Ganhar um título é sempre bom. Ganhar um título em casa é ainda melhor. E quando, no caso europeu, a coincidência permite que uma conquista continental seja ganha com o jogo único da final no próprio estádio, a alegria da torcida fica próxima do êxtase. O Feyenoord é um dos poucos clubes europeus a poder ostentar esse luxo. Afinal de contas, no último título de torneio europeu ganho por um clube da Holanda (Países Baixos), há 20 anos, o Stadionclub venceu a final da Copa da UEFA 2001/02 exatamente em De Kuip, superando o Borussia Dortmund. Um verdadeiro conto de fadas - que nem a tristeza de uma morte dias antes da final perturbou.
O time: a chegada que turbinou a base entrosada
Quando a temporada 2001/02 começou, o Feyenoord vivia uma fase de relativo sucesso. O crédito com a fanática torcida ainda estava em alta, pelo título holandês na temporada 1998/99. Vindo para o lugar de Leo Beenhakker em 2000, o técnico Bert van Marwijk já tinha um ano de trabalho, e uma base entrosada no time que era escalado. Os zagueiros Kees van Wonderen e Patrick Paauwe, os laterais Tomasz Rzasa (polonês) e Christian Gyan (ganês), os volantes Shinji Ono (japonês) e Paul Bosvelt, o meio-campo Bonaventure Kalou (marfinense), o atacante Jon Dahl Tomasson (dinamarquês): todos esses citados já estavam no Feyenoord havia pelo menos dois anos. Bastava para boas campanhas: terceiro lugar na Eredivisie conquistada pelo PSV em 2000/01, o Stadionclub tinha garantido um lugar na fase de grupos da Liga dos Campeões.
O Feyenoord já tinha uma base entrosada dos anos recentes, mas a vinda de Van Hooijdonk foi o diferencial necessário para o sucesso em 2001/02 (Adam Davy/Empics/Getty Images) |
Mas uma contratação antes de 2001/02 fez a diferença entre um time bom e um time capaz de ser campeão. E não foi a do goleiro Edwin Zoetebier, voltando ao Feyenoord após um ano passado no Vitesse, para ocupar lacuna importante (afinal, Jerzy Dudek rumara para o Liverpool). A vinda decisiva para aquele time seria negociada junto ao Benfica. Lá, o atacante Pierre van Hooijdonk declarara o desejo de voltar à Holanda (Países Baixos), sentindo-se desprestigiado pela nova diretoria. A diretoria do Stadionclub soube, negociou, e na reta final da janela de transferências daquela temporada, Van Hooijdonk acertava a chegada a De Kuip.
Ela teria muito sucesso. Mas ninguém sabia disso ainda.
O começo: uma Champions esquecível e algumas mudanças
Ninguém sabia disso, a princípio, porque a participação do Feyenoord na Liga dos Campeões 2001/02 foi esquecível. Também, pudera: no grupo H estava o Bayern de Munique, campeão europeu na temporada anterior, e um Sparta Praga que se revelaria digno - com nomes que surgiam fulgurantes, como um goleiro chamado Petr Cech, 19 anos de idade na época. O Feyenoord tentaria disputar o posto de surpresa com o Spartak Moscou - e já começaria tropeçando contra o time russo, com um 2 a 2 na estreia. Na segunda rodada, ficaram ainda mais claras as dificuldades para passar da fase de grupos: na Tchéquia, o Sparta Praga fez 4 a 0 no Feyenoord.
Mas a terceira rodada indicou que dias melhores poderiam vir: em De Kuip, tanto Van Hooijdonk quanto Jon Dahl Tomasson marcaram gols, e o Feyenoord conseguiu empatar com o Bayern (2 a 2). Derrotas seguidas eliminaram o clube neerlandês da Champions de cara - 2 a 0 para o Sparta Praga na 4ª rodada, 3 a 1 para o Bayern na 5ª rodada -, mas a última rodada abria caminho para a "vaga de consolação" nas oitavas de final (na época, eram as oitavas) da Copa da UEFA. Num jogo direto, em De Kuip, Feyenoord e Spartak Moscou decidiram os dois últimos lugares do grupo. O vencedor ocuparia a terceira colocação e "cairia" para a Copa da UEFA. Ainda no primeiro tempo, o placar foi decidido: Van Hooijdonk fez 1 a 0 aos 5', o russo Vladimir Beschastnykh empatou para o Spartak aos 14', mas o sueco Johan Elmander fez, logo aos 18', o 2 a 1 que seria o placar final - e que possibilitaria ao Feyenoord continuar com a temporada europeia.
Para tanto, quando chegou a terceira fase da Copa da UEFA, ainda no fim de 2001 (mais precisamente, em novembro), Bert van Marwijk consolidou uma base no time que escalava, descartando mais nomes. Paulatinamente, perderiam espaço gente como o lateral direito australiano Brett Emerton e o zagueiro veterano Ulrich van Gobbel - este, desgastado pelo gol contra cometido para o Bayern de Munique. Nomes como os atacantes Euzebiusz "Ebi" Smolarek (polonês) e Leonardo (brasileiro, carioca, vindo de torneios de favela diretamente para Roterdã) seriam mais fixos na reserva, entrando esporadicamente. Alguns jovens seriam testados: uns não aprovariam, como o zagueiro Civard Sprockel (19 anos), já outros agarrariam a chance para decolar, como um tal Robin van Persie que voltará a ser falado. E assim (re)começou o caminho do Feyenoord, rumo a De Kuip.
O começo: conseguindo o possível
Na terceira fase da Copa da UEFA, coube ao Feyenoord enfrentar o Freiburg-ALE. E as dificuldades já começaram por ali. No jogo de ida (22 de novembro de 2001, em Roterdã), Shinji Ono só fez o gol da vitória por 1 a 0 a oito minutos do fim; na volta (6 de novembro de 2001, em Friburgo), o time alemão contou com o seu destaque - o atacante georgiano Levan Kobiashvili -, chegou a abrir 2 a 0 e ficar perto da vaga, mas Van Hooijdonk fez o gol fora de casa que já daria a vaga, mesmo com derrota. E coube ao brasileiro Leonardo, que substituiu Smolarek, fazer o gol do 2 a 2 que levou o Feyenoord às oitavas de final da competição europeia.
2001 terminou, 2002 chegou, com ele as oitavas de final da Copa da UEFA, e o adversário do Feyenoord seria ainda mais exigente: o Rangers. No time escocês, treinado então por Ally McCoist, sobrava experiência: Bert Konterman e Arthur Numan na defesa, o argentino Claudio Caniggia e o norueguês Tore Andre Flo no ataque - todos eles com Copas do Mundo no currículo (sem contar mais um holandês, Ronald de Boer, que só estaria no jogo de volta). Na primeira partida, em Glasgow, Bert van Marwijk escalou um novato de 18 anos na zaga, Glenn Loovens, para fazer a dupla da defesa com Kees van Wonderen. No decorrer do jogo, o técnico Feyenoorder ainda deu a primeira partida da carreira de Robin van Persie, 18-para-19 anos, numa competição europeia (Van Persie substituiu Bonaventure Kalou, aos 58'). Quase deu certo: Shinji Ono fez 1 a 0, e o Rangers só empatou no fim, com Barry Ferguson. Ainda assim, o 1 a 1 era bem útil ao time de Roterdã.
Que mostrou no jogo de volta: tinha tanta experiência, tanta capacidade, quanto o respeitável Rangers. Ou até mais. Porque, se o time azul escocês saiu na frente em De Kuip - Barry Ferguson fez 1 a 0, aos 26' -, ali Pierre van Hooijdonk começou a sinalizar que seria o melhor jogador daquela Copa da UEFA. O atacante virou o jogo com dois gols, ainda no primeiro tempo, fazendo a torcida iniciar um coro que seria marca daquela campanha no fervilhante estádio: "Put your hands up for Pi-Air" ("Erga suas mãos por Pi-Air", em português - um trocadilho do nome Pierre com a excelente capacidade do holandês no jogo aéreo). Logo no primeiro minuto da etapa final, Bonaventure Kalou fez 3 a 1. E aí, a capacidade do Feyenoord aguentar dramas foi posta à prova. Porque o zagueiro Patrick Paauwe foi expulso aos 53', ao cometer pênalti que Ferguson converteria, diminuindo para 3 a 2.
O Feyenoord aguentou. Superou o Rangers. Fez o que se esperava diante de adversários acessíveis: se classificou, indo às quartas de final da Copa da UEFA. Que representariam o primeiro capítulo realmente inesquecível daquela história.
Quartas de final: o sonho fica mais perto eliminando um rival direto
O começo deste texto dizia que conquistar um torneio europeu com a final em casa era um dos sonhos mais deliciosos que um clube do Velho Continente poderia sonhar. Mas a trajetória do Feyenoord na Copa da UEFA 2001/02 tem um tempero adicional. Ele foi colocado nas quartas de final daquela campanha. Qual seria o adversário do Stadionclub? O PSV. Pois é: quis o sorteio que um clássico holandês definisse um semifinalista. Campeão holandês de então, também vindo da Liga dos Campeões daquela temporada, o time de Eindhoven tinha experiência apenas no lateral esquerdo Jan Heintze, campeão europeu com os Boeren em 1987/88. Mas havia muita gente que seria relativamente conhecida no time que o belga Eric Gerets treinava: André Ooijer na zaga, Wilfred Bouma e Mark van Bommel como volantes, Jan Vennegoor of Hesselink e Mateja Kezman como atacantes... todos, abaixo dos 25 anos.
A experiência do Feyenoord contra a juventude do PSV renderiam duas partidas inesquecíveis - ainda mais na Holanda - naquelas quartas de final. Na ida (14 de março de 2002, em Eindhoven), surpresa no Philips Stadion. O time dominante no primeiro tempo foi o Feyenoord: a pressão acuou a defesa do PSV, Van Persie acertou uma bola na trave... e no minuto final da etapa inicial, Van Hooijdonk aproveitou rebote do goleiro Ronald Waterreus para fazer seu quarto gol naquela Copa da UEFA. Logo que o segundo tempo começou, porém, Mateja Kezman deu o troco na mesma moeda: em dois minutos, empatou. E o 1 a 1 fazia esperar por outro jogo empolgante na volta.
Foi exatamente o que se viu no dia 21 de março de 2002, em Roterdã. De Kuip foi o cenário de um daqueles clássicos tensos. O placar sem gols, por boa parte do tempo, só aumentava ainda mais o nervosismo dos torcedores, fossem eles Eindhovenaren ou Rotterdammers. Até que, aos 76', Van Bommel fez o seu melhor: chute de fora da área, preciso, no ângulo esquerdo de Zoetebier, fazendo 1 a 0 para o PSV. Parecia o fim para o Feyenoord, que só teria 14 minutos, mais os acréscimos, para tentar o empate ou até uma virada. Aí, talvez, o primeiro sinal real de como Van Hooijdonk estava "iluminado" - e como o Stadionclub talvez tivesse a chamada "sorte de campeão". Exatamente no último minuto, crizamento de Brett Emerton, da direita. "Pi-Air" cabeceou, e a bola fez um arco, até parar no canto esquerdo de Waterreus. 1 a 1: o Feyenoord estava salvo, de modo "milagroso", como expôs o narrador. E após a prorrogação, o classificado daquele encontro holandês seria definido nos pênaltis.
Cobranças bem feitas, de parte a parte. Mas o georgiano Giorgi Gakhokidze errou a dele, a terceira na série do PSV: Zoetebier pegou. Os experientes jogadores do Feyenoord foram perfeitos na série, que Van Hooijdonk finalizou. 5 a 4 nas cobranças, Stadionclub semifinalista da Copa da UEFA, De Kuip explodia em alegria.
Superar o rival nacional PSV rumo às semifinais foi o impulso necessário e decisivo para o grupo do Feyenoord saber que poderia, sim, sonhar com a decisão daquela Copa da UEFA em De Kuip. A experiência estava ali: em Van Wonderen (33 anos) na zaga, em Bosvelt (32 anos) no meio-campo, em Van Hooijdonk (32-para-33 anos) no ataque. A juventude, também: Van Persie, 18 anos, já era titular do Stadionclub, e Johan Elmander, 20 anos, continuava entrando aqui e ali mesmo na reserva. Aos 22, Shinji Ono era incansável no meio-campo. E impressionava: falando sobre os 20 anos daquele título à revista Voetbal International, o técnico Bert van Marwijk opinou que Ono "poderia ter sido um craque, se não tivesse de voltar sempre ao Japão". Essa mescla bem feita de experiência e juventude, mais a fase esplendorosa de Van Hooijdonk (bem ajudado por Tomasson), já serviriam para o Feyenoord ser levado muito a sério nas semifinais.
E o adversário era bem mais conhecido, em nomes e em técnica. Também perseguindo um título italiano que não ganhava havia 13 anos - e que perderia na última rodada -, a Internazionale vinha com Francesco Toldo no gol; Javier Zanetti, Iván Córdoba e Marco Materazzi na defesa; Clarence Seedorf, Emre Belozoglu e Sérgio Conceição no meio; no ataque, Mohamed Kallon, Nicola Ventola, Christian Vieri... e Ronaldo, na fase final da recuperação da gravíssima lesão no joelho que tivera em 2000, ainda entrando no decorrer dos jogos.
Van Marwijk notou, na semifinal contra a Internazionale: o time experiente que tinha em mãos estava preparado para o título (Christof Koepsel/Bongarts/Getty Images) |
Pois o Feyenoord não ligou para nada disso. Nos vestiários de San Siro, para a partida de ida (4 de abril de 2002), Van Hooijdonk lembrou o resto do time: só havia aquelas duas partidas da semifinal separando a equipe da sonhada final em De Kuip. Era a hora de se mostrar merecedor de respeito. E o Feyenoord mostrou. Passou sufoco no primeiro tempo, é verdade: Ventola chegou a ter um gol anulado por impedimento, enquanto Van Hooijdonk perdeu chance incrível na pequena área. Todavia, no segundo tempo, a sorte ajudou: Van Hooijdonk (como ele aparece nesta campanha...) cruzou, Iván Córdoba tentou desviar para fora... e cometeu gol contra. O 1 a 0 seria seguro até o fim. E os torcedores do Feyenoord que lotaram a parte visitante do Giuseppe Meazza saíram de Milão cada vez mais otimistas.
A Holanda (e mais precisamente, Roterdã) se comoveu com a morte de Pim Fortuyn, um polêmico nome da política. E isso respingou na final da Copa da UEFA (Martin Rose/Bongarts/Getty Images) |
Em meio à comoção nacional pela morte de Pim Fortuyn, a torcida do Feyenoord ainda lotou De Kuip naquela final - e esta foto ganhou o mundo desde então (Jasper Juinen/ANP/AFP/Getty Images) |
Bela reportagem. O Mauro falou hj do blog e vim conhecer.
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