hossam Hassan fora da área, e o juiz espanhol Emilio Soriano errou ao apitar pênalti. Mas Magdi Abdelghani, um experiente atacante egípcio, nada tinha a ver com o erro do juiz. E cobrou no canto direito. Van Breukelen acertou, mas era o 1 a 1 final. Outra surpresa ocorria na Copa de 1990.


Os melhores momentos de Holanda 1x1 Egito, estreia da Oranje na Copa de 1990, na transmissão da TV Manchete, com a narração de Paulo Stein e os comentários de Zagallo e Armando Marques

Talvez, só a derrota da Argentina, então campeã mundial, tenha sido uma decepção maior naquele começo de Copa do que o empate e a péssima atuação da Holanda. Na Folha de S. Paulo de 13 de junho, o empate com o Egito era manchetado com "Futebol atrevido do Egito arranca empate da Holanda", e Silvio Lancellotti, o autor da matéria, criticava: "O time do técnico Leo Beenhakker se apresentou sem vibração alguma". Ainda na Folha, Matinas Suzuki Jr., simpatizante daquela seleção, reprovava: "O berço da modernidade futebolística sucumbiu a um primarismo atrasado, isto é, a um 'efeito Maradona': pensar que basta escalar os talentos e não cuidar da arrumação tática e estratégica do time". No Jornal do Brasil do mesmo dia, a manchete brincava ("Nem o Egito esperava por essa") e o texto alfinetava: "A dúvida que ficou entre os que viram a estreia da Holanda no Mundial é se sua seleção escondeu o jogo - e subestimou os egípcios - ou se a Laranja amadureceu, na verdade, no Campeonato Europeu de 1988, e agora está prestes a cair de madura".

Na terça, dia 14 de junho, que seria de folga, uma reunião a portas fechadas foi feita entre o grupo de jogadores e Beenhakker, tentando apagar o incêndio que começava a vazar - após o jogo contra o Egito, o treinador holandês fora enérgico: "Temos poucos dias e muita coisa para consertar". De nada adiantou: se Gullit ainda tentava tranquilizar ("Eu já não sinto absolutamente nada"), a imprensa holandesa recebia recados e mais recados de alguns jogadores, secretamente. Na época, Rijkaard criticou: "Tem muita gente falando demais com jornalistas".

O racha estava aberto. Anos depois, falando ao livro Brilliant Orange, do jornalista David Winner, o jornalista Kees Jansma se recordou: "Os mesmos jogadores de 1990 formavam um time completamente diferente do de 1988. Na verdade, nem era um time. Cada jogador tinha suas próprias ideias, cada jogador se achava o herói. Muitas opiniões. Não havia união, só o superestrelato. Havia um grupo A, um grupo B e um grupo C no time. Os jogadores negavam, mas eu via". A David Winner, o jornalista Dick van der Polder também se lembrou de uma história que mostrava o grau do rompimento entre Rinus Michels e os jogadores - mais precisamente, Ruud Gullit. Entrevistado dias depois do jogo contra o Egito, Michels falava a Van der Polder num campo vazio no centro de treinamentos de Altavilla, e não na zona mista. Minutos depois, Ger Stolk, assessor de imprensa da federação holandesa, trazia um recado de Gullit: mesmo que fosse um campo vazio, era um lugar proibido para falar com a imprensa. A entrevista acabava ali, à força.

A benevolência que ainda restava sobre a Laranja na Copa de 1990 após a estreia acabou com outra decepção no empate contra a Inglaterra (Reprodução/fanpicture.ru)

Como se não bastasse, Beenhakker se mostrou indeciso quanto à melhor escalação. Se escalara o time com três atacantes contra contra o Egito, no 4-3-3 velho de guerra, o treinador decidiu mudar o esquema contra a Inglaterra: num 4-4-2, viraram titulares Richard Witschge, que entrara e fora aprovado no meio-campo, e Hans Gillhaus, ao lado de Van Basten no ataque (Gullit foi recuado para o meio). E assim a Laranja entrou em campo no estádio Sant'Elia, em Cagliari, no dia 16 de junho de 1990, para um jogo esperado com ansiedade, dentro e fora de campo - havia temores de brigas entre holandeses e ingleses. Além do mais, após também empatar na estreia, contra a Irlanda, e também decepcionar, a Inglaterra era a outra favorita do grupo que tinha o que provar.

Pois bem: nenhuma das duas ganhou, com o terceiro empate em três jogos no grupo F: 0 a 0. Pior: outra vez, a partida foi desanimada - participando da transmissão da TV Globo, Fausto "Faustão" Silva cornetou: "Esse jogo está bom para aquele sujeito internado no hospital, cheio de soro e sonda, vendo o jogo: o cara dorme, acorda, a enfermeira mete sonda nele, e está do mesmo jeito". Mas se algum time merecera a vitória, fora a Inglaterra: a seleção de Bobby Robson melhorara. Tivera um pouco mais de velocidade nas pontas, tivera mais mobilidade no ataque com Paul Gascoigne e Bryan Robson, tivera até dois gols anulados no segundo tempo - aos 58', com Gary Lineker (ele tocara com a mão na bola, ao dominar um rebote), e nos acréscimos, com Gascoigne (numa falta em dois lances, o meio-campista cobrara diretamente para a rede).



Os melhores momentos de Holanda 0x0 Inglaterra, pela Copa de 1990, na transmissão da TV Manchete, com a narração de Osmar de Oliveira e os comentários de João Saldanha e Armando Marques

A Holanda? De novo apática no ataque - só uma única chance, aos 26', quando Gullit tentou chutar mas pegou forte demais, prejudicado pela falta de ritmo. As vaias no final do jogo foram até poucas. E as reações contrárias da imprensa aumentaram em todo o mundo. No Brasil, o Jornal do Brasil resumiu tudo em 17 de junho: "Pela segunda vez nesta Copa, a Holanda, tida como uma das favoritas, empata quando merecia perder. Ontem, diante da Inglaterra, os campeões europeus apresentaram os mesmos problemas da estreia: falta de apoio dos laterais, pouca criatividade no meio-campo, falta de ritmo de Gullit, e uma irritante apatia de Van Basten". De fato: se chegara à Copa badalado como um dos melhores atacantes do mundo - e sem lesões -, o camisa 9 da Holanda estava decepcionando demais no torneio. De "Van" útil na Laranja durante o Mundial, só Van Breukelen: o goleiro experiente estava sempre bem colocado, com defesas ágeis para evitar o pior, dentro de campo.

Fora de campo, o caos holandês já era inevitável - lembrando até os problemas que o Brasil vivia naquela mesma Copa. Em 2020, Gullit se lembrou com amargor: "Foi o único torneio em que fiquei no quarto do hotel o tempo todo. Eu não tinha nenhum prazer, cheguei a falar com Van Basten para deixarmos o grupo antes do jogo contra a Irlanda". Os jogadores não suportavam Rinus Michels, que era influência pesada demais para Leo Beenhakker, que não tinha comando nenhum sobre o grupo. A experiência se tornava um dos principais traumas da longa carreira de "Don Leo" como treinador. Ao livro Brilliant Orange, ele se defendeu: "Eu não tinha chance, sabia disso antes mesmo do torneio. Mas havia uma circunstância especial para eu ter aceitado. Jamais direi a razão, mas era especial".

Acabou revelando o motivo em 2010, aos jornalistas Koen Greven e Erik Oudshoorn, que escreveram um livro sobre técnicos da seleção holandesa - só aceitara porque o pedido viera de Rinus Michels: "Eu o idolatrava. Tinha uma ótima relação de trabalho com ele. No meu trabalho, Michels era minha principal influência". De quebra, Leo ainda tinha de lidar com a má vontade da imprensa holandesa, que preferia Cruyff como técnico: "O Telegraaf [jornal], a Voetbal International [revista] e a NOS [televisão pública] tinham boas relações com Cruyff, e o apoiavam por completo. Guiavam a opinião pública. Isso tudo é invencível".

Contra a Irlanda, a Holanda melhorou no primeiro tempo, deu esperanças... mas piorou na etapa final. E foi para as oitavas de final pela porta dos fundos (Reprodução/fanpicture.ru)

Se quisesse ter mais chances de seguir na Copa, a Holanda precisava pontuar contra a Irlanda, no último jogo da fase de grupos, de volta ao Stadio della Favorita em Palermo, em 21 de junho de 1990. O otimismo na reação era mostrado por Van Basten ("Em 1982, Paolo Rossi não havia feito nada até jogar contra o Brasil. E acabou artilheiro"). Na escalação, novamente três atacantes: Van Basten, Gillhaus e Kieft, que voltava aos titulares no lugar de John van't Schip. E a Laranja mostrou alguma reação, sendo mais rápida em campo. Simbolizou isso no gol de um dos seus maiores destaques: Gullit. Ele abriu o placar rapidamente, no primeiro tempo: logo aos 11', tabelou com Kieft, entrou na área e chutou cruzado para o 1 a 0. Parecia o embalo, na hora certa. Tanto que, no intervalo da transmissão da TV Globo para Holanda x Irlanda, o comentarista Raul Plassmann alertou: "A Holanda reencontra seu melhor futebol. Não reencontrou tudo, não: tem mais para dar, tem muitos jogadores, o Gullit está chegando...".

Ledo engano. No segundo tempo, a Holanda voltou a piorar. Já aos 56', John Aldridge empatou para os irlandeses, mas o juiz francês Michel Vautrot anulou, alegando impedimento. Aos 71', porém, não houve salvação para a Laranja: tentando pegar uma bola recuada de cabeça, Van Breukelen cometeu sua primeira falha na Copa: escorregou, e deixou a bola nos pés de Niall Quinn, que fez 1 a 1. Na prática, a partida acabou ali: neerlandeses e irlandeses se classificavam às oitavas de final com aquele empate, e os 19 minutos restantes foram apenas de toques para o lado, sem ataques. Pegou tão mal que Michel Vautrot chegou aos dois capitães e pediu mais empenho nos minutos finais. Empenho que não veio. Restou o empate, num grupo já cheio de empates - cinco, em seis jogos. Holanda e Irlanda terminaram rigorosamente iguais em todos os critérios: três pontos ganhos, dois gols marcados, dois sofridos, saldo igual. Só o sorteio definiria a posição de ambas no grupo - a Inglaterra conseguira a liderança, pela vitória sobre o Egito, no mesmo horário (1 a 0).



Os melhores momentos de Holanda 1x1 Irlanda, pela Copa de 1990, na transmissão da TV Manchete, com a narração de Osmar de Oliveira e os comentários de Zagallo e Armando Marques

O sorteio foi realizado em Roma, logo após a partida em Palermo, às 18h30 de Brasília daquele 21 de junho de 1990. E o secretário-geral da FIFA, um certo Sepp Blatter, revelou: a primeira bolinha sorteada foi a da Irlanda, que ganhava o segundo lugar do grupo F - pegando a Romênia nas oitavas de final, num jogo mais acessível. A apatia da Holanda era punida do pior jeito possível: com o terceiro lugar, sem vitórias na Copa, caberia a ela nas oitavas de final... a Alemanha, eterna rival.

Com a rivalidade dupla, Holanda melhorou justamente no jogo da eliminação

Além da histórica rivalidade entre Holanda e Alemanha no futebol de seleções, um detalhe apimentava ainda mais o clássico que se veria nas oitavas de final, em 24 de junho de 1990. Se Van Basten, Gullit e Rijkaard eram forças motrizes do Milan que dominava o futebol europeu então (e havia sido campeão italiano em 1987/88), a Alemanha trazia o trio principal da Internazionale campeã italiana em 1988/89: Andreas Brehme, Lothar Matthäus e Jürgen Klinsmann. E onde seria o clássico entre as seleções, no Mundial da Itália? Justamente no cenário mais conhecido dos dois trios de Milan e Inter: o Giuseppe Meazza, no bairro de San Siro, em Milão.

Era um jogo tão merecedor de atenção quanto o Brasil x Argentina, outro clássico entre seleções que ocorreria naquele domingo, nas oitavas de final da Copa. Tudo podia acontecer. Mesmo com a Alemanha tendo impressionado na primeira fase, com a ofensividade vista nas goleadas contra Iugoslávia e Emirados Árabes, a Holanda tinha a esperança de que, enfim, reagiria na hora necessária. E os arquirrivais alemães também tratavam o aparente favoritismo que tinham com cautela - até pela lembrança negativa da Euro 1988. Na escalação holandesa, maior proteção no meio-campo: Gullit voltava a fazer dupla com Van Basten no ataque, enquanto Aron Winter entrava para ajudar Jan Wouters na marcação, cabendo a Richard Witschge criar as jogadas.

A Laranja começou bem no jogo da eliminação. Mas a expulsão de Rijkaard abriu caminho para a Alemanha dominar e eliminar a rival (Reprodução/fanpicture.ru)

Falando a David Winner, para o livro Brilliant Orange, Leo Beenhakker se lembrou de uma história que exemplificou bem como aquela partida era decisiva e equilibrada. Pouco antes do juiz argentino Juan Carlos Loustau apitar o começo do jogo em Milão, o treinador dos Países Baixos foi cumprimentar Franz Beckenbauer, o técnico da Alemanha. E Beenhakker ouviu: "Leo, vou lhe dizer uma coisa: quem ganhar isso aqui, será o campeão". E a Holanda teve seu melhor começo de jogo naquela Copa. Acelerada no ataque, começou pressionando a Alemanha - Gullit chutou perto do gol, aos 11 minutos. Rondava mais o gol germânico.

Porém, rapidamente veio um momento que mudou o rumo promissor daquela partida para a Laranja. Numa bola parada, perto da área, aos 21', Rijkaard e Rudi Völler, atacante alemão, começaram a se estranhar, e Juan Carlos Loustau já deu cartão amarelo aos dois. Falta cobrada, Völler ajeitou a bola aérea com a mão, e fez falta em Van Breukelen enquanto ele agarrava. O goleiro holandês se levantou, ficou cara a cara com Völler... e Rijkaard entrou na briga. Loustau decidiu cortar o mal pela raiz: expulsou Rijkaard e Völler. E enquanto ambos saíam, Rijkaard perdeu a cabeça: cuspiu no alemão. Tempos depois, ambos se desculparam, e nenhuma mágoa ficou do episódio passageiro. Mas para sempre os alemães conheceriam Rijkaard como "a lhama", a partir da insensatez cometida.

Rijkaard e Völler se estranharam no clássico, foram expulsos já no 1º tempo... e a cusparada do holandês sintetizou o fracasso da Laranja na Copa (Cor Mulder/ANP)
A partir dali, a Alemanha começou a dominar o jogo em San Siro. Passou a atacar mais, a ter mais a bola, guiada por uma atuação excelente de Klinsmann no ataque. Seguiu assim no segundo tempo. E rapidamente teve o prêmio: aos 51', Guido Buchwald passou por Winter, cruzou da esquerda, e Klinsmann escorou para o 1 a 0. Van Breukelen fez pelo menos duas boas defesas, evitando que o pior viesse mais cedo. Mas ele veio, na reta final: aos 85', dominando sobra de escanteio, Brehme fez belo gol, chutando colocado, de fora da área, para o 2 a 0 que colocou a Alemanha na rota das quartas de final. No penúltimo minuto de jogo, houve ainda um pênalti, com Jürgen Kohler derrubando Van Basten na área. Ronald Koeman diminuiu para 2 a 1. Mas a Holanda nem buscou muito o empate nos acréscimos. Já estava desesperançada. Já estava fora da Copa. Dois anos e três dias depois de cair na semifinal da Euro 1988, a Alemanha se vingava - num torneio ainda maior.




Os gols de Alemanha 2x1 Holanda, oitavas de final da Copa de 1990

A imprensa brasileira estava preocupada em comentar a eliminação da Seleção, ocorrida no mesmo dia. Mas teve algumas palávras ácidas para descrever a queda holandesa. Na Folha de S. Paulo do dia seguinte, Marcos Augusto Gonçalves opinou: "O 2 a 1 de ontem foi pouco. Pelo que fez, a Alemanha poderia ter comemorado uma goleada memorável". O Jornal do Brasil elogiou a partida (considerou-a a melhor da Copa até ali), e citava uma frase de Leo Beenhakker na entrevista coletiva pós-jogo: "Se tivesse sido bom, não estaria voltando para casa agora". Na edição da revista Placar que saiu no dia 26, Jorge Luiz Rodrigues escreveu: "O drama holandês parece mesmo começar no simples fato de que o treinador Leo Beenhakker transmitia insegurança aos jogadores. (...) Procurou a formação ideal, e não teve tempo de achá-la". Finalmente, na mesma Placar, o diretor de redação Juca Kfouri perguntava em sua coluna, evocando a classificação da Argentina, mesmo contestada, em cima do Brasil, e a maior decepção holandesa em campo: "Já se sabe o que os argentinos vieram fazer na Itália. E Van Basten?". O atacante era ainda chamado de "decepção", pela revista: "O holandês passou os três jogos da primeira fase fugindo dos lances decisivos, tornando-se uma figura decorativa de uma equipe fraca".

Muitos anos depois, a decepção segue. Em alguns momentos, lamuriosa: Van Breukelen fala repetidas vezes que foi "o pior momento" de sua carreira. Em outros, mais ácida: no seu livro de memórias, lançado em 2010, o auxiliar técnico Nol de Ruiter alfinetou Beenhakker ("Ele deu ouvidos demais às estrelas (...) Não havia disciplina, ele estava mais preocupado com suas relações do que com a análise do time"), Gullit ("Ele trouxe mulheres de Milão") e Ronald Koeman ("Ele estava gordo"). Só Beenhakker respondeu: "De Ruiter estava envolvido em tudo, em cada preleção, em cada caminhada. E não falou nada durante a Copa".

Para as estrelas daquele time, só restou a dura lição aprendida. Em 2012, ao diário Algemeen Dagblad, Ruud Gullit evocou o oba-oba antes de 1990: "Não estávamos mais acostumados às críticas, eram só tapinhas nos ombros". Entrevistado pela revista Voetbal International em 2013, Gullit ainda reconheceu: "Nós, jogadores, não formamos uma unidade. Não importa o quanto as coisas estejam más fora de campo, os jogadores é que decidem as coisas dentro dele".

Outra das estrelas daquela geração, Ronald Koeman, tem hoje a responsabilidade de treinar a seleção da Holanda. Cabe a ele ajudar a geração que treina com certas lições, sobre a necessidade de foco. O foco que faltou para aquela seleção holandesa na Copa de 1990. Ela era favorita antes do Mundial. Mas com todo o caos que viveu, surpresa seria se tivesse ido melhor.

Versão revista, alterada e ampliada de texto publicado na Trivela, em 10 de julho de 2015

7 comentários:

  1. Uma pena, teria sido fantástico esse time ser coroado com o mundial, uma pena, acredito que faltavam peças, que em 98 sobravam, davids, seedorf, kluivert, bergkamp, f.de boer e van der sar, somados a gullit, rijkaard, koeman e van basten, dificilmente nao teriam ganho td... Apesar da euro 92 terem experimentado essa mescla e perdido para dinamaquina...

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  2. Baita texto. Realmente foi decepcionante o que ocorreu naquela Copa. Só que não imaginávamos que ocorriam tantas divergências dentro do grupo e da própria Federação.

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