Pelé atraiu a atenção de um padre em Enschede. Atraiu a atenção de toda a Holanda, em 1959 (Tubantia/Reprodução) |
Talvez Edson (ou Edison) Arantes do Nascimento estivesse destinado a alegrar torcidas do mundo todo - acima de todas, as do Santos e da Seleção Brasileira - desde que nasceu, em 23 de outubro de 1940, na cidade mineira de Três Corações. Talvez isso tenha ocorrido desde sua estreia no futebol profissional, em 7 de setembro de 1956, quando já marcou gol no arqueiro Zaluar - que se orgulhou disso -, nos 7 a 1 que o Santos fez sobre o Corinthians de Santo André. Ou talvez, desde o primeiro de seus 77 gols pela Seleção, em 7 de julho de 1957, contra a Argentina, pela Copa Roca (antigo torneio entre as duas seleções). Desde sua revelação fulgurante, na Copa de 1958, certamente, qualquer pessoa do planeta que gostasse de futebol queria vê-lo jogando. E o Reino dos Países Baixos teve a honra de ter Pelé jogando por três vezes em seu território.
Como quase sempre passou a ocorrer com Pelé após 1958, elas foram em amistosos - mais precisamente, em 1959. Todos queriam ver o Santos, campeão paulista no ano anterior - com ele como goleador do campeonato estadual, graças a 58 gols marcados. A Holanda estava nessa. Aliás, estava nessa também em relação a outro clube brasileiro que atraía multidões graças a seus ases: o Botafogo, que também tinha muitos nomes campeões mundiais pelo Brasil na Suécia (Nilton Santos, Didi, Zagallo e Garrincha). O Glorioso já jogara por lá em 1959, em amistosos contra o Fortuna '54 (um dos antecessores do Fortuna Sittard atual), o Willem II e o Feyenoord. Houve, lógico, interesse em ver o Santos, o "time do Pelé". Que aceitava os vários convites para excursões, em razão do dinheiro que rendiam. Logo, em maio de 1959, a delegação santista embarcou para o que seriam 22 jogos em 45 dias na Europa.
E em 2 de junho de 1959, chegou a vez da Holanda ver o Santos. Um país que só acompanhara aquele novato pela televisão (a Europa já viu a Copa de 1958 pela telinha), ou pelas fotos de revistas como a Paris Match. O interesse era tanto que crianças lotaram os arredores do Hotel Hofman, onde a delegação santista se hospedou, esperando por autógrafos. Pelé, inclusive, dava as assinaturas - e algumas moedas a elas, achando que fossem pedintes. Uma daquelas crianças cresceu - e escreveu um livro sobre aqueles dias: Gerald Helsma relatou o que viveu em "De Zwarte Parel in het Groningse Oosterpark" ["A Pérola Negra no Oosterpark de Groningen"].
Pois é: o amistoso foi num estádio humilde, até - o Oosterpark, em Groningen. Mas contra o melhor time holandês daquele momento: o Feyenoord, contando com alguns ótimos jogadores pré-Cruyff - o goleiro Eddy Pieters Graafland, o meio-campo Cor van der Gijp, os atacantes Kees Rijvers e Coen Moulijn. Van der Gijp ressaltou a ilusão que o Stadionclub tinha, à revista Voetbal International: "Éramos um time bom. A gente chegou a jogar bem na Copa dos Campeões [na temporada 1962/63, o Feyenoord chegou às semifinais do torneio europeu, quando foi derrotado pelo Benfica - que perderia o Mundial Interclubes para o Santos]. A gente foi para o jogo meio se achando. Se o Pelé jogava no Santos, a gente bem podia ser o 'Santos 2'. Pelo menos a gente pensava isso".
O resultado? Van der Gijp riu: "A gente pensava que podíamos ser paralelos aos brasileiros, mas o Santos sempre acelerava. Eles podiam fazer o que quiser, e a gente só podia ver". Pois é: o Peixe fez 3 a 0 naquele amistoso em Groningen, com tremenda facilidade. Como que para justificar tanto interesse, Pelé fez o primeiro, aos 25', aproveitando rebote de chute de Zito na trave; aos 41', Pepe lançou, e Coutinho aproveitou para fazer 2 a 0; no segundo tempo, Pagão fez 3 a 0. No fim do jogo, a prova maior do interesse holandês em ver Pelé (e de como as séries de amistosos o extenuavam). Cansado, ele quis sair do jogo, ser substituído. Auxiliar de Leo Horn, Klaas Schipper simplesmente proibiu a saída. E Pelé jogou os 90 minutos da partida vista unanimemente pelos jornais holandeses: "O Feyenoord é coadjuvante no show de bola do Santos" (Het Parool), "O valente Feyenoord não teve chance contra o Santos" (Algemeen Dagblad), "Uma técnica incrível foi demais para o time de Roterdã" (De Telegraaf).
A impressão foi eterna para Cor van der Gijp, tanto tempo depois, se admirando à Voetbal International: "Eu acabei de falar com meus netos sobre o Santos. As crianças idolatram os jogadores brasileiros de agora. Mas eu ainda acho que os brasileiros de então eram muito melhores. Eles tinham um nível que a gente nunca poderia alcançar. Eu sei, porque joguei contra eles".
No registro do De Telegraaf, o tamanho do poderio do Santos contra o Feyenoord (Reprodução) |
A segunda passagem de Pelé jogando na Holanda veio por obra e graça de Henny Walhof, diretor financeiro do SC Enschede (um dos clubes que se envolveram na fusão que gerou o atual Twente). No começo de 1959, ele já entrara em contato com o empresário Roberto Fauszlegier, que coordenava as excursões do Santos pela Europa. Espantou-se com o preço pedido, como se lembrou à Voetbal International: "Quando me disseram o preço para trazer o Santos, eu fiquei parado no telefone. Estava acostumado com as quantias do futebol profissional, mas para um jogo só, era impossível". Só entre as trocas de telefonemas, telegramas e custos postais entre Holanda e Brasil, combinando o amistoso, o SC Enschede gastou 500 mil florins (moeda holandesa antes do euro). E deu certo: por 22,5 mil florins, o clube garantiu que o Santos passaria por lá. Mas Henny Walhof fez questão absoluta de colocar, à mão escrita, uma condição no contrato: o time da Vila Belmiro precisava ter o seu time mais forte possível, "inclusive Pelé".
Foi difícil. Pelé quis dispensar o amistoso: já estava cansado da roda-viva daquela excursão. Para piorar, um descuido de um dirigente do Santos chegou a deixar Pepe preso no quarto do hotel. Mas este problema se resolveu, Henny Walhof lembrou o contrato para alertar que o Santos não seria pago se Pelé não jogasse... e ele jogou, no estádio Het Diekman. Contra um SC Enschede "reforçado" por bons jogadores de outras equipes da Holanda, como o atacante Tonny van der Linden, do DOS, campeão holandês em 1957/58. O que aconteceu? Novo massacre santista: 5 a 0. No primeiro tempo, até que o SC Enschede tentou. Segurou o 0 a 0. Mas aí, no segundo tempo, aos 57'... Pelé, de cabeça, após cruzamento de Pepe. Gol que rendeu homenagem espontânea de vários dos espectadores ali (fontes falam em 21 mil; outras, em 24 mil): uma reverência, aos gritos de "Abe, Abe". Poderia ser uma homenagem ao atacante Abe Lenstra, jogando no SC Enschede, um dos melhores holandeses pré-Cruyff. Era só a reverência a Pelé.
Que fez o segundo, dois minutos depois, num chute que desviou num zagueiro. E ainda chutou mais uma vez, para o terceiro gol santista. Mais, ainda: cruzou para Coutinho cabecear e marcar o quarto gol, com Dorval completando a goleada no minuto final. Goleada que rendeu outro comentário à Voetbal International, muito tempo depois, do ex-jogador Arend van der Weel, que esteve em campo: "O SC Enschede tinha um time muito bom, poderíamos ter sido campeões holandeses por duas ou três vezes. Apesar disso, não tivemos chance contra o Santos. Marcar, todo mundo pode; mas eu sou maluco é pelo futebol técnico. E o Santos mostrou isso. Eles não chutavam a bola, eles a acariciavam. Todos eram virtuoses".
No jornal regional Tubantia, o registro: o Santos jogou melhor no segundo tempo, ao golear o SC Enschede (Tubantia/Reprodução) |
Só duas histórias, entre tantas outras nas quais Pelé chamou a atenção dos privilegiados que o assistiram em campo.
A terceira vez? Foi em 2 de maio de 1963, quando a Holanda venceu o Brasil em amistoso. Com Pelé e tudo. Mas essa será contada aqui, no ano que vem, quando ela completar 60 anos.
Porque não é só hoje, quando o mundo chora a morte (física) de Edison/Edson Arantes do Nascimento, que é bom contar histórias de Pelé.
Sempre será.
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