domingo, 15 de maio de 2022

A análise do campeão: final (quase) feliz

O Ajax conseguiu chegar a mais um título no Campeonato Holandês. Mas este mostrou os desgastes de um ciclo que chega ao fim (Pro Shots/Getty Images)


Quarta-feira, 11 de maio de 2022. Johan Cruyff Arena, em Amsterdã. Após a goleada por 5 a 0 sobre o Heerenveen, a delegação do Ajax festeja o 36º título holandês da história do clube. Obviamente, o clima de festa predominava. Mas certas declarações de personagens importantes dos Ajacieden indicavam, mais do que alegria, um sofrimento até inesperado para uma equipe que começara a temporada 2021/22 do Campeonato Holandês como franca favorita a ser o que foi: campeã - ou melhor, tricampeã (2018/19, 2020/21 e 2021/22 - sem contar 2019/20, a temporada sem vencedor). O treinador Erik ten Hag comentava à ESPN dos Países Baixos: "Sim, essa conquista foi mais difícil do que as outras duas". O diretor geral Edwin van der Sar desabafava: "Falando esportivamente, cumprimos o objetivo. Mas foi muito difícil, principalmente nestes últimos três meses". Por quê tanto alívio? Talvez porque o Ajax tenha mostrado fragilidades antes invisíveis. Que deixaram claro: a salva de prata conquistada indica, como as outras não indicavam antes, que um ciclo se acabou.

A impressão que o início da temporada passava era contrária. Certo, havia uma incômoda goleada sofrida na Supercopa da Holanda (PSV 4 a 0 em plena Johan Cruyff Arena, em 7 de agosto de 2021). Ainda assim, o poderio do Ajax estava claro em várias coisas. Na manutenção dos destaques, como Antony e Dusan Tadic. Na expectativa que Sébastien Haller poderia causar, na primeira temporada completa que passaria em Amsterdã. Na prova de poder que foi a humilhação imposta ao arquirrival Feyenoord: contratar dele o principal destaque em campo, Steven Berghuis. No modo bem azeitado como o clube funcionava internamente, com o diretor de futebol Marc Overmars trabalhando em parceria com Ten Hag, enquanto Van der Sar liderava os rumos do clube.

Essa expectativa positiva se confirmou na primeira metade da temporada. No Campeonato Holandês, as goleadas se avolumavam. Basta dizer que a rodada inicial trouxe um 5 a 0 indubitável sobre o NEC (14 de agosto). Viriam mais: 5 a 0 no Vitesse (3ª rodada, 29 de agosto), 9 a 0 no Cambuur (5ª rodada, 18 de setembro), 5 a 0 no Fortuna Sittard (6ª rodada, três dias depois da vitória extravagante sobre o Cambuur). Os destaques cumpriam plenamente a expectativa: Haller fazia gols e mais gols, Antony encantava a torcida com dribles úteis, Tadic era a liderança técnica inquestionável, Berghuis se entrosava à perfeição como principal criador de jogadas ao deixar Davy Klaassen, lesionado, no banco. 

E o destaque do Ajax ia além. Se ainda eram jovens se afirmando no título de 2021/22, tanto Jurriën Timber quanto Ryan Gravenberch comprovavam o grande talento que tinham em suas respectivas posições - Timber como um zagueiro ofensivo, Gravenberch como um meio-campista de muita inteligência. Mesmo com a lesão de Maarten Stekelenburg no gol, o também veterano Remko Pasveer assumia o lugar às pressas - e tinha sucesso. Tudo isso era visto, mais do que na Eredivisie, na Liga dos Campeões. 

Brilhando na fase de grupos, seis vitórias em seis jogos, triunfos respeitabilíssimos (como estrear impondo 5 a 1 no Sporting em Lisboa, ou fazer 3 a 1 no Borussia Dortmund em pleno Signal Iduna Park - em que pesem erros inegáveis da arbitragem naquele jogo -, sem contar os 4 a 0 no Dortmund): os Amsterdammers davam a promissora impressão de que era possível sonhar em virar moda no futebol mundial de novo, como o time fora em 2018/19. Aliás, a atuação na fase de grupos fora até melhor desta vez. Em suma: mesmo perdendo a primeira no fim de 2021 (o AZ fez 2 a 1 em plena Johan Cruyff Arena, na 16ª rodada), mesmo mostrando aqui e ali a insistente dificuldade em encarar times fechados (algo notável no Go Ahead Eagles segurando o 0 a 0, pela 12ª rodada), o Ajax era absolutamente dominante. Na Holanda e, quem sabe, na Europa. Se já fora assim em 2021, a confirmação em 2022 poderia ser impressionante.

Mas essa confirmação não veio.

Erik ten Hag (à esquerda) deixa o Ajax com mais um título, para se arriscar decisivamente no Manchester United. E o diretor geral Van der Sar terá de coordenar muitas mudanças (Jasper Ruhe/Pro Shots)

A dificuldade no clássico contra o PSV (2 a 1 em Eindhoven, 20ª rodada - com um gol polêmico de Noussair Mazraoui para definir a vitória) indicou que o Ajax começava a ficar mais manjado do que se supunha. Isso começou a ficar preocupantemente claro para os Ajacieden no 1 a 0 contra o Willem II (23ª rodada do Holandês): diante de um clube que sofria com a ameaça de rebaixamento - e que terminou caindo para a segunda divisão -, o Ajax teve seríssimas dificuldades. Tanto para segurar contra-ataques, quanto para fazer gols em defesas fechadas. A consequência final não poderia ser mais dolorosa. Nas oitavas de final da Liga dos Campeões, contra o Benfica - contra o qual foi considerado favorito -, o Ajax começou bem em Lisboa. Mas o excesso de avanço da defesa (Timber e Daley Blind que o digam) cedeu espaço para os ataques benfiquistas, que conseguiram o empate em 2 a 2. Entre um jogo e outra, uma surpresa péssima: perder para o Go Ahead Eagles, algo que não acontecia ao Ajax na Eredivisie havia 43 anos (2 a 1, na 24ª rodada). Mais duas vitórias que pareciam fáceis e se tornaram dramáticas (3 a 2 no RKC Waalwijk, na 25ª rodada, e no Cambuur, na 26ª rodada). E na volta das oitavas da Champions, em Amsterdã, a repetição de uma velha história: um Ajax cada vez mais desesperado e precipitado ao fracassar nos ataques, enquanto o adversário se continha, até aproveitar a chance, ganhar e se classificar. Foi o que o Benfica fez, indo às quartas de final com uma atuação defensivamente perfeita e uma vitória - 1 a 0.

A essas alturas, mais furos apareciam no casco do barco. O maior deles, o anúncio feito na noite de 13 de fevereiro: a saída imediata do diretor de futebol. Mas se Marc Overmars fazia trabalho tão bom, por quê sair? A causa chocou ainda mais: Overmars teve comprovadas condutas de assédio sexual contra funcionárias e ex-funcionárias do clube - e assumiu isso. De certa forma, retratava um pouco o que era o Ajax: um clube dominante, que de tanto domínio, se perdeu ao se imaginar iniciando uma hegemonia. A queda traumática de Overmars ("Não voltei a falar com ele desde então, lamentou o diretor geral Van der Sar) sinalizou que a intenção estava a perigo - até porque abria a porta para a saída de Ten Hag, tantas vezes ensaiada. Outra polêmica foi a volta de André Onana ao gol do Ajax. Terminada a suspensão por doping, em novembro do ano passado, o goleiro camaronês se manteve com a intenção de sair do clube. Soou como ingratidão para a torcida - que nunca perdoou Onana. A falha no gol de Darwin Núñez que definiu o 1 a 0 e a classificação do Benfica na Liga dos Campeões só arruinou mais a relação. E revelações como o acordo encaminhado com a Internazionale, saindo de graça ao fim do contrato, só tornaram Onana persona non grata para muitas pessoas.

Como o Ajax poderia se recuperar de impactos tão duros? Meramente com eficiência. Foi o feito no Campeonato Holandês: se o PSV ensaiava se aproximar na tabela, o negócio era ganhar, mesmo jogando mal. Foi a tônica Ajacied nas últimas rodadas: ganhar como fosse. E uma sequência de vitórias com más atuações colocou o Ajax às portas de mais um título: a virada suada no Klassieker contra o Feyenoord (3 a 2, na 27ª rodada), outras viradas de placar (3 a 1 no Groningen, na 28ª rodada, e 2 a 1 no Sparta Rotterdam, na 29ª rodada). Triunfos que amorteceram mais um duro impacto: a perda da Copa da Holanda, para o PSV. Porque colocavam o Ajax na rota do título holandês. Título afinal ganho, com duas vitórias que evocaram o domínio da primeira metade da temporada (3 a 0 no Zwolle, na 31ª rodada, e 5 a 0 no Heerenveen, na 33ª rodada) - com um empate salvador no meio (2 a 2 com o AZ).

E veio mais um título holandês para o Ajax. Mais um final feliz. Mas sem tanta felicidade quanto em temporadas anteriores, porque indica: um ciclo se acabou. Erik ten Hag sairá, tendo a chance para catapultar decisivamente sua carreira (ou ter um fracasso pouco recomendável) no Manchester United. Outros nomes símbolos destes anos vitoriosos também devem deixar Amsterdã com boas lembranças: Noussair Mazraoui, Ryan Gravenberch, talvez Antony, talvez Sébastien Haller. Todas mudanças necessárias. Porque se sabe, na Johan Cruyff Arena, que algo precisa mudar para que o Ajax continue campeão como está.

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