Ao contrário do que possa parecer, ganhar no futebol nunca foi item de primeira necessidade para os Países Baixos/Holanda, mesmo que tenham ficado no quase após três finais de Copas do Mundo masculinas e que vários clubes sejam campeoníssimos continentais. No cenário atual do futebol mundial, inclusive, já estavam relativamente habituados e tranquilos com o papel coadjuvante a que o país foi relegado: uma aparição boa em Copa aqui, uma boa geração ali, e tudo bem. Claro, haveria alguma nostalgia do que se viveu entre os anos 1970 e 1990, mas futebol não é tudo na vida. 2019 mudou isso: serviu para relembrar ao mundo o tamanho da tradição holandesa no futebol. Só por isso, já foi um ano positivamente marcante. Como havia muito tempo, muito mesmo, o país não vivia. E parecia que não seria assim.
Tomemos como exemplo o Ajax, tão falado neste ano que se aproxima do fim. Certo, o clube de Amsterdã já fora elogiado por atuações destemidas na fase de grupos da Liga dos Campeões da temporada 2018/19 (como esquecer aquele 3 a 3 divertido com o Bayern de Munique, ainda nos grupos?). Todavia, a equipe teve atuações inconstantes nos amistosos da pausa de inverno na Florida Cup, contra São Paulo e Flamengo. Quando o Campeonato Holandês voltou para valer, os Ajacieden tiveram alguns resultados decepcionantes no começo do ano. A goleada sofrida para o Feyenoord - 6 a 2, na 19ª rodada da Eredivisie -, a derrota para o Heracles Almelo - 1 a 0, duas rodadas depois... parecia que seria impossível alcançar o PSV na disputa do título. Pior: parecia que o Ajax sequer poderia sonhar em superar o Real Madrid, nas oitavas de final da Liga dos Campeões.
Aí, chegou o dia 16 de fevereiro, com o jogo de ida das oitavas. E o Ajax... impressionou. Perdeu por 2 a 1 para o Real Madrid, em casa, mas foi valoroso, desafiou o Real, sonhou em ganhar o jogo. A torcida reconheceu o esforço na Johan Cruyff Arena, e ficou com a impressão esperançosa: quem sabe não era possível mostrar a mesma valentia em campo, com a bola nos pés, na volta, em 5 de março? Pois o Ajax fez mais: lavou a alma de quem acompanhava futebol na Holanda sem torcer por time algum, lavou mais ainda a alma de seus torcedores, fez o mundo se lembrar do velho e bom "Totaalvoetbal" com os 4 a 1 que pespegou em pleno Santiago Bernabéu, levando-o às quartas de final da Champions pela primeira vez desde 2002/03.
A partir dali, passou-se a prestar atenção no que ocorria em Amsterdã. Independentemente de "Futebol Total" ou não, o Ajax vivia aquele momento mágico que todo time sonha em viver: o "embalo", quando as peças se encaixam, os jogadores se entrosam e um time se fortalece demais. Sob Erik ten Hag, brilhavam Matthijs de Ligt, Daley Blind, Frenkie de Jong, Lasse Schöne, Donny van de Beek, David Neres, Hakim Ziyech, Dusan Tadic. Seria suficiente para superar outro gigante europeu, a Juventus, nas quartas de final? Pois foi. Na ida, em Amsterdã, desempenho até melhor do que contra o Real Madrid: 1 a 1, deixando novamente a otimista impressão de que era possível. E foi: em Turim, no dia 17 de abril, outra atuação para a história, com a comovente e brilhante virada por 2 a 1 que levou os Ajacieden às semifinais.
Aí, veio o Tottenham. A vitória na conta do chá, no jogo de ida em Londres, em 30 de abril, foi encarada com cuidado: afinal, nada impedia que os Spurs revertessem a vantagem em Amsterdã. Em 8 de maio, numa noite inesquecível, o 2 a 0 aberto no primeiro tempo fez parecer que o conto de fadas reabilitador do Ajax no mundo do futebol continuaria. Aí, Maurício Pochettino mudou o estilo do Tottenham, para buscar a difícil virada na força física. Lucas Moura fez os grandes 45 minutos de sua vida, concluindo com o dramático gol, no último segundo de acréscimos. E o Tottenham frustrou os Amsterdammers, conseguindo uma história tão heróica quanto a do Ajax. Vexame? Pipocada? Jamais se falou isso em Amsterdã: mesmo com o triste desfecho, "orgulho" segue descrevendo como a torcida ficou feliz ao ter o direito de voltar a sonhar. Até porque, na Eredivisie, o sonho virou realidade, com o time superando o PSV na reta final para ser campeão após cinco anos, e ainda levando a Copa da Holanda, de lambuja.
Assim como o Ajax simbolizou o retorno da esperança ao futebol holandês, a seleção feminina também já trazia previamente um otimismo em torno do que poderia fazer na Copa do Mundo. Afinal de contas, ainda estavam frescas na memória as cenas extasiantes da apoteótica conquista da Euro 2017. Entretanto, desempenhos ruins na amistosa Copa Algarve deixavam dúvidas sobre até onde poderia ir o embalo da geração de jogadoras que mudou a cara do futebol feminino nos Países Baixos. Nem mesmo atuações categóricas nos amistosos - 2 a 0 no México, 7 a 0 no Chile, 3 a 0 na Austrália - davam tranquilidade.
Sim, a Holanda tinha um time pronto para fazer boa campanha. Mas essa boa campanha iria longe na França? Pelo menos no começo, tudo bem. Com a massa laranja invadindo a vizinha França, as atuações foram melhorando. Riscos de decepção foram controlados nas vitórias contra Nova Zelândia e Camarões, uma primeira mostra de real valor no triunfo sobre o Canadá, mas só o mata-mata da Copa feminina daria ao mundo a verdadeira ideia do que a Holanda podia fazer. A primeira prova já foi forte, com a emocionante vitória sobre o Japão, algoz nas oitavas de final em 2015.
Mas a partir dali viriam os dois jogos que transformaram definitivamente a seleção feminina da Holanda em força mundial. Se alguns nomes decepcionavam, como Shanice van de Sanden (previsível no estilo de jogo) e Lieke Martens (além de lesionada, sem achar jeito de escapar da marcação), outros cresciam, como Vivianne Miedema, Jackie Groenen e Sari van Veenendaal, sob o comando sereno e firme de Sarina Wiegman. Com elas, as Leoas Laranjas rugiram alto, mais alto do que seleções badaladas como França ou Inglaterra. Superaram a Itália nas quartas, para garantirem vaga nas semifinais e no torneio olímpico que virá em Tóquio-2020. Superaram a Suécia nas semis, chegaram à final da Copa e deram a certeza: trata-se de uma geração de mulheres especiais, que mudou a feição do futebol feminino em seu país natal. Tentaram ganhar dos Estados Unidos na decisão, mas um erro começou a abrir o caminho do título norte-americano. Tudo bem: o respeito que ganharam é definitivo. E continua sendo fortalecido, com a campanha perfeita até aqui nas eliminatórias da Euro 2021.
A seleção masculina ainda tem coisas a corrigir, e sofreu duros golpes com as baixas de Memphis Depay e Blind. Mas... sim, a Holanda voltou, enfim (BSR Agency) |
Na seleção masculina, também chegou a haver algumas dúvidas sobre sua capacidade, após a derrota por 3 a 2 para a Alemanha em casa, nas Eliminatórias da Euro 2020. Dúvidas sobre alguns dos escalados de Ronald Koeman. Dúvidas sobre o que a Laranja poderia fazer, nas fases finais da Liga das Nações. Pouco a pouco, as dúvidas foram sendo respondidas. Na Liga das Nações, mesmo sob o cansaço do fim de temporada, a Holanda conseguiu chegar à final.
Outra derrota, para a experiente seleção de Portugal. Mas a sensação era positiva, o caminho continuava aberto. E uma vitória categórica sobre a Alemanha - 4 a 2 em setembro, nas Eliminatórias da Euro, em Dusseldorf, primeiro triunfo da Oranje sobre os alemães fora de casa desde 2002 - deixou claro: a Holanda voltaria ao centro do palco. Certo, há problemas a serem corrigidos. Seguem algumas contestações sobre os nomes titulares de Koeman na equipe. As partidas derradeiras que deram a vaga na Euro 2020 mostraram alguns problemas, bem como uma Laranja pragmática demais, em dificuldades contra adversários bem fechados na defesa. Mas... sim, é possível dizer que a Holanda voltou, como muito se esperava.
Ter sonhado não significa, nem de longe, que 2019 terminou com um tom alegre para o futebol nos Países Baixos. Afinal, nenhuma das quimeras descritas aqui - o Ajax, a seleção feminina, a seleção masculina - teve o fim desejado, com vários carrascos: Lucas Moura, Megan Rapinoe, Gonçalo Guedes... Já na temporada 2019/20, o Ajax decepcionou na Liga dos Campeões: com a faca e o queijo na mão para avançar às oitavas de final, novamente foi preso por um adversário bem armado defensivamente, vendo o Valencia surpreender em Amsterdã. Na seleção masculina, uma semana praticamente tirou da Euro Memphis Depay, o grande destaque da seleção sob Ronald Koeman, com o ligamento cruzado anterior do joelho rompido. Além de Memphis, Daley Blind, com problema cardíaco que inspira cuidados, ganhou uma outra prioridade a curto prazo, acima do futebol: sua vida.
Mas se alguns sonhos podem acabar, outros começam. Como o sonho do AZ em voltar a ser campeão holandês, com um elogiável time, Calvin Stengs e Myron Boadu à frente. Como o sonho de Virgil van Dijk, verdadeiro símbolo particular de como o futebol deu motivos para os Países Baixos sorrirem e se divertirem no ano.
Mas se alguns sonhos podem acabar, outros começam. Como o sonho do AZ em voltar a ser campeão holandês, com um elogiável time, Calvin Stengs e Myron Boadu à frente. Como o sonho de Virgil van Dijk, verdadeiro símbolo particular de como o futebol deu motivos para os Países Baixos sorrirem e se divertirem no ano.
De todo modo, o futebol holandês segue sabendo a arte de sorrir cada vez que o mundo lhe diz não. Em 2019, a Holanda reaprendeu a sonhar no futebol - e só isso já vale demais. No ano que vem é brincar de viver, brincar de jogar. E esperar, quem sabe, pelo final feliz.
Belo texto
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