segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Depois do terremoto

O Ajax parecia em céu de brigadeiro para o restante da temporada. A revelação dos assédios e comportamentos impróprios de Marc Overmars trouxe uma forte tempestade (ANP)

Em cada jogo do Ajax na Johan Cruyff Arena, era comum ver, lado a lado, o diretor geral Edwin van der Sar e o diretor de futebol Marc Overmars acompanhando o que o time de Amsterdã fazia em campo. Neste domingo, nos 3 a 0 sobre o Heracles Almelo, pela 21ª rodada do Campeonato Holandês, só Van der Sar estava nas tribunas do estádio. Mas estava tudo bem: a vitória levava o Ajax a ter cinco pontos de vantagem na liderança da Eredivisie. Era mais uma afirmação de força do clube mais conhecido da Holanda (Países Baixos) na atualidade: atual campeão nacional masculino - e da Copa da Holanda também -, classificado para as oitavas de final da Liga dos Campeões, badalado Europa afora. Uma terra firme. Arrasada pelo terremoto que começou por volta das 23h30 de Amsterdã (19h30 de Brasília - hora escolhida exatamente para o Ajax ser o primeiro a informar, não os jornais holandeses, cujas edições já tinham sido impressas), no domingo passado, com a nota que anunciava a saída imediata de Overmars, após dez anos de clube

Mais chocante do que a saída também era o motivo que a nota anunciava: "Uma série de comportamentos impróprios, por muito tempo, com muitas mulheres". Motivo reconhecido envergonhadamente pelo ex-jogador: "Estou muito envergonhado. Na semana passada, encarei relatos sobre meu comportamento. Lamentavelmente, não me dei conta de que cruzei uma linha, mas nos últimos dias isso ficou claro para mim. Quero pedir desculpas". E lamentado pelo presidente do Conselho Deliberativo do Ajax, Leen Meijaard: "Isso é dramático para todos os envolvidos. Foi devastador para todas as mulheres que lidaram com esse comportamento. Quando soubemos, avaliamos cuidadosamente o que fazer (...) Marc provavelmente é o melhor diretor de futebol que o Ajax já teve. Não foi à toa que tínhamos renovado seu contrato. Mas ele realmente passou do ponto. Não tinha como seguir".

Tal comportamento foi detalhado em vários sites, nesta segunda. O portal do diário Het Parool comentou que Overmars tinha hábitos como o stalking (seguir alguém insistentemente, pessoalmente ou por mídias sociais) - e chegou a compartilhar fotos de pênis, via aplicativos, com funcionárias do Ajax. Dois diários aprofundaram os relatos: o De Telegraaf registrou que a direção do clube já sabia de tais denúncias desde 25 de janeiro (no mesmo dia Edwin van der Sar escreveu e-mail a todos os funcionários, alertando sobre más práticas), enquanto o Algemeen Dagblad noticiou que o diretor geral "negava fortemente" as primeiras denúncias de assédio de Overmars. Finalmente, o NRC Handelsblad ouviu onze funcionárias do clube de Amsterdã, que se queixaram do chamado "haantjesgedrag" ("comportamento de galos", em holandês): diretores, funcionários e jogadores fazendo gracejos pesados contra mulheres, querendo forçar valentia e virilidade. Uma delas criticou: "O sexismo está dentro da cultura do clube".

Antes de qualquer aspecto esportivo, o aspecto social foi o que mais abalou com as revelações sobre o mau comportamento de Marc Overmars. E um ponto foi unânime: o importante devia ser o estado das funcionárias acossadas pelo ex-diretor, não as lamentações dele. Pesquisadora sobre comportamentos ofensivos no esporte na Universidade Livre de Amsterdã (e conselheira do Ajax entre 2011 e 2012), Marjan Olfers começou à emissora NOS: "Antes de mais nada: como estão as vítimas? Elas foram bem tratadas, sentiram-se contempladas pela nota do clube?" Ex-jogadora de hóquei e apresentadora de tevê na Holanda, Fátima Moreira de Melo indicou que a nota teve uma abordagem errada: "Li que Van der Sar achou [o fato] horrível para todos. Aí penso: esse 'todos' inclui Overmars? Parece-me que algo precisava ser diferente. Foi um pouco infeliz, falando honestamente". Colunista do diário De Telegraaf, Hester Zitvalt foi irônica: "Meu coração está com todos os torcedores do Ajax, que precisarão lidar com esse problema por um tempo. Pobres homens...”.

O tema de assédios contra mulheres já vinha na ordem do dia dentro dos Países Baixos, desde a interrupção abrupta da temporada do programa The Voice, em sua versão holandesa, exatamente por acusação de assédios de um dos jurados, o rapper Ali B, contra algumas candidatas. Por sinal, foi exatamente ao ver a repercussão dessa interrupção que as denúncias enfim chegaram à direção do Ajax - e que Van der Sar decidiu escrever o e-mail de alerta em 25 de janeiro, antes que Overmars fosse chamado às falas e demitido. Até ali, os relatos já vinham acontecendo, desde, pelo menos, o fim do ano passado. O fato de só terem sido revelados agora talvez seja bem resumido pelo título do editorial da revista Voetbal International sobre o tema: "O caso Overmars diz muito sobre o mundo do futebol, em geral - e sobre o Ajax, em particular".

O comportamento omisso de Van der Sar em muitos temas; a má conduta de Overmars, que foi a gota d'água; e o projeto ambicioso do Ajax fica por um fio, com as desconfianças sobre o futuro de Ten Hag (Pro Shots)

Mesmo que o Ajax tenha sido elogiado pelas medidas práticas que tomou em relação ao assunto, o comportamento ofensivo que levou Overmars à ruína foi mais um dos temas espinhosos a atingir a gestão de Edwin van der Sar como diretor geral. Afinal de contas, se o clube foi direto com relação ao motivo da demissão, também é verdade que tem sido muito omisso em relação a pontos nebulosos vividos por importantes personagens, nos últimos tempos. Antes mesmo da revelação de tudo, Overmars já tinha sido acusado de envolvimento com uma empresa de criptomoedas; o atacante Quincy Promes foi indiciado por esfaquear um familiar numa briga, e foi discretamente vendido ao Spartak Moscou; o atacante Zakaria Labyad perdeu espaço no Ajax após ser acusado de ameaçar uma advogada que cuidava de seu contrato; e houve a viagem à pausa de inverno em Portugal, frustrada pela onda de infecções pelo novo coronavírus.

Claro, também há conversas sobre os desdobramentos esportivos que o "terremoto" causado pela queda de Overmars pode (e deve) ter no Ajax. Afinal, trata-se de um dos artífices da reação do clube no cenário europeu, nos últimos anos, com a postura mais agressiva em contratações. Para começo de conversa, já se fala que Erik ten Hag - concordante com a linha de atuação de Overmars no futebol - perdeu o maior estímulo que tinha para continuar no Ajax, devendo sair ao fim da temporada. E até que o time volte a campo, ficará a dúvida sobre a influência que o aspecto fora de campo terá dentro.

Por falar nisso, uma frase conhecida de Overmars, nos últimos anos, falava em "tornar o Ajax o Bayern de Munique da Holanda". Projeto que vinha dando certo, mas que tinha certos furos. E que sofreu duro golpe com os assédios de Overmars. Talvez reflita um velho hábito do Ajax que, enfim, voltou: tão convencido de sua grandeza, tão certo de que estava no bom caminho, o diretor errou pesadamente. E pode ter posto tudo a perder.

Como ocorre com muitos homens.

Um comentário: