sexta-feira, 15 de maio de 2020

Grandes laranjas: os De Boer

Para deixar claro qual De Boer é qual: o da esquerda é Ronald, o da direita é Frank (ANP)

Irmãos jogando juntos na seleção da Holanda nem era nada tão inédito assim: basta lembrar os Koeman, Ronald e Erwin, nos anos 1980/90 - Erwin dois anos mais velho do que Ronald. Irmãos gêmeos? Também havia um caso na Laranja: René e Willy van de Kerkhof, nos anos 1970/80, ambos juntos nos vice-campeonatos mundiais de 1974 e 1978, ambos juntos no PSV por dez anos - mas Willy terminou a carreira em Eindhoven, enquanto René correu mundo na reta final da trajetória.

Entretanto, nos anos 1990 (e nos 2000 também), Ronald e Frank de Boer levaram a relação fraterna a outro patamar. Começaram a jogar no mesmo clube amador. Despontaram (quase) juntos no Ajax. Jogaram juntos na Laranja. Também vestiram camisas semelhantes em Barcelona, Rangers, no futebol do Catar. Tanta semelhança os fez virar até estátuas de cera na filial do célebre Madame Tusseau em Amsterdã. E marcou quem acompanhasse futebol naquela década.

Por isso, nesta sexta, 15 de maio, por mais que ambos estejam em rumos diferentes agora, é inevitável que ambos dividam as felicitações pelos 50 anos de aniversário que fazem. Uma boa chance para descrevermos as carreiras deles num mesmo texto. Mostrando que, embora com expressões faciais quase iguais, ambos tiveram muitas diferenças na carreira. A começar pela posição: Frank mais ligado à defesa, Ronald mais habituado ao ataque... enfim, o que fazia dos gêmeos (ainda mais) iguais e o que os diferenciava?

O começo: ainda cabeludos e praticamente indistinguíveis, no Ajax de 1988 (ANP)

Iguais: o mesmo surgimento

Nascidos em Hoorn, em 15 de maio de 1970 (Ronald, alguns minutos mais velho do que Frank), os irmãos De Boer começaram a jogar futebol no mesmo clube amador: o VV Zouaven, de Grootebroek, cidade vizinha a Hoorn. Lá, por volta de 1984, ambos foram vistos por um tal de Johan Cruyff, já então consultor técnico do Ajax, um ano antes de virar treinador Ajacied. Foram aprovados. E tomaram o caminho do clube com o qual seguem ligados, até hoje, entre idas e vindas.

Frank foi o primeiro De Boer a ganhar espaço na seleção: já era titular na Euro 1992 (Getty Images)


Diferentes: posição e desenvolvimento

No Ajax, tanto Ronald quanto Frank de Boer começaram a despontar no fim da década de 1980, na mesma geração que revelaria Dennis Bergkamp, Bryan Roy e outros dois irmãos, Rob e Richard Witschge. Porém, aí começaram as diferenças. Ronald estreou mais cedo no time principal do Ajax - já fez gol no 3 a 1 contra o Zwolle, em 22 de novembro de 1987, pelo Campeonato Holandês. De quebra, dois dias depois, o novato jogou 22 minutos na partida de ida da Supercopa da Europa, contra o Porto. Já Frank demorou quase um ano para aparecer na equipe de cima: só em 21 de setembro de 1988, também contra o Zwolle, mas com derrota Ajacied (4 a 1).

A princípio, Ronald (já definido em campo como atacante) também teve mais frequência do que Frank nos primeiros anos de Ajax. Jogou quase metade das temporadas da Eredivisie em 1988/89 e 1989/90, começando a fazer alguns gols - 5 naquela, 7 nesta temporada. De quebra, em 1989/90, o Ajax enfim quebrou a sequência de títulos do PSV na Eredivisie, sendo campeão. Porém, Ronald foi menos produtivo em 1990/91 - 14 jogos, 1 gol. E deixou o Ajax ao fim daquela temporada, indo para o Twente.

Uma figurinha traz o registro: Ronald de Boer no Twente, entre 1991 e 1992 (Old School Panini(


Se demorou mais para despontar do que o irmão, Frank de Boer teve um surgimento mais fulgurante. Mostrando segurança e habilidade na lateral esquerda (sua primeira posição), tomou a posição para não largar mais já na temporada 1988/89. Em 1990, o gêmeo mais novo já era apontado como um dos mais promissores nomes do futebol dos Países Baixos naquela época. Tanto que aos 20 anos, estreou na seleção, em 26 de setembro daquele ano, num amistoso contra a Itália.

Auxiliando bem Ronald Koeman e Frank Rijkaard, os titulares indiscutíveis da zaga holandesa de então, Frank de Boer mostrava capacidade cada vez maior para se alternar entre a lateral esquerda e o miolo da defesa. No Ajax, também fazia isso - assim foi já nome certo na campanha do título da Copa da UEFA, em 1991/92. Foi por causa dessa capacidade técnica que Frank foi o primeiro dos irmãos numa grande competição de seleções: na Euro 1992, foi titular da Holanda contra a Alemanha (fase de grupos) e contra a Dinamarca (semifinal). Mesmo com a eliminação, ficou claro naquela Euro: o veterano Adri van Tiggelen já tinha um substituto bem definido na lateral esquerda, e o nome dele era Franciscus de Boer, que se tornaria titular absoluto da Holanda por muito tempo.

Glória dos irmãos De Boer: no Ajax, com o título europeu em 1995... (Pics United)


Iguais: juntos na glória e na polêmica

Se Frank já era indiscutível no Ajax e na seleção, Ronald ainda precisava mostrar algo da capacidade inicial. Mostrou a partir da temporada 1992/93: titular no Twente, o atacante fez 11 gols em 16 jogos, na primeira metade do Campeonato Holandês. Bastou para o Ajax trazê-lo de volta já no princípio de 1993, para o returno. Naquele momento, o De Boer do ataque começou a despontar como o irmão da defesa fizera: Ronald de Boer virou titular absoluto do Ajax na reta final da Eredivisie (foram mais cinco gols pelos Amsterdammers naquela temporada). De quebra, em 24 de março de 1993, Ronald estreou pela seleção - já deixando o dele, de pênalti, nos 6 a 0 sobre San Marino, pelas Eliminatórias da Copa de 1994.

Em 1994, a parceria fraterna começou a viver o seu auge. Frank atrás, Ronald na frente, ambos eram titulares do Ajax campeão holandês - com Ronald eleito o melhor jogador daquela temporada 1993/94. Foram convocados para a Copa de 1994: Frank foi titular em quatro jogos (só ficou na reserva contra o Brasil, nas quartas de final), enquanto Ronald foi ligeiramente inferior - começou como titular na fase de grupos, mas decepcionou e foi tirado no intervalo da derrota para a Bélgica, ainda no grupo F, só voltando a campo exatamente na eliminação para os futuros (tetra)campeões, entrando no meio do segundo tempo.

A boa fase da dupla de irmãos seguiu: ambos foram e são nomes frequentes nas lembranças do que o Ajax fez entre 1995 e 1996: tricampeão holandês - invicto na temporada 1994/95 -, campeão europeu em 1995 (e vice-campeão em 1996), campeão mundial em 1995, campeão da Supercopa da Europa em 1995... na seleção, a presença dos De Boer também era certa. Mesmo se um não pudesse (Frank ficou de fora da Euro 1996, por uma fratura), o outro garantia o sobrenome (Ronald foi titular na mesma Euro - e em clubes, novamente eleito o melhor da Eredivisie em 1995/96).

Copa de 1998: o grande momento da parceria (Matthew Ashton/EMPICS/Getty Images)

E na Copa de 1998, talvez, cada um viveu seu grande momento. Formando dupla de zaga elogiável com Jaap Stam, Frank consolidou ali sua transição para a zaga: já era o capitão da Holanda, já era um dos grandes defensores do futebol mundial naquele tempo. E Ronald, naquele Mundial, também foi bem: titular em seis dos sete jogos daquela campanha, ainda marcou dois gols (na goleada sobre a Coreia do Sul e no empate com o México, ambos na fase de grupos). A única mancha foi a cobrança perdida por Ronald na disputa da semifinal contra o Brasil, representando ali mais uma eliminação da Laranja na reta final. Mas ambos voltaram da França amados pela torcida - ainda mais a do Ajax, já que seguiam no clube mesmo após o começo das saídas (Clarence Seedorf, Edgar Davids, Marc Overmars, Louis van Gaal...).

Só que esse amor entre os Ajacieden e os De Boer foi perigosamente trincado na reta final de 1998. Pouco depois da Copa, ambos receberam uma proposta generosa do Barcelona, que lhes pagaria salário cinco vezes maior do que o ganho no Ajax. Ficaram propensos a sair - ainda mais pelo trato  verbal que se tinha com o clube em que começaram: se um dos gêmeos recebesse proposta lucrativa, poderia deixar o Ajax, desde que o outro ficasse. Porém, a transferência era impedida por uma renovação: tanto Frank quanto Ronald haviam prolongado o compromisso com o Ajax por seis temporadas. Pior: começando na Bolsa de Valores, o Ajax prometia a quem comprasse as ações que os irmãos não sairiam.

Briga judicial à vista: querendo ir para o Barcelona, ambos entraram na Justiça contra o Ajax, pedindo a anulação do contrato. A Justiça deu ganho de causa ao clube de Amsterdã. Mas àquela altura, a relação Frank/Ronald-Ajax estava quase arruinada: na primeira metade da temporada 1998/99, ambos se negavam constantemente a entrar em campo, criticavam o técnico Morten Olsen, queriam porque queriam jogar juntos na Catalunha e não na Holanda. Sem ambiente no clube e com a torcida, só restou ao Ajax liberá-los para os Blaugranas, no começo de 1999. Só o tempo curaria a mágoa.

A chegada da dupla ao Barcelona só foi possível magoando o Ajax - e na Catalunha, só Frank se deu bem (ANP)

Diferentes: um virou ícone, o outro nem tanto

No Camp Nou, Frank e Ronald chegavam para simbolizarem o "BarçAjax", nome para a vinculação (até excessiva) que se configurou pelo tanto de jogadores holandeses treinados por Louis van Gaal. Mas a partir de 1999, os caminhos deles em campo voltaram a ficar diferentes. Ronald decepcionou demais no Barcelona: sem muito espaço nem técnica para fazer frente aos outros atacantes (Patrick Kluivert, Luis Enrique, Rivaldo), Ronald só fez 33 jogos e um gol entre 1999 e 2000. Até fez parte da campanha do título espanhol em 1998/99, mas de modo periférico. 

Já no fim da temporada 1999/2000, com a saída de Van Gaal, considerado um holandês dispensável no "BarçAjax", Ronald de Boer tomou o caminho do Rangers. O clube escocês era outro com uma "comunidade holandesa forte" (Bert Konterman, Fernando Ricksen, Giovanni van Bronckhorst, treinados por Dick Advocaat), mas Ronald só teve destaque real no título escocês dos Gers em 2002/03 - 16 gols em 33 jogos. Na seleção, o atacante perdeu espaço naquele começo de década: foi à Euro 2000, mas só jogou as três partidas da fase de grupos (ainda fez um gol, nos 3 a 0 sobre a Dinamarca). Com o surgimento de nomes como Ruud van Nistelrooy, Ronald perdeu cada vez mais espaço... até a última partida pela seleção neerlandesa, em 2003.

Já Frank de Boer seguiu muito bem no Barcelona. Com a habilidade na zaga, se tornou um dos holandeses realmente importantes no clube catalão, ao lado de Kluivert, Phillip Cocu e Boudewijn Zenden. Tornou-se titular absoluto dos Culés em dois tempos, e foi nome certo na campanha do título espanhol em 1998/99. Na seleção, foi novamente capitão e zagueiro principal na Euro 2000 em casa - que, no entanto, lhe rendeu uma lembrança dolorosa até hoje: Frank perdeu dois pênaltis na traumática semifinal contra a Itália (um no tempo normal, outro na disputa de cobranças). Para piorar, em 2001, pego no exame antidoping por uso de nandrolona, o zagueiro chegou a ser suspenso - mesmo liberado depois, viu de fora a Holanda fracassar nas Eliminatórias da Copa de 2002, bem como a crise gigante que o Barcelona vivia.

Ainda assim, Frank de Boer deixou o Barcelona por cima: na última temporada, 2002/03, foi titular absoluto (35 jogos) mesmo em meio ao caos que o clube vivia. Já se tornara sinônimo de seleção: em 15 de novembro de 2000 (amistoso contra a Espanha - vitória holandesa, 2 a 1), o zagueiro se tornou o nome com mais partidas pela seleção - 85, superando os 84 jogos de Aron Winter na Laranja. Já no Galatasaray, Frank era um dos veteranos a guiar a geração que começava com Rafael van der Vaart, Arjen Robben e Wesley Sneijder. Em março de 2003, foi o primeiro holandês a chegar aos 100 jogos pela seleção (no 1 a 1 com a República Tcheca, pelas Eliminatórias da Euro 2004). 

No começo de 2004, ainda houve tempo para Frank se unir de novo ao irmão Ronald: em janeiro, se transferiu para o Rangers. Jogou pouco (17 partidas), mas o suficiente para manter ritmo de jogo e ganhar a convocação para a Euro daquele ano. Naquele torneio em Portugal, Frank terminou sua trajetória pela Holanda - de modo acidentado: jogara contra a Letônia, na fase de grupos, e começara como titular contra a Suécia, nas quartas de final... mas numa dividida com Fredrik Ljungberg, ainda no primeiro tempo, quebrou a tíbia. E não jogou mais na Euro. Nem pela seleção: seu ciclo estava encerrado, após 112 jogos - o recordista da época, até Edwin van der Sar lhe tomar a marca em 2006.

O capítulo final em campo: no Al-Rayyan, entre 2004 e 2005. Frank parou, Ronald ainda seguiu (AFP/Getty Images)

Com alguma coisa (eternamente) em comum

Terminada a Euro 2004, Frank de Boer partiu para a reta final da carreira. Ronald, claro, foi junto: ambos rumaram para o Al-Rayyan, do Catar. Porém, no país do Oriente Médio as carreiras se separaram. Frank só jogou mais dois anos, encerrando a carreira em 2006 no Al-Rayyan; Ronald se foi para o Al-Shamal em 2005 e seguiu por mais um tempo, mas uma hérnia o tirou dos campos por boa parte de 2007, e mesmo recuperado e podendo voltar a jogar em 2008, o atacante preferiu terminar a trajetória por ali.

Com ambos de volta à Holanda, as trajetórias tiveram ritmos diferentes. Ronald se estabilizou pelo país natal, trabalhando como auxiliar do time de juniores do Ajax - e se notabilizando no papel de comentarista de futebol na televisão, como queria (atualmente, está na FOX Sports holandesa). Já Frank preferiu seguir sob pressão: fez o curso para se tornar técnico, já ganhou "estágio" na comissão técnica da Holanda na Copa de 2010 (foi auxiliar de Bert van Marwijk junto ao contemporâneo Phillip Cocu).
Foto de ambos em 2017: Ronald é quem está sério, mas Frank teve mais problemas no futebol de lá para cá (Pics United)

Naquele mesmo 2010, em dezembro, com o Ajax em crise à procura de um rumo dentro e fora do campo, Frank foi escolhido para treinar o clube - primeiramente, como interino, após a demissão de Martin Jol. Deu muito certo: quatro títulos holandeses sob seu comando, sendo peça decisiva para ajudar o Ajax a voltar a dar as cartas no futebol da Holanda.

Seis anos depois, o desgaste natural - e a traumática perda do título holandês na última rodada... - fizeram Frank de Boer sair. Para jogar fora boa parte do status de técnico promissor que tinha então:  sem muito hábito ou jogo de cintura fora do "estilo Ajax", uma passagem terrível de três meses pela Internazionale e outra pior ainda pelo Crystal Palace (só dez semanas!) fizeram o nome do ex-zagueiro cair em desgraça como técnico. Pelo menos, no fim de 2018, o Atlanta United deu a Frank uma chance de começar a reconstruir a carreira em termos mais adequados, na MLS - chance aproveitada, com o título da US Open Cup em 2019.

Ronald mais calmo, Frank ainda na ribalta. Ronald usando óculos, Frank já com menos cabelo. Hoje em dia, ambos são diferentes, está claro. Mas se até mesmo dividiram uma conta de Twitter - por muito tempo respondiam no @FrankRonald1970 (agora cada um tem seu perfil)...  os gêmeos sempre terão alguma coisa em comum.

Franciscus "Frank" de Boer
Data de nascimento: 15 de maio de 1970, em Hoorn
Clubes: Ajax (1988 a 1999), Barcelona-ESP (1999 a 2003), Galatasaray-TUR (2003), Rangers-ESC (2004) e Al Rayyan-CAT (2004 a 2006)
Seleção: 112 jogos e 13 gols, entre 1990 e 2004

Ronaldus "Ronald" de Boer
Data de nascimento: 15 de maio de 1970, em Hoorn
Clubes: Ajax (1987 a 1991 e 1993 a 1999), Twente (1991 e 1992), Barcelona-ESP (1999 e 2000), Rangers-ESC (2000 a 2004), Al Rayyan-CAT (2004 e 2005) e Al Shamal-CAT (2005 a 2008)
Seleção: 67 jogos e 13 gols, entre 1993 e 2003

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