No Feyenoord, no Liverpool, no Fenerbahçe, na seleção: Dirk Kuyt se dedicou como poucos. E ganhou o respeito de todos (Getty Images) |
Nos 19 anos de carreira que Dirk Kuyt (Kuijt, na grafia holandesa) teve em campo, ele não teve a técnica que o contemporâneo Wesley Sneijder exibiu. Nem o poder de decisão que Arjen Robben mostrou em momentos decisivos, na sua carreira. Nem mesmo marcou tantos gols quanto Robin van Persie, embora fosse atacante. No entanto, o esforço que ele despendeu em campo foi inegável. Por isso, Kuyt mereceu o respeito das torcidas em todos os clubes por que passou - e a idolatria, em alguns casos. E por isso, tem seus 40 anos celebrados com a consideração que se destina a alguém tido como valoroso e decente. No popular, um "ponta-firme".
O embalo só veio no fim do começo
Nascido em Katwijk, cidade marítima ao sudoeste da Holanda (Países Baixos), Kuyt logo achou um clube municipal onde pudesse bater sua bola: já aos cinco anos, figurava no Quick Boys, agremiação amadora da cidade. A princípio, sem a intenção de seguir carreira - Kuyt pensava mesmo era em seguir a trajetória do pai, também Dirk, um pescador que trabalhava nessa área em Katwijk. Tal intenção só foi aparecendo no decorrer da adolescência. Ainda assim, o novato ainda alternava o futebol com o aprendizado da pescaria junto ao pai.
Kuyt seguiu assim até 1998, quando chegou ao time principal do Quick Boys, que jogava na Hoofdklasse, a quarta divisão holandesa, só com times amadores. Até março daquele ano, tinha ótimo desempenho: seis jogos, três gols. Bastou para que o Utrecht se interessasse por alguns nomes do quinto colocado na Hoofdklasse daquela temporada 1997/98. Entre eles, Kuyt: em agosto de 1998, ele começaria sua carreira profissional, contratado pelo Utrecht, junto a outro atacante, Hendrik van Beelen.
Nos Utregs, Kuyt virou titular logo que chegou, e passou os primeiros anos sendo alternado entre posições do ataque. Ora jogava na ponta, com o sérvio Igor Gluscevic mais concentrado nos gols - foi assim em temporadas como 1999/2000 (só seis gols no Campeonato Holandês) e 2001/02 (sete gols). Ora recebia a chance de jogar na frente, como o principal atacante - e aí, Kuyt também marcava mais (em 2000/01, foram 13 gols dele na Eredivisie).
Em 2002/03, Kuyt foi escalado de vez como atacante no Utrecht. E embalou de vez (Pics United) |
Isso começou a mudar de vez na temporada 2002/03, quando o técnico Foeke Booy efetivou Kuyt como "homem-gol" do Utrecht - às vezes como ponta-de-lança, vindo do meio, às vezes como atacante puro e simples. Resultado: quando o seu começo de carreira terminava, Kuyt embalou de vez no futebol do país. Em 2002/03, foram 20 gols pelo Holandês, fazendo todas as partidas do Utrecht na campanha. Melhor ainda: o clube chegou à final da Copa da Holanda, contra o Feyenoord. E Kuyt participou como já sabia, na goleada por 4 a 1 que deu o título aos Utregs - colocando a bola na rede. Serviu para o Feyenoord entender o que via e contratá-lo: pouco tempo após aquela final, o atacante chegava ao Stadionclub, para também ser o "homem-gol", no lugar de um Pierre van Hooijdonk já veterano então, que se fora para o Fenerbahçe.
Nunca tão goleador
O milhão de euro (no singular mesmo) que o Feyenoord gastou para trazer Kuyt ficou barato, diante da idolatria que começou a nascer. Já na temporada 2003/04, sua primeira em De Kuip, ele igualou o que conseguira pelo Utrecht: pelo Campeonato Holandês, foram 20 gols em 34 jogos (começando pelos dois marcados no empate em 2 a 2 com o AZ, na quarta rodada). Além dos gols, o esforço e a movimentação que apresentara na área foram suficientes para lhe dar a primeira chance na seleção holandesa: Kuyt apareceu na primeira convocação de Marco van Basten como técnico da Laranja, em agosto de 2004, para não sair mais do radar.
Kuyt chegou para virar ídolo no Feyenoord - e para ficar de vez na seleção (European Press Agency) |
A coisa ficou melhor ainda na temporada 2004/05. Ninguém menos do que Ruud Gullit chegou ao Feyenoord para ser treinador. E nunca um técnico apostou tão pesado no nativo de Katwijk: Gullit fez de Kuyt o seu "homem-gol" absoluto no Stadionclub, colocando Salomon Kalou como parceiro de ataque, se responsabilizando pela velocidade. E na dupla "K2" que mobilizou a torcida Feyenoorder durante aquela temporada, Kuyt consolidou seu destaque: com 29 gols em 34 jogos, ele foi o goleador da Eredivisie na temporada. E ganhou seu primeiro prêmio de Jogador do Ano nos Países Baixos. De quebra, já se tornara titular absoluto na seleção: sua aplicação lhe rendera a vaga, durante a campanha da Holanda nas Eliminatórias da Copa de 2006.
Em 2005/06, já sob o comando de Erwin Koeman, o Feyenoord voltou a fazer um papel digno de nota no Campeonato Holandês, chegando ao vice-campeonato. E Kuyt seguiu se destacando: fez 22 gols. Consolidou sua idolatria para a torcida do Stadionclub num momento de decepção: nos play-offs então disputados após a temporada, por vaga na Liga dos Campeões, o Feyenoord caiu num Klassieker contra o Ajax (3 a 0 na ida, em Amsterdã; 4 a 2 Ajax na volta, em Roterdã). Já com a saída do clube em mente, Kuyt deixou o gramado chorando após o jogo de volta em De Kuip: não conseguiria retribuir com feitos o amor que lhe era destinado.
Se havia consolo, ele viria com a segunda escolha seguida de seu nome como o Jogador do Ano nos Países Baixos - na cerimônia de entrega do prêmio, Kuyt até cantou, junto a Jan Smit, cantor popular no país. Na mesma cerimônia, um momento lhe trouxe lágrimas aos olhos: o troféu entregue pelo pai, já então sofrendo com as complicações de um câncer (Dirk pai faleceu em 2007). Aliás, vale citar que ali começou o respeito que Kuyt ganhou fora de campo na Holanda: não só por aparecer como um sujeito de imagem familiar, pelo casamento estável com Gertrude - casados até 2017, ambos tiveram dois filhos, e Gertrude atraiu simpatia popular por continuar trabalhando como enfermeira em Katwijk, mesmo após a carreira do então companheiro decolar -, mas principalmente pela fundação beneficente mantida por ele.
Outro consolo seria a convocação para a Copa do Mundo: nela, o atacante fez três partidas pela Holanda. E finalmente, seu esforço lhe renderia um lugar num campeonato competitivo: em agosto de 2006, o Liverpool o levou. E Kuyt deixava a Eredivisie com um fato como prova do respeito que granjeara: entre 2001 e 2006, somados todos os jogos de Utrecht e Feyenoord, ele só ficou fora de cinco partidas - foram 179 jogos seguidos pela liga neerlandesa.
Kuyt podia não ser o mais técnico dos nomes do Liverpool. Mas ganhou a torcida dos Reds com dedicação e esforço (Getty Images) |
No Liverpool e no Fenerbahçe, o respeito bastou
Kuyt chegou a um Liverpool de fama considerável, ainda vivendo o alarido do título europeu ganho em 2004/05. E logo achou seu espaço em Anfield: podia não ser icônico como Steven Gerrard, nascido e crescido naquele ambiente, podia não ter a técnica de Xabi Alonso, podia nem mesmo ser tão fundamental para os Reds. Mas o atacante ganhou a torcida (e o respeito dos técnicos que teve) pelo esforço: mesmo sem tantos gols - o máximo foram 13, na temporada 2010/11 -, a velocidade e a dedicação, atacando e marcando, fosse no ataque ou na meia-direita, o tornaram titular do Liverpool. Mais do que isso: tornaram-no um nome querido da exigente e fiel torcida vermelha. Se não bastassem a dedicação e o respeito (por medidas como aplaudir a torcida após cada jogo em Anfield), Kuyt até marcava gols em momentos importantes: mesmo com a derrota para o Milan na final da Liga dos Campeões 2006/07, fez o gol de honra dos Reds.
Paralelamente, ele também seguiu como nome certo na seleção holandesa. Robben, Van Persie e Sneijder podiam até brilhar mais, só que Kuyt, mais resistente a lesões e mais maleável no aspecto tático, seguiu como titular sob Marco van Basten. Foi à Euro 2008 - nela participou de todos os jogos, indo ou vindo do banco, e até marcou gol, abrindo o caminho da goleada contra a França, na fase de grupos. Van Basten deixou a Laranja, Bert van Marwijk chegou, e Kuyt continuou nome certo na equipe nacional, participando da campanha de aproveitamento total nas Eliminatórias da Copa de 2010. Veio o Mundial, Kuyt foi à África do Sul, e discretamente cumpriu o seu papel como sempre: não só era o nome inquestionável na ponta esquerda da Laranja em campos sul-africanos, como fez o primeiro gol da seleção na Copa, abrindo o placar dos 2 a 0 contra a Dinamarca, na estreia. Veio o vice-campeonato mundial. Mesmo sem ser tão comentado, o atacante granjeava cada vez mais respeito entre torcida e imprensa: era, talvez, o mais regular dos nomes daquela geração.
Na Copa de 2010, Kuyt já acumulava seis anos na seleção da Holanda. E aquele vice-campeonato mundial o consolidou como um dos mais regulares nomes naquela geração da Oranje (Getty Images) |
Assim era também no Liverpool. Nomes iam (Xabi Alonso, John Arne Riise, Fábio Aurélio, Craig Bellamy), nomes vinham (Luis Suárez, por exemplo), mas Kuyt se credenciava como alguém com quem a torcida dos Reds podia contar. Nos últimos tempos no clube inglês, já nem se preocupava tanto com os gols: mais importante era tê-lo no vai-e-vem pela direita, apoiando e marcando, com velocidade e vigor físico notável para alguém que passava dos 30 anos. Mesmo em sua última temporada no Liverpool, participou de 33 dos 38 jogos pelo Campeonato Inglês. E é possível se dizer: só saiu do clube pelas reformulações típicas entre uma temporada e outra: aos 32 anos, o tempo já passava. Por isso, tão logo a Euro 2012 terminou, se sabia que Kuyt tomaria o caminho do Fenerbahçe. Pelo menos, despediu-se do Liverpool com um título, a Copa da Liga Inglesa.
Mesmo já chegando ao Fenerbahçe com a fase final da carreira se aproximando, Kuyt mostrou a dedicação de sempre. E numa liga menos intensa como a turca, seguiu tendo uma frequência admirável de aparições: foram 31 jogos pelos Canários Amarelos em 2012/13, e 32 jogos nas duas temporadas seguintes em que ficou pelo clube de Istambul. De quebra, até voltou a marcar gols, mesmo sem ser o "homem-gol" do Fener: foram 8 em 2012/13, 10 em 2013/14, mais 8 em 2014/15. De quebra, num time experiente, ainda figurou em conquistas: o título da Copa Turca em 2012/13, o próprio título turco em 2013/14, a Supercopa nacional em 2014. Diante de um povo tão idólatra aos que lhe cativam futebolisticamente como o turco, a dedicação de Kuyt teve retribuição calorosa, tempos depois. Em 2017, já de volta ao Feyenoord, Kuyt participou da inauguração de filial da Fenerium (rede de lojas do Fenerbahçe) em Roterdã. Eis que adeptos do clube turco lotaram a rua Zwart Jan, onde se localizava a Fenerium, durante a inauguração. Tudo para saudarem o velho ídolo.
Kuyt podia receber ainda menos atenção no Fenerbahçe. Mas ganhou títulos. E de novo, ganhou o coração de uma torcida (Getty Images) |
O fim sonhado. Na seleção e no clube
Na seleção holandesa, Kuyt vivia fase semelhante ao que vivera em clubes: nomes iam, nomes vinham, e ele seguia se valendo da aplicação tática (e da pouca propensão a brigas) para manter o respeito dos técnicos que passavam pela Laranja. Por isso, saiu relativamente ileso da participação vexaminosa na Euro 2012. Por isso também, foi mantido titular por Louis van Gaal, figurando em sete dos dez jogos nas Eliminatórias da Copa de 2014. E a prova decisiva de como Kuyt construiu uma trajetória elogiável pela Oranje viria naquele torneio: mesmo já aos 33 anos, sem a titularidade absoluta de tempos idos, o atacante foi convocado por Van Gaal para o Mundial.
No Brasil, Kuyt passou os dois primeiros jogos na reserva. Mas com Daryl Janmaat atuando temerariamente na lateral direita, recebeu a incumbência de jogar naquela posição a partir do jogo contra o Chile, ainda na fase de grupos. Dedicou-se, cuidou da marcação, e agradou a ponto de não sair mais do time. Nas oitavas de final, a voluntariedade de Kuyt, atuando pelos 90 minutos de um dificílimo jogo contra o México, debaixo do calor do meio-dia, numa Fortaleza ensolarada, foi um dos fatores mais celebrados na vitória. Nas quartas de final contra a Costa Rica, quando a decisão por pênaltis veio, Kuyt se apresentou como um dos cobradores - e converteu sua batida com perfeição. Até mesmo na derrota da semifinal contra a Argentina, também se saiu com honra, também acertando o seu chute em mais uma disputa de pênaltis. Sintetizando: se a campanha da Laranja em 2014 rendeu aplausos pelo terceiro lugar honroso, Kuyt era um dos principais símbolos disso - nem tanto pela técnica (esta ficou mais a cargo de Robben, ou mesmo Van Persie), mas principalmente pela garra que fez a Laranja chegar bem mais longe do que se pensava naquela Copa.
Copa encerrada, Guus Hiddink ainda chamou Kuyt para o amistoso de sua (re)estreia no comando da seleção, contra a Itália, em setembro de 2014. Mas sabendo que não teria vaga garantida nas convocações, preferiu ele mesmo declarar logo após aquela partida retardatária o fim de sua trajetória na Laranja, após 104 jogos e 24 gols. Na seleção, estava tudo acabado. E nos clubes? Só começaria a acabar em 2015. De um jeito cativante: após nove anos, Kuyt acertou a volta ao Feyenoord. Para o anúncio público, entregou a Noëlle, a filha mais velha, um pacote. Nele, havia uma camisa do Stadionclub, querido da família. Noëlle se alegrou. Tanto quanto a torcida Feyenoorder ao saber da volta do ídolo.
Kuyt podia já não ter tanta velocidade ao voltar a Roterdã, mas nem era esse o objetivo. Era tê-lo como o esteio do time, um nome calejado de velhos tempos, que pudesse guiar o time de volta ao caminho dos títulos. De certa forma, isso até aconteceu em 2015/16, com o Feyenoord conquistando a Copa da Holanda. Mas ficou pouco, diante da apoteose vista em 2016/17. Havia destaques mais técnicos, como Nicolai Jorgensen ou Jens Toornstra. Mas para a torcida, não importava: Kuyt era o grande símbolo daquela campanha, que ia rodada a rodada rumo ao título do Campeonato Holandês, para lavar a alma após 18 anos de jejum. A conquista demorou. Temeu-se pelo pior, com a derrota para o Excelsior na penúltima rodada (3 a 0), permitindo que o Ajax encurtasse a distância para três pontos. De quebra, Kuyt cada vez menos conseguia disfarçar a insatisfação por ser deixado no banco pelo técnico Giovanni van Bronckhorst (outro ídolo Feyenoorder), na reta final da campanha.
Mas Kuyt nada falou. Decidiu provar que era ele a cara daquele título redentor. Do melhor jeito possível: na rodada final da Eredivisie 2016/17, contra o Heracles Almelo, diante de um De Kuip lotado e carregando a angústia de 18 anos, o veterano provou que aquele seria o dia do desafogo. Titular de novo, precisou apenas de 40 segundos para fazer os adeptos que tanto o idolatravam explodirem, ao fazer 1 a 0. Não ficou só nisso: fez todos os gols na vitória por 3 a 1 que tornou o Feyenoord, de novo, campeão holandês. E pôde erguer a salva de prata do título, sorrindo abertamente. Era um fim irretocável, o fim que ele e a torcida haviam sonhado. Tão irretocável que Kuyt anunciou, três dias depois: aquele havia sido o último jogo de sua carreira profissional.
Em tese, Kuyt já nem precisaria fazer mais nada pelo Feyenoord. Se precisava fazer pelo Quick Boys em que começou sua trajetória no futebol, fez em 2018, jogando três partidas apenas para matar as saudades. Foi homenageado pela federação holandesa. Teve até um jogo de despedida a lotar De Kuip, com colegas de seleção, Liverpool, Fenerbahçe e Feyenoord a lhe prestigiarem em campo. E para a história seguir, a ligação com o Feyenoord foi do campo para o banco: já fazendo o curso para treinador, em 2018, Kuyt recebeu ali a chance para se desenvolver. É o que está fazendo, comandando o time sub-19 do Stadionclub desde então. E se fala, aqui e ali: a partir de 2021, quando Dick Advocaat deixar o comando da equipe principal, será ele o novo técnico. Talvez lhe valha de algo o respeito merecidamente ganho pela dedicação como jogador.
Dirk Kuyt
Data de nascimento: 22 de julho de 1980, em Katwijk
Clubes: Utrecht (1998 a 2003), Feyenoord (2003 a 2006), Liverpool-ING (2006 a 2012), Fenerbahçe-TUR (2012 a 2015) e Feyenoord (2015 a 2017)
Seleção: 104 jogos e 24 gols, entre 2004 e 2014
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