quinta-feira, 5 de maio de 2022

Um time que renasceu

Onde havia um time afetado por traumas e crises, há uma equipe firme, motivada e talentosa: chegar à  Conference League simboliza um Feyenoord redivivo em campo (feyenoord.nl)


No serviço de streaming Star Plus, da Disney, há a série "Feyenoord: dat ene woord" (título traduzido para o português como "Feyenoord: por dentro do time"), retratando internamente como o time de Roterdã viveu a temporada 2020/21. Independentemente da anormalidade que se vivia naquela temporada, com a fase mais aguda da pandemia de COVID-19, a impressão que os nove episódios da série passam é de um time que se desanimava com qualquer problema, que fazia sua torcida sofrer. Pior: a impressão era de um Feyenoord parado no tempo, precisando de um tremendo chacoalhão para recuperar sua grandeza. Pois bem: o tempo passou, essas sacudidelas vieram - algumas encorajadoras, outras traumáticas -... e o Stadionclub pode sorrir, de novo. A torcida pode mostrar orgulho, de novo. O Feyenoord mostra um trabalho digno dentro de campo. E prova isso, com a vaga na final da Conference League - primeira decisão do clube em torneios continentais, após 20 anos.

O curioso é que, ao mesmo tempo em que os episódios de "Dat ene woord" indicam algum defasamento de um time que passou mais dificuldades do que o esperado para um grande da Holanda/Países Baixos (o Feyenoord só conseguiu a vaga na Conference League via play-offs após a temporada, vencendo Sparta Rotterdam e Utrecht), também indicavam que a reformulação dentro de campo viria. Começando num personagem pouco falado: Frank Arnesen, diretor de futebol. O ex-jogador dinamarquês, nome experiente nos meandros do futebol europeu - Arnesen já foi diretor esportivo de PSV e Chelsea -, não só chegara ao Feyenoord, como sabia que algo precisava mudar. 

Frank Arnesen pôs sua experiência à disposição do Feyenoord, na reformulação do time em campo (Getty Images)

Por causa dessa impressão, o técnico Dick Advocaat se antecipou e declarou que deixaria o clube, antes mesmo da temporada passada acabar. E partiu de Arnesen a decisão sobre o técnico que deveria conduzir o clube da beira do rio Maas a um novo lugar em campo: Arne Slot. Mesmo treinando um AZ que era consistente (empatava em pontos com o Ajax na liderança quando a pandemia encerrou sem campeão a Eredivisie 2019/20), Slot aceitou. Nem a demissão do AZ, logo que soube da sondagem do Feyenoord, intimidou o treinador. Contudo, o mérito de Arnesen foi além, chegando à montagem do grupo de jogadores que Slot teria à disposição. Em meio a um grupo excessivamente heterogêneo, o diretor de futebol Feyenoorder soube identificar nomes que desejavam deixar o clube (Nicolai Jorgensen, Eric Botteghin), ou mesmo nomes que andavam desagradando e não teriam a intensidade que o técnico novo desejava (Leroy Fer, Luciano Narsingh). 

Todos eles deixaram Roterdã sem crises - assim como empréstimos que se mostraram inadequados para a equipe em campo, caso de Lucas Pratto, por exemplo. Ficaram apenas os jogadores que efetivamente seriam úteis para o que se veria em De Kuip a partir desta temporada 2021/22. Justin Bijlow no gol; Lutsharel Geertruida, Marcos Senesi e Tyrell Malacia na defesa; Jens Toornstra e Orkun Kökcü no meio-campo; Bryan Linssen e Luis Sinisterra no ataque. A partir desta base, Arnesen notou bem o mercado de transferências. E trouxe nomes baratos que caíram como uma luva no Feyenoord. Na zaga, o austríaco Gernot Trauner veio do LASK Linz para se entrosar muito bem com Senesi. No meio-campo, vieram tanto nomes em definitivo (o norueguês Fredrik Aursnes, do Molde-NOR) quanto empréstimos certeiros (Guus Til, para ser um meio-campista que chegasse ao ataque). E no ataque, mais alternância entre empréstimos úteis - Cyriel Dessers - e vindas em definitivo com alguma experiência, caso de Alireza Jahanbakhsh.

Arne Slot chegou com respaldo para mostrar um novo Feyenoord em campo. Está mostrando, até agora (Mischa Keemink/Pro Shots)

Nada mais apropriado para o Feyenoord aguentar um dos piores golpes que poderia sofrer antes da temporada: ver seu principal destaque dentro de campo, Steven Berghuis, preferir migrar justamente para o arquirrival Ajax. Golpe engolido em seco pelo grupo e recebido com a mágoa irritada e esperada da torcida, o Stadionclub começou. E como se quisesse mostrar que nada o deteria, mostrou a característica que Het Legioen, apelido de sua apaixonada torcida, mais respeita nos jogadores: o esforço. Foi o esforço que levou Guus Til a virar um jogo contra o Drita, de Kosovo, em pleno De Kuip, ainda na segunda fase preliminar da Conference League: após o 0 a 0 da ida, o que poderia ser uma eliminação humilhante com o 2 a 1 do Drita foi virado num fervilhante 3 a 2.

Foi o esforço que levou o Feyenoord a empilhar algumas daquelas vitórias que fazem a torcida se aproximar, simpatizar com alguns jogadores, empurrar o time. Só no Campeonato Holandês, foram pelo menos três jogos ganhos nos últimos minutos: 5 a 3 contra o NEC (7ª rodada), 1 a 0 contra o Sparta Rotterdam (11ª rodada), 1 a 0 contra o AZ (13ª rodada). Na boa campanha pela fase de grupos da Conference League, o marco de que coisas marcantes poderiam vir, com o 2 a 2 da classificação contra o Slavia Praga tcheco, nos acréscimos, pelo gol de Cyriel Dessers aos 90' + 3: mesmo sem ser titular - Bryan Linssen era a escolha preferencial de Arne Slot no meio da área -, Dessers começou a fazer tantos gols após os 90 minutos que mereceu o apelido de "Supersub". E havia outras coisas que saltavam aos olhos. O crescimento de Geertruida e Malacia nas laterais, a ponto de fazer Malacia ser convocado e entrar na disputa por vaga na Holanda que jogará a Copa. A recuperação notável de Guus Til na carreira. A melhor fase de Luis Sinisterra, enfim autoconfiante após uma lesão e o susto de um colombiano vivendo nos Países Baixos.

Claro, houve problemas. A eliminação algo inesperada na Copa da Holanda, para o Twente. Alguns resultados que inviabilizaram sonhar com o título holandês - perder do Vitesse em casa, perder do AZ, suportar uma virada do Ajax no Klassieker mesmo fazendo jogo duríssimo em Amsterdã. O grupo curto, que sucumbia a algumas lesões - o gol que o diga, com o israelense Ofir Marciano sendo promovido a titular por mais um problema de Justin Bijlow. Mas a Conference League, sonho que parecia distante, ia se formando. A primeira posição na fase de grupos; a eliminação com autoridade diante do Partizan sérvio nas oitavas de final, vencendo em Belgrado e Roterdã; o reencontro emocionante com o Slavia Praga nas quartas, superando a decepção da ida (empate em De Kuip, 3 a 3 sofrido no último lance do jogo) com um 3 a 1 categórico em Praga; e a afirmação definitiva, nestas semifinais contra o Olympique de Marselha, mais esperto no ataque durante o 3 a 2 da ida, controlado na defesa no empate sem gols da volta.

O fracasso da Feyenoord City, por falta de dinheiro, indica que os problemas do Stadionclub seguem fora de campo (OMA/ANP)

A temporada não acabou, lembraram nomes como Malacia e Til após a comemoração em Marselha. O Feyenoord quer surpreender a favorita Roma na final da Conference League. Há ainda a possibilidade de ser o "fiel da balança" no Campeonato Holandês, pegando o PSV no clássico da próxima rodada - e podendo decidir a terceira posição contra o Twente, no jogo direto da última rodada. E não é porque o espírito dentro de campo está renovado que a situação está resolvida fora: o Feyenoord segue com pouquíssima renda em caixa, segue com discordâncias fortes entre torcida e diretoria (a saída do diretor geral Mark Koevermans no meio da temporada, após ameaças de adeptos, é um exemplo), e sequer pode sonhar com voos mais altos. Basta lembrar o projeto ambicioso da Feyenoord City, complexo esportivo/estádio que seria construído à beira do rio Maas, abandonado pela falta de dinheiro - e pelo apego da torcida a De Kuip, um templo defasado.

Mas independentemente disso tudo, mesmo que o Feyenoord não consiga título nenhum na temporada, algo ele já ganhou. Ou melhor, já recuperou: ânimo, vontade, garra. A torcida não precisa de muito para voltar a ter orgulho de lotar De Kuip. E bem que desejava ver uma nova temporada da série no Star Plus, para mostrar este remoçado time...

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